Impunidade: never ending story
1971.Comecemos com Amílcar Cabral: “do nosso comportamento moral depende, amanhã, a nossa capacidade de traição”. A Guiné não era formalmente independente – sê-lo-ia a 10 de Setembro de 1974 – quando Cabral foi morto a tiro por Inocêncio Cani. Até hoje as circunstâncias da morte estão por apurar, não se sabe quem mandatou o crime, nem sequer a hora exacta a que aconteceu. A longa história da impunidade reinventa-se continuamente.
Desgaste, desespero e esperança: assim se pode descrever a Guiné-Bissau em 2013,a liberdade não cumpriu as suas promessas e não há como escapar à gravidade da situação que o país vive. A Guiné enfrenta um dos maiores desafios da sua história como nação independente: a criação de condições de regresso à normalidade constitucional como ponto de inversão de uma tendência de destruição e alienação do Estado, que se acentuou e acelerou claramente desde o golpe de Abril de 2012.
Tendo como pano de fundo este desafio – que não diz respeito apenas à Guiné, mas também a nós europeus, em benefício próprio e cito apenas duas ameaças à nossa segurança: tráfico de droga e radicalismo islâmico – decorre em Bissau, desde ontem e até 12 de Dezembro uma conferência internacional dedicada à impunidade.
Durante a conferência organizada pela Liga Guineense dos Direitos Humanos foi apresentado o relatório “40 Anos de Impunidade na Guiné-Bissau” resultante de um trabalho de campo realizado ao longo de 2013. A coordenação deste estudo esteve a cargo de Pedro Rosa Mendes, detalhe que não é acessório.
Ao logo de quase uma centena de páginas é consensual a constatação de que “a sociedade guineense é vítima de uma impunidade de Estado – pela ausência deste – e que as diferentes manifestações da impunidade decorrem, em primeiro lugar, da fragilidade das instituições do Estado, que deixou de assegurar funções de soberania como a justiça e a segurança. O Estado já não cumpre a sua responsabilidade de defender os direitos fundamentais dos cidadãos, incluindo o mais elementar – o direito à vida”.
Entre as diversas formas de violência directa individual a violência contra mulheres e crianças é das mais graves porém a menos visível na sociedade guineense. Alguns números: 48 por cento dos casamentos apresenta uma diferença etária entre o homem e a mulher de 20 a 24 anos, 45 por cento das mulheres guineenses são vítimas de alguma forma de mutilação genital feminina, 51,5 por cento das mulheres guineenses consideram aceitável que o marido lhe bata. O enquadramento legal não é benéfico para a mulher: o Código Civil português de 1966 continua em vigor na Guiné-Bissau.
“Cumulativamente às formas de violência resultantes ou inerentes à pobreza, a brutalidade e crueldade dirigida aos mais novos e desprotegidos ultrapassa o admissível e humanamente tolerável. A violência contra as crianças é, aliás, uma área que revela alguns dos aspectos mais chocantes da equação entre autoridadee tradicional, atrasado cultural e desagregação social. Grave, também, é a denúncia de que o poder judicial e as autoridades policiais não agem ou agem em favor dos que brutalizam de várias formas os mais pequenos“.
A análise da história da Guiné-Bissau mostra que quatro décadas de impunidade foram sendo construídas sempre com Cabral na boca, invocandoas formas mais insultuosas de legitimação para formas cada vez mais brutais de violência. “ «Cabral não morreu», ouvimos dizer. Talvez Cabral tenha que continuarvivo para que possam continuar a matá-lo todos os dias. O facto de a morte de Amílcar Cabral ser a primeira de muitas que continuam por esclarecer”é apenas a metáfora de uma sociedade que, como demonstra este estudo da Liga dos Direitos Humanos Guineenses, perdeu os seus valores de referência.
“Daí que as outras notas – muito pesadas – que atravessam este estudo sejam o desespero generalizado e o cansaço. Cansaço dos golpes, cansaço das mentiras, cansaço das violências, cansaço da miséria e dos roubos da coisa pública, cansaço do medo que voltou, cansaço também da vergonha que alguns deitam sobre a pátria de todos. Canseira de impunidade. Esse é um elemento que, em conclusão, levamos à atenção de quem tem mais responsabilidades no destino comum. É possível, acreditamos nisso, uma outra realidade para a Guiné-Bissau. As respostas de um painel representativo da sociedade guineense apontam o único caminho possível: a refundação doEstado como veículo de justiça.”
camalees.wordpress.com
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