Ano Novo na cadeia do Aljube
Estávamos nós a passear na Sala 3 do Aljube, a seguir ao Natal de 1950, a contar as nossas histórias uns aos outros, quando o guarda abriu a porta e chamou pelo meu nome: “Prepare as suas coisas para abandonar a cadeia!” Foi cá um choque dos diabos.
Eu estava preso havia só um mês e meio, achava cedo para me mandarem embora. E à noite...? Mas os camaradas rodeavam-me, davam-me palmadas nas costas, enquanto eu dobrava as mantas, fazia a minha trouxa, atarantado: “Não te deixaram ir no Natal para te castigar, mas agora, como é fim do ano... Isso é que é sorte!” Lá me despedi, entre recomendações de um para ir visitar a mãe, sem falta, de outro para lhe comprar já não sei o quê.
Cá fora, no patamar, o guarda ordenou: “Para cima!”
A secretaria era no segundo andar, calculei que fosse para me darem a ordem de soltura. O secretário, o Salgueiro, o zarolho, lá estava, imponente, de papel na mão. Quando começou a ler é que percebi o meu engano: “Castigado com vinte dias de cela disciplinar... Frases subversivas na parede da cela... Condenado a pagar a reparação...” O estupor nem disfarçava a satisfação pela partida que me tinha pregado.
Nem protestei, porque o meu “crime” era inegável.
Nem protestei, porque o meu “crime” era inegável.
Na gaveta onde tinha passado os meus primeiros 19 dias de isolamento havia, como em todas, filas de riscos a marcar os dias, nomes, mensagens dos que por lá tinham passado, versos ingénuos, toscos desenhos de mulheres nuas... que eu ia decifrando à tarde, quando era mais fácil os olhos habituarem-se à semi-escuridão. Um dia, disposto a elevar o nível político da cela, gravei, com um prego que arranquei do sapato, um panfleto em devida forma, com conselhos de firmeza e de ódio ao fascismo... Já não me lembro do texto mas acho que não me saiu nada mal. O guarda, quando eu saí dali para descer à Sala 3, inspeccionou as paredes à luz da lanterna, deu com a minha literatura, participou...
De modo que, depois de ouvir o responso do zarolho, foi só passar o gradão da “Sala 2” (era o nome digno que os carcereiros davam ao piso das celas) e, carregado com as mantas, percorrer outra vez, atrás do guarda, o corredor das “gavetas”, sentindo aquele rumor indistinto que vinha de trás de cada porta fechada, a respiração daqueles enterrados vivos.
A cela do segredo era ao fundo de um corredor transversal, à beira do chuveiro e retrete comum.
Todas as celas eram escuras, mas naquela, à noite, era a negridão total. A porta fechou-se com estrondo e eu fui andando devagar, à volta, apalpando as paredes, até chocar com o bailique. Ali me estendi, cobri-me com a manta e acho que adormeci de repente. Na cela, dormir é uma boa defesa.
Essas três semanas custaram mais a passar que as outras numa cela “normal”. De resto, a ideia era essa. Havia toda a manhã o corrupio dos presos que vinham à casa de banho, com o mau cheiro permanente; a casa de banho não tinha porta, para o preso estar sob vigilância permanente do guarda. À noite, outra vez. A mim, como castigado, só me calhava ir à retrete em último lugar, por muito aflito que estivesse.
É verdade que já estava livre das chamadas para ir à PIDE, aos interrogatórios, mas com isso perdia também uma rara ocasião de sair à rua, de ver gente pelas frestas da carrinha. Visitas da família também não tinha, claro; castigo é castigo.
As únicas figuras humanas que ali apareciam eram os rostos fechados, odiosos, dos guardas quando vinham abrir ou fechar a porta e o servente que vinha entregar o prato de sopa e um pão. Se fizesse alguma pergunta ou comentário não tinha resposta.
A lei era o silêncio total. Nem sequer tinha a possibilidade de “conversar” com outros presos pelas pancadas na parede. Os meus sinais morse ao longo da parede não tiveram resposta – não havia presos nas celas contíguas.
O remédio era caminhar sem fim na escuridão, às apalpadelas para não chocar contra as paredes, contar a mim mesmo em voz baixa enredos de livros, de filmes, ou fazer contas de cabeça, dez vezes se necessário, até ter a certeza de que chegara ao resultado certo.
Quando ficava exausto estendia-me no bailique, dormia um bocado – quanto tempo, era impossível saber – para recomeçar a andar, até vir a sopa do jantar...
Uma manhã, estavam dois presos no chuveiro (Dois presos juntos? Que estranho!) e, enquanto um dos presos faz uma pergunta qualquer ao guarda, para o distrair, oiço uma pancada na porta, algo é atirado pela grade do respiradouro, por cima da porta, e cai no chão. “Como te chamas? Quantos dias te faltam? Precisas de alguma coisa? Vai aí um sabonete. Ânimo!
Uma manhã, estavam dois presos no chuveiro (Dois presos juntos? Que estranho!) e, enquanto um dos presos faz uma pergunta qualquer ao guarda, para o distrair, oiço uma pancada na porta, algo é atirado pela grade do respiradouro, por cima da porta, e cai no chão. “Como te chamas? Quantos dias te faltam? Precisas de alguma coisa? Vai aí um sabonete. Ânimo!
” Era o Dias Lourenço, que vinha da Sala 2A com outro camarada ali tomar banho. As palavras dele, aquele pedacinho de sabonete, foi como um tesouro que me caísse do céu. E assim passei o Ano Novo de 1951, a aspirar regalado o perfume de um sabonete.
(Francisco Martins Rodrigues, in "Os anos do silêncio", edições Dinossauro, 2008, Lisboa)
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