Ganhar balanço e sonhar
Ainda não tinham aberto as portas da fábrica e já ela olhava de soslaio o relógio. Tinha pressa de chegar. Sabia que para lá daquele arsenal de máquinas de costura havia uma ínfima fenda de luz por onde diariamente espreitava a vida.
Quando alguém procurava fazer chacota desta sua inquietação, firmava-se nas pontas dos pés e atirava obstinadamente todos os argumentos que trazia em defesa da sua causa.
O toque de saída mesclava-se à respiração ofegante que a rapidez dos passos lhe exigia. Não havia tempo a perder, às seis horas em ponto começava a sua novela preferida. Ela só tinha que abrir a porta de entrada, descalçar os sapatos, subir as escadas a correr, abrir a janela, puxar uma cadeira e pronto, começava o quadragésimo sétimo episódio. Pena era que o som não desse para regular e que por vezes a voz dos atores se tornasse praticamente impercetível. Não fosse a sua imensa imaginação e perdia-se ali metade do enredo.
Do outro lado da rua desenhava-se uma extensa parede branca recortada por pequenas janelas salpicadas de magníficos heróis. Era vê-los de sorriso em riste a cumprimentar os pequenos transeuntes que deles se abeiravam. O jardim tornava-se desmesuradamente acanhado para albergar tanta gente.
De repente via-se emergir do lado direito da rua um novelo branco de cabelos desalinhados pela brisa que se fazia sentir. Era ele, ela tinha a certeza que era ele. Foram tantos os dias em que do cimo da janela ficara a contemplar aquele arrastar de passos embrulhado num inexplicável mas inquestionável charme. Talvez ela até fosse capaz de o explicar, tinha dúvidas é que do alto de tanto egoísmo houvesse alguém disposto a dar ouvidos a uma tonta. Que interesse poderia ter um pobre velho? Só mesmo ela para despejar impiedosamente as horas naquelas futilidades.
«Está a chegar, tem calma. Eu vi-o por trás da janela da sala doze. Não desesperes…» -Perdia-se nestes pequenos monólogos, que, na sua opinião, serviam como uma espécie de indicação cénica para orientar o ator. E ele, fosse por telepatia ou qualquer outra espécie de comunicação, acatava as ordens vindas de cima. Olhava para a esquerda, olhava para a direita, na procura do banco mais próximo, e assentava ali, no conforto da esperança, todo o seu desassossego. Subitamente esticava o pescoço e o vento encarregava-se de levar até à janela as suas enternecedoras palavras:
- Então, meu menino, como te correu hoje a vida?
Olhava fixamente o neto à espera de ver nos seus pequenos olhos a resposta que tanto desejava. O mundo do avô cabia inteiro naqueles dois berlindes de safira. E o neto sabia disso, deixava sempre tudo muito arrumado para que o avô se pudesse aconchegar à vontade.
- Mal, avô, muito mal. Não soube responder. Era tão difícil! Mas eu também nunca tinha visto desses sonhos grandes, muito grandes, onde se pode meter tudo… parecidos com a mala da mãe. E a professora disse que eu tinha que fazer um texto novo. Avô, és capaz de me ajudar?
O avô, comovido até à medula, deixava escapar um sorriso ungido de meia dúzia de palavras simples. Olhava do alto da sua experiência a ingenuidade do neto e dizia:
- Claro que sim. Havemos de conseguir meter a vida inteira num sonho, só temos que dobrar tudo muito bem, como faz a tua mãe.
E, de mãos dadas, seguiam rua fora: o neto confiante na palavra do avô e o avô convencido de que a deusa dos poetas não ousaria profanar aquela expectativa.
De longe, já muito longe, chegava ainda um suave trautear que teimava em pousar no peitoril da janela para depois ganhar balanço e sonhar:
A vida cabe no sonho,
Se o sonho couber na vida.
Sou eu que ponho e disponho
Da entrada e da saída.
Manuela Ferreira
Imagem retirada da internet
MAIS UM POEMA
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