A exposição mostra imagens do livro Revoluções, organizado por Michael Löwy e lançado no Brasil em 2009 pela Boitempo Editorial. Com aproximadamente 400 fotografias em preto-e-branco, o livro documenta importantes movimentos revolucionários, desde a Comuna de Paris (1871) até, mais recentemente, a Revolução Cubana (1953-67), além de movimentos sociais que, segundo Löwy, seriam portadores não de “revoluções”, mas de um “espírito revolucionário” (como os Sem Terra, registrados por Sebastião Salgado). A edição de Revoluções faz-se notar não apenas pela riqueza visual, mas, principalmente, pela construção de uma íntima relação entre imagem, narração e história, onde os comentários escritos vão, aos poucos, expondo os personagens no interior das fotos.
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Da apresentação de Michael Löwy
A revolução fotografada
Barricadas antes do ataque, rua Saint-Maur, 25 de junho de 1848
Duas barricadas obstruem uma rua estreita. Os combatentes estão invisíveis. Esperam um ataque imimente. A barreira mais próxima do fotógrafo, construída com paralelepípedos e as rodas de uma carrugem, parece atravessada por uma lança que poderia ser uma haste de bandeira (vermelha?). A rua está vazia. Quase se escuta o silêncio da espera.
Barricadas após o ataque, rua Saint-Maur, 26 de junho de 1848
A mesma barricada no dia seguinte: o cenário após a Batalha. A rua fervilha de gente: militares, tropas de choque, ambulantes. Passeiam entre as barricadas, esburacadas, mas ainda inteiras. Os insurgentes estão ausentes: mortos, fugidos, presos ? O que é certo é que foram vencidos.
Estes dois daguerreótipos, tirados de uma janela em 25 e 26 de junho de 1848 por um certo Thibaut, sobre o qual não se sabe muita coisa, estão entre os primeiros registros fotográficos de uma revolução.
É énorme o contraste entre essas primeiras imagens de barricadas revolucionárias, esplêndidas, mas imóveis, enigmáticas e distantes, e aquelas de Barcelona, em julho de 1936, quase um século depois. Os sacos de areia substituíram os paralelepípedos. O fotógrafo não está mais numa sacada, mas bem mais próximo, ou mesmo no meio dos insurgentes. E, sobretudo, veem-se os rostos dos combatentes, os sorrisos, as mãos desajeitadas que seguram o fuzil ou o punho erguido. Contudo, apesar das mudanças, a barricada está sempre lá, sinônimo de sublevação popular, de iniciativa revolucionária.
Momento mágico, luz inesquecível que escapa do desenrolar dos eventos ordinários, a revolução é assunto de imagem, mais do que de conceito. Sobrevive e propaga-se pelo visual, e desde o fim do século 19, (também) pela imagem fotográfica.
É claro que as fotografias não podem substituir a historiografia, mas elas captam o que nenhum outro texto escrito pode transmitir: certos rostos, certos gestos, certas situações, certos movimentos. A fotografia permite que se veja, de modo concreto, o que constitui o espírito único e singular de cada revolução.
Afirmar a importância da fotografia para o conhecimento dos eventos revolucionários não implica que se trate de um documento puramente objetivo. Cada uma dessas imagens é ao mesmo tempo objetiva – como imagem do real – e profundamente subjetiva, pois traz, de um modo ou de outro, a marca de seu autor.
A escolha da documentação nesse trabalho por vezes é arbitraria, como em toda seleção desse tipo. Mas, por sua diversidade e riqueza, apresenta uma imagem plural de cada revolução, naquilo que tem de universal e em sua especificidade histórca, cultural e nacional. Vemos aparecer a revolução não como uma abstração, uma ideia, um conceito, uma "estrutura", mas como uma ação de seres humanos vivos, homens e mulheres que se insurgem contra uma ordem que se tornou insuportável.
A maioria dessas imagens é povoada por multidões anônimas, por desconhecidos: o povo insurgente. São artesãos parisienses, marinheiros russos, trabalhadores alemães ou húngaros, milicianos espanhóis, camponeses chineses, indígenas mexicanos.
O que a objetiva capta em movimento, em ação, é a transformação dos excluídos, dos oprimidos, das "classes subalternas" em protagonistas de sua própria história, sujeitos de sua própria emancipação. Os fotógrafos registram, preto no branco, o momento histórico privilegiado em que a longa cadeia da dominação se irrompe. A sequência descontínua dessas interrupções revolucionárias constitui a tradução dos oprimidos, tradição que remonta a tempos muito anteriores à intervenção de Daguerre.
As fotos de revoluções – sobretudo se foram interrompidas ou vencidas - possuem assim uma poderosa carga utópica. Revelam ao olhar atento do observador uma qualidade mágica, ou profética, que as torna sempre atuais, sempre subversivas.
Elas nos falam ao mesmo tempo do passado e de um futuro possível.
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Para os astrônomos, desde 1727, a «revolução» é a rotação de um corpo celeste em torno de seu eixo. Mas no terreno histórico, desde 1789, a revoluçâo passou a significar exatamente o contrário: interromper o curso monótono da dominaçâo de classe que gira em torno de si mesma, quebrar o eixo do poder das oligarquias sociais e políticas.
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O livro Revoluções trata dos principais movimentos revolucionários, da Comuna de Paris aos nossos dias. A revolução é etimologicamente uma reviravolta: inverte as hierarquias sociais ou, antes, recoloca no lugar um mundo que se encontra do avesso... Por uma questão de coerência, escolhemos as revoluções “clássicas”, revoluções sociais de inspiração igualitária que visavam distribuir a terra e as riquezas, abolir as classes e entregar o poder aos trabalhadores: a Comuna de Paris, a Revolução Mexicana de 1910–1920, as duas Revoluções Russas (1905 e 1917), as Revoluções Alemã e Húngara de 1919, a Revolução e a Guerra Civil Espanhola (1936–1937), as Revoluções Chinesas e a Revolução Cubana.
Portanto, deixaremos de lado outros movimentos revolucionários não menos importantes, porém de natureza diferente: as revoluções democráticas, antiburocráticas e antitotalitárias (por exemplo, a Revolução Húngara de 1956) e as revoluções anticoloniais, as lutas de libertação nacional (por exemplo, a Revolução Indochinesa e a Revolução Argelina). A distinção não é absoluta, já que nessas outras formas de revolução existe também uma dimensão social inegável, mas trata-se, em última análise, de fenômenos diferentes.
Passaremos em revista uma série de eventos revolucionários – distintos, em certa medida, das revoluções no sentido pleno do termo – dos últimos trinta anos: Maio de 1968, a Revolução dos Cravos em Portugal (1974–1975), a Revolução Nicaraguense (1978–1979), a queda do Muro de Berlim (1989) e a sublevação zapatista de Chiapas (1994–1995).
A história não terminou
A história está longe de ter terminado. No decorrer dos últimos trinta anos assistimos à sucessão, na Europa e no mundo, de uma série de eventos revolucionários da maior importância social e política – ainda que não se trate de revoluções clássicas, como nas décadas anteriores. Entre essas sublevações de vocação emancipadora, cinco inflamaram a imaginação e os espíritos, muito além dos países em que se produziram: Maio de 1968 na França, a Revolução dos Cravos em Portugal (1974), a insurreição sandinista na Nicarágua (1979), a queda do muro de Berlim (1989) e, mais recentemente, a sublevação zapatista no e situados em universos sociais e culturais bastante desiguais, eles têm em comum um mesmo impulso libertador, uma mesma alegria popular, uma participação maciça da juventude.
Cada qual à sua maneira, marcaram a história do último terço do século XX e deixaram marcas na memória coletiva dos povos.
Maio de 1968 não foi uma revolução, mas uma imensa onda de contestação social, cultural e política, sustentada em suas expressões mais radicais por uma aspiração revolucionária. Seu imaginário se alimentava de revoluções do passado e do presente – desde a Comuna de Paris até as revoluções vietnamita e cubana; trata-se, porém, de um evento inovador, com características originais. Os gestos herdados do passado, como a construção de barricadas com paralelepípedos que passam de mão em mão numa cadeia solidária, não têm mais a mesma função: são atos simbólicos. Não há fuzis ou granadas, e menos ainda metralhadoras ou canhões. A violência é controlada e limita-se ao arremesso de pedras e de paralelepípedos, ao qual respondem – do lado das “forças da ordem” – com o cassetete e o gás lacrimogêneo.
Às vezes os jovens lançam coquetéis molotov, que servem sobretudo para incendiar os carros – encarnação material da alienação mercantil – ou as próprias barricadas, a fi m de impedir o avanço da polícia. O brilho dos incêndios nas ruas de Paris iluminou a imaginação social das últimas décadas, não só na França, mas um pouco em todo o mundo. São os jovens, é claro, que lançam o movimento, que se inicia na Universidade de Nanterre, em 22 de março de 1968. Também são jovens os dirigentes e porta-vozes que os representam, como Alain Geismar, Jacques Sauvageot, Daniel Cohn-Bendit e Michel Recanati, vulgo Ludo, chefe do serviço de segurança das JCR (Juventudes Comunistas Revolucionárias), que se suicidou alguns anos mais tarde (em 1978) e cujo itinerário foi retraçado por Romain Goupil, em seu fi lme Mourir à trente ans [Morrer aos trinta anos] (1982).
