AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012


Resposta ao tempo



Olho em volta e sinto uma amargura pesada e trágica. Um movimento silencioso faz com que as pessoas não se cruzem: atravessam-se com indiferença e, até, com rancor.
(Ao António Borges Coelho e ao António Rego Chaves no mesmo barco e sob a mesma bandeira)


Olho em volta e sinto uma amargura pesada e trágica. Um movimento silencioso faz com que as pessoas não se cruzem: atravessam-se com indiferença e, até, com rancor. Pessoas sem destino certo, absortas não se sabe bem com quê. Porquê, sabemo-lo pela evidência cruel. Não é só a atmosfera de descrença: é o riscar de uma angústia que nada tem de metafísica. Há algo de implacável nas declarações que ouvimos, e nos colocam num patamar sem saída. Leio os jornais e nem um traz a limpidez de uma esperança porque, na realidade, já não há esperança. E ela já existiu, na afronta e no opróbrio.

As nossas causas eram a justificação das nossas vidas. Envolvíamo-nos em coisas muito perigosas, empolgados pelo desafio e pela reminiscência de que ajudávamos o mundo a ser algo de melhor. Não sabíamos muito bem o que era; porém, não era aquilo em que sobrevivíamos tristemente. Uma frase que escrevi, por essa ocasião, e fez escola: a esperança tem sempre razão. E agora? A esperança perdeu, até a razão de ser?

As causas do que nos está a acontecer vêm de longe. E, se quisermos ser honestos, o desequilíbrio começou com os dez anos de primeiro-ministro do Dr. Cavaco. Não vale a pena derramar lágrimas. A História é o que é. O impreparo do então primeiro-ministro advinha da sua incultura geral, do facto de a Europa nos mandar dinheiro a rodos, o que facilitava a governança, e da raiz da sua própria ideologia. É a era em que o culto da juventude atingiu aspectos surpreendentes. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, a estratégia era semelhante. Quadros profissionais competentíssimos eram rudemente afastados, por terem mais de 40 anos de idade, e substituídos por jovens desenvoltos, penteados e vestidos de igual modo, que sobraçavam como bíblias o "Financial Times" e o "Wall Street Journal." 

Cá, como lá, os desequilíbrios económicos não tardaram. E a especulação financeira trouxe à tona d'água as deficiências da impreparação dos decisores. Há casos, nos Estados Unidos, de grandes empresas que caíram nas mãos, por exemplo, do capitalismo japonês, porque os jovens turcos que as geriam demonstraram a mais atroz incompetência. 

Esboçava-se, ante os nossos olhos perplexos, a ascensão de uma nova ordem, alicerçada no espontaneísmo, no arrojo da decisão e numa pretensa inovação, baseada numa filosofia que tinha como valor absoluto o "mercado." Anos antes, John Kenneth Galbraith tinha prevenido dos perigos que aí vinham, se a ética não se sobrepusesse à aventura da instância momentânea. Um dos grandes conselheiros de Roosevelt possuía uma cultura geral impressionante, com particular incidência na História e na Filosofia. Há livros dele, editados pelas Publicações Europa-América, que podem, ainda, ser lidos com proveito e com prazer. Além do mais, Galbraith escrevia com notório sentido de humor. 

Os tempos que então vivíamos eram preocupantes, mas os sinais de que as coisas iriam melhorar animavam as sombras das nossas inquietações. Era a época de Camus, de Sartre, de Lukacs, de Vittorini, de Grass, de Antonioni e de Visconti, dos Prémios Formentor, e estavam vivos e actuantes os nossos maiores: Aquilino, Redol, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, Lopes-Graça, José Gomes Ferreira. A lista é imensa, e o pensamento europeu sobressaía em grandes correntes humanistas e progressistas. Esses homens ajudavam-nos a pensar e incitavam-nos a resistir. Pouco ou nada existe desse era. A regressão de um pensamento filosófico distanciado do humano e das grandes preocupações sociais e políticas tomou conta do terreno.

Pedro Passos Coelho é um produto típico de um "tempo inconvicto" [Tony Judt] que acarinha e acalenta a frivolidade da superfície, arrastando, com essa frivolidade, milhões de pessoas para a desgraça e para o infortúnio. É preciso erradicar, da Europa do Partido Popular, esta patologia endémica, de que são vítimas não só os países mais débeis (que serão "países mais débeis"?) como todos os outros.

A crise do capitalismo é contornada ou não revelada como forma de se pretender ocultar a natureza do problema. Não foi só Marx (que horror, citar-se Karl Marx) a anunciar os fundamentos maléficos da doutrina. Católicos como Emmanuel Mounier, o grande pensador do "personalismo" (revelado, no nosso país por João Bénard da Costa, num admirável volume justamente titulado "O Personalismo"), ou Jean-Marie Domenach exerceram papéis determinantes para o esclarecimento e dilucidação do assunto. 

Líamos tudo o que vinha parar às nossas mãos. Paulo Rocha, esse mesmo, o realizador de cinema e meu amigo de geração, ofereceu-me livros de Mounier, conhecedor de que eu era um leitor omnívoro e insaciável. Perduram, essa ânsia e prazer. Que se lê, actualmente?, a não ser as bojardas unidireccionais, que forjam o pensamento único e estratificam a criatividade e a crítica.

Não sei onde vamos parar. Sei que eu e alguns da minha geração sentimos um desgosto, uma amargura pesados e trágicos. Era isso que queria dizer-vos.



b.bastos@netcabo.pt

Sem comentários: