O caso de violência policial contra o Lbc e os demais moradores da Cova da Moura que foram torturados na esquadra de Alfragide é revelador, como poucos, de uma triangulação perversa entre racismo, capitalismo, e aparelho de Estado.
De modo a reproduzir as relações de produção e a estrutura da sociedade de classes o aparelho de Estado tem permanentemente de arranjar esquemas que as tornem justificáveis, e idealmente insuperáveis, sequer na esfera das ideias. Uma forma particularmente proveitosa de o fazer, empregue há décadas consecutivas com sucesso considerável, é a de elaborar uma concepção organicista da "nação", em que as diversas classes se tornam não a consequência de uma distribuição desigual de riqueza e poder mas uma estrutura funcional e útil em que da cooperação de todos se obtém a satisfação geral.
Por vezes (digamos que a maioria das vezes) o bem geral deixa de ser propriamente o bem da generalidade das pessoas para passar a ser o "interesse nacional", que exige o sacrifício delas, e não o seu bem-estar, mas enfim, estima-se que desses sacrifícios que curiosamente recaem sobre quem trabalha e nunca sobre quem nada faz, resultem benefícios para a nação.
E que coisa é esta da nação?
Alegam os ideólogos burgueses que elaboraram tal mascarada que são o povo europeu que partiu do Condado Portucalense a conquistar terras aos mouros, depois foi para Ceuta ainda para lhes bater, e fez depois a epopeia colonial dos curiosa e autocentradamente chamados "descobrimentos", que se prolongaram em presença política e militar nas sete partidas do mundo até ao 25 de Abril.
Os novos mundos que Portugal deu ao mundo, curiosa expressão para designar os espaços geográficos pilhados e as populações submetidas, não contribuíram porém com portugueses para Portugal.
Os portugueses continuaram a ser gente branca, cristã, valente, com a possível adição de um ou outro Marcelino da Mata devidamente "assimilado", na linguagem das autoridades coloniais do fascismo.
Os demais, quer cá estivessem há séculos como os ciganos, ou viessem depois como os imigrantes africanos e os seus filhos já cá nascidos, não faziam parte da nação. E sempre pareceu relativamente banal a amplos sectores da sociedade que se estabelecesse um regime de excepção para eles no acesso ao emprego (sempre os piores ofícios), no acesso à habitação (sempre os piores bairros), no acesso ao ensino (sempre as piores turmas das piores escolas), e que quer o sistema carcerário quer as forças da polícia os pudessem pôr a ferros e cobrir de pancada sem especial necessidade de justificação.
O mundo em que queremos viver não tem nada que ver com a invenção burguesa das nações e dos chauvinismos nacionais.
Uma agressão dos aparelhos de repressão da burguesia a um irmão da nossa classe, branco, negro, cigano, de que lugar ele for e onde quer que ele esteja, é uma questão colectiva que a todos os explorados diz respeito. Não nos enrolam com conversas nacionaleiras. Não nos enganam que o problema é de meia