Se o jovem e ruivo “anarquista judeu-alemão” Daniel Cohn-Bendit pôde se tornar a figura mais representativa do movimento, é sem dúvida por exprimir de maneira louvável o espírito libertário e insolente de Maio de 1968. Há uma célebre foto – transformada em serigrafia – que o mostra desafiando um policial, armado somente de um sorriso zombeteiro, uma imagem perfeita desse atrevimento, desse humor irônico e corrosivo que em iídiche é chamado de chuzpah. As fotografias da época nos surpreendem pela grande participação feminina, não somente nas greves e nas ocupações das fábricas, nos debates nas universidades e nas manifestações de rua, mas também na construção das barricadas. Não é por acaso que a foto que se torna símbolo – ou, se preferirmos, alegoria – de Maio de 1968, reproduzida milhares de vezes em inúmeras publicações, é a de uma jovem judia montada nos ombros de um rapaz e segurando a bandeira da Revolução Vietnamita. Graças a uma reportagem do jornal Le Monde publicada nos anos 1990, soubemos que se tratava de uma jovem aristocrata inglesa que pagou caro por seu gesto de rebelião: quando a foto foi conhecida, seu avô a deserdou...
Não podemos esquecer que Maio de 1968 foi também uma grande e imensa festa, em que a imaginação pôde se não tomar o poder, ao menos cobrir os muros de Paris com cartazes esplêndidos, artesanalmente confeccionados pelo Ateliê Popular da Escola de Belas-Artes, e com inscrições poético-subversivas, frequentemente de inspiração situacionista. Uma festa musical também, seja pelo violão de Jean Ferrat diante de operários em greve da fábrica da Renault ou de pianistas anônimos no coração da Sorbonne. A Sorbonne estudantil e a Renault operária foram os dois locais simbólicos de Maio de 1968, locais de ocupação, de discussão e de festa. Lá se encontram, concentradas, as forças e as fraquezas dos dois movimentos cuja convergência – apesar dos desacordos, dos conflitos e das desconfianças recíprocas – por pouco não derrubou o general de Gaulle e sua Quinta República.
A Revolução dos Cravos, em abril de 1974, em Portugal, não se assemelha muito ao Maio francês. Trata-se de um movimento efetivamente revolucionário, que derrubou uma das mais antigas ditaduras da Europa, o regime salazarista, de inspiração autoritária, corporativista e fascista. Contudo, fato raro na história moderna, a iniciativa do movimento partiu de um grupo de jovens militares, descontentes com a interminável guerra colonial na África. Reunidos em torno do capitão Otelo de Carvalho, esses oficiais derrubam a ditadura carcomida de Caetano, herdeiro de Salazar, por meio de um levante armado na noite de 25 de abril de 1974.
Revoluções brasileiras?
Ao contrário de outros países da América Latina, como México, Bolívia, Cuba e Nicarágua, o Brasil nunca conheceu uma verdadeira revolução social. A independência de 1822 foi um assunto entre pai (d. João VI) e filho (d. Pedro I), como sabe qualquer aluno de ensino médio. A República, um pronunciamento militar contra d. Pedro II. A assim chamada Revolução de 1930, conflito entre oligarquias regionais (Rio Grande do Sul e Minas Gerais contra São Paulo), tinha muito pouco de revolucionária – apesar das veleidades democráticas de alguns dos jovens “tenentes” que apoiaram Getúlio Vargas – e poderia, no máximo, ser considerada, segundo o termo irônico de Gramsci, uma “revolução passiva”, isto é, uma mudança sociopolítica “de cima para baixo”, sem participação popular. A queda de Getúlio Vargas em 1945 e o fim do Estado Novo foram outro assunto decidido entre militares.
A pretensa Revolução de 31 de Março de 1964 não passou de um golpe militar reacionário e antipopular patrocinado pelos Estados Unidos. E, por fim, a redemocratização de 1985 deu-se sem rupturas: os militares decidiram entregar o governo novamente aos civis, mas não permitiram eleições diretas, apesar da enorme pressão popular. Não tivemos, portanto, revoluções no Brasil, apenas alguns movimentos de rebelião que, em certa medida, podem ser considerados revolucionários no sentido amplo da palavra.
* Trechos extraídos do livro “Revoluções”. Michael Löwy, organização; tradução Yuri Martins Fontes. – São Paulo: Boitempo, 2009.
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