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sexta-feira, 9 de novembro de 2012


REFUNDAR O ESTADO = PORTUGAL DESDENTADO

Camarada Van Zeller, na minha terra havia um fotógrafo chamado Luciano Rodrigues. Para mim, era o senhor Rodrigues fotógrafo. Tinha um estúdio num prédio da rua das montras, a Rua Serpa Pinto, onde o meu pai ainda hoje vende trapos de fita métrica ao pescoço. A minha mãe levava-me sempre lá a tirar fotografias. Vestia-me o fato de domingo, penteava-me e sentava-me à frente do cenário escolhido pelo senhor Rodrigues fotógrafo. Conforme a estação, eu era fotografado ao pé de montanhas cobertas de neve, as folhas caídas de Outono, as amoreiras em flor da Primavera ou baías repletas de palmeiras num dia solarengo. O estúdio fechou, tal como 90% das lojas na rua das montras onde o meu pai ainda mede as bainhas das calças que vai vendendo. O comércio tradicional tornou-se obsoleto no Portugal dos Centros Comerciais. São 155 espalhados pelo país, transformando num suplício o comércio no centro das cidades. Para não falar dos hipermercados, cheios de marcas importadas e pagando tarde e a más horas aos produtores nacionais. Só da varanda do meu apartamento vejo 6. Chegaram e instalaram-se com promessas de emprego, mas à sua volta fecharam dezenas de lojas cujos funcionários, pelo que me consta, não foram propriamente transferidos para essas maravilhosas superfícies. Abriram com 100 funcionários para rapidamente reduzirem o pessoal a 20, pagam miseravelmente exigindo o dobro, fazendo do salário mínimo nacional o salário médio. Aos balcões, nas caixas (quando as há), podemos ver de tudo um pouco: radiologistas, professores, designers, psicólogos, historiadores, sociólogos, etc.. Não estão a fazer compras, atendem clientes. Os pais foram pobres, deixaram de o ser e investiram na educação dos filhos, para que os filhos agora reaprendam a ser pobres enquanto pesam os tomates ao freguês. Antigamente não era assim. Havia a vantagem de se ser explorado mantendo-se analfabeto. Um homem podia ser vagabundo sem ter uma licenciatura, embora dificilmente pudesse chegar onde Relvas chegou sem ser vigarista (há coisas que nunca mudam). É uma questão de exigência social. A sociedade passou a exigir menos daqueles que a orientam, exigindo muito mais daqueles que a sustentam. Exige, por exemplo, que todo o tipo de usurpação se aguente como se não fosse uma usurpação. Repare-se como dos bancos espera-se que emprestem dinheiro a troco de juros incomportáveis, ao passo que das pessoas espera-se que paguem impostos a troco de nada. É por isso que olho para as fotografias do senhor Rodrigues fotógrafo com nostalgia. Vejam como é humilde, sem deixar de ser belo, o sorriso da Ti Firmiana, toda a vida poupada no que a higiene oral diz respeito:

Onde as famílias não perdiam tempo a ensinar às crianças como lavar os dentes, os rostos ficavam assim. Mas do cardápio de fotografias deste artista da minha terra, a mais eloquente é esta:




Chamou-lhe Turismo o seu autor, um turismo saudoso captado nas ruas do Porto. Duvido que os pais daquelas crianças, ali olhadas por seis pessoas adultas, humildemente vestidas, tenham podido endividar-se para comprar cuecas, calças e sapatos aos filhos. Naquela pobreza há quem vislumbre um sem fim de oportunidades. Talvez possam os petizes vir a fazer fortuna como exportadores de natas, assim Deus, a Sonae, o grupo Jerónimo Martins e o coiso as acompanhem. Os adultos sorriem, têm o ar complacente de quem olha para a miséria com ternura e compaixão. O que viam nos pobres rapazitos, não sei. Mas sei que não quero (re)aprender a ser como eles, nem quero que as minhas filhas ou os meus netos (se vier a tê-los) venham a fazer figuras daquelas. Não posso desejar que o meu futuro seja aquele passado. A dificuldade que hoje se me coloca, caro Van Zeller, já não é perceber como aqui chegámos. Isso eu sei. Uns falam das famílias endividadas a viver acima das suas possibilidades, como se não lhes tivesse sido possível endividarem-se. Outros falam do endividamento do Estado e das perturbações dos mercados. Outros querem refundar o Estado exigindo às pessoas que reaprendam a ser pobres, como se não bastasse sugerir-lhes que voltem as costas ao país sem dó nem pieguice. São todos farinha do mesmo saco, estes outros. Podíamos, quiçá, começar por ser mais exigentes com quem tira a fotografia. Não esperar cenários idílicos à frente dos quais fazemos pose nem ansiar por amanhãs que cantam sempre em tom desafinado. E depois exigir que se tornecartesianamente claro e evidente a quem deve Portugal dinheiro e por que deve. Foi para sustentar isso a que chamam de Estado Social? Não chega o que nós pagamos de impostos? Foi para manter o BPN activo sem ter que levar à barra dos tribunais a corja de vigaristas e gatunos que andou ali a brincar com o dinheiro alheio? Foi para pagar ao Isaltino Morais e a outros como ele? Foi para construir estádios de futebol e auto-estradas inúteis? Foi para exibir ao mundo uma EXPO, um CCB e outras manifestações culturais de absoluta necessidade? Foi para cobrir sucessivas derrapagens nunca explicadas nos orçamentos das obras públicas? Foi para financiar a banca? Foi para afundar a Madeira num catastrófico ordenamento territorial? Foi para pagar os vestidos da mulher do Dias Loureiro? Foi para subsidiar as mordomias de centenas de políticos e ex-políticos num jogo pornográfico de transferências do Estado para o privado e do privado para o Estado? Foi para comprar submarinos? Foi para sustentar os vícios dos turistas que olham compassivamente para os meninos ou para comprar sapatos, calças e cuecas aos meninos?

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