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quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Ano Novo na cadeia do Aljube





Ano Novo na cadeia do Aljube
Estávamos nós a passear na Sala 3 do Aljube, a seguir ao Natal de 1950, a contar as nossas histórias uns aos outros, quando o guarda abriu a porta e chamou pelo meu nome: “Prepare as suas coisas para abandonar a cadeia!” Foi cá um choque dos diabos. 

Eu estava preso havia só um mês e meio, achava cedo para me mandarem embora. E à noite...? Mas os camaradas rodeavam-me, davam-me palmadas nas costas, enquanto eu dobrava as mantas, fazia a minha trouxa, atarantado: “Não te deixaram ir no Natal para te castigar, mas agora, como é fim do ano... Isso é que é sorte!” Lá me despedi, entre recomendações de um para ir visitar a mãe, sem falta, de outro para lhe comprar já não sei o quê.

Cá fora, no patamar, o guarda ordenou: “Para cima!” 

A secretaria era no segundo andar, calculei que fosse para me darem a ordem de soltura. O secretário, o Salgueiro, o zarolho, lá estava, imponente, de papel na mão. Quando começou a ler é que percebi o meu engano: “Castigado com vinte dias de cela disciplinar... Frases subversivas na parede da cela... Condenado a pagar a reparação...” O estupor nem disfarçava a satisfação pela partida que me tinha pregado.
Nem protestei, porque o meu “crime” era inegável. 

Na gaveta onde tinha passado os meus primeiros 19 dias de isolamento havia, como em todas, filas de riscos a marcar os dias, nomes, mensagens dos que por lá tinham passado, versos ingénuos, toscos desenhos de mulheres nuas... que eu ia decifrando à tarde, quando era mais fácil os olhos habituarem-se à semi-escuridão. Um dia, disposto a elevar o nível político da cela, gravei, com um prego que arranquei do sapato, um panfleto em devida forma, com conselhos de firmeza e de ódio ao fascismo... Já não me lembro do texto mas acho que não me saiu nada mal. O guarda, quando eu saí dali para descer à Sala 3, inspeccionou as paredes à luz da lanterna, deu com a minha literatura, participou...

De modo que, depois de ouvir o responso do zarolho, foi só passar o gradão da “Sala 2” (era o nome digno que os carcereiros davam ao piso das celas) e, carregado com as mantas, percorrer outra vez, atrás do guarda, o corredor das “gavetas”, sentindo aquele rumor indistinto que vinha de trás de cada porta fechada, a respiração daqueles enterrados vivos. 

A cela do segredo era ao fundo de um corredor transversal, à beira do chuveiro e retrete comum. 

Todas as celas eram escuras, mas naquela, à noite, era a negridão total. A porta fechou-se com estrondo e eu fui andando devagar, à volta, apalpando as paredes, até chocar com o bailique. Ali me estendi, cobri-me com a manta e acho que adormeci de repente. Na cela, dormir é uma boa defesa.

Essas três semanas custaram mais a passar que as outras numa cela “normal”. De resto, a ideia era essa. Havia toda a manhã o corrupio dos presos que vinham à casa de banho, com o mau cheiro permanente; a casa de banho não tinha porta, para o preso estar sob vigilância permanente do guarda. À noite, outra vez. A mim, como castigado, só me calhava ir à retrete em último lugar, por muito aflito que estivesse. 

É verdade que já estava livre das chamadas para ir à PIDE, aos interrogatórios, mas com isso perdia também uma rara ocasião de sair à rua, de ver gente pelas frestas da carrinha. Visitas da família também não tinha, claro; castigo é castigo. 

As únicas figuras humanas que ali apareciam eram os rostos fechados, odiosos, dos guardas quando vinham abrir ou fechar a porta e o servente que vinha entregar o prato de sopa e um pão. Se fizesse alguma pergunta ou comentário não tinha resposta. 

A lei era o silêncio total. Nem sequer tinha a possibilidade de “conversar” com outros presos pelas pancadas na parede. Os meus sinais morse ao longo da parede não tiveram resposta – não havia presos nas celas contíguas.

O remédio era caminhar sem fim na escuridão, às apalpadelas para não chocar contra as paredes, contar a mim mesmo em voz baixa enredos de livros, de filmes, ou fazer contas de cabeça, dez vezes se necessário, até ter a certeza de que chegara ao resultado certo. 

Quando ficava exausto estendia-me no bailique, dormia um bocado – quanto tempo, era impossível saber – para recomeçar a andar, até vir a sopa do jantar...
Uma manhã, estavam dois presos no chuveiro (Dois presos juntos? Que estranho!) e, enquanto um dos presos faz uma pergunta qualquer ao guarda, para o distrair, oiço uma pancada na porta, algo é atirado pela grade do respiradouro, por cima da porta, e cai no chão. “Como te chamas? Quantos dias te faltam? Precisas de alguma coisa? Vai aí um sabonete. Ânimo!

” Era o Dias Lourenço, que vinha da Sala 2A com outro camarada ali tomar banho. As palavras dele, aquele pedacinho de sabonete, foi como um tesouro que me caísse do céu. E assim passei o Ano Novo de 1951, a aspirar regalado o perfume de um sabonete.
(Francisco Martins Rodrigues, in "Os anos do silêncio", edições Dinossauro, 2008, Lisboa)

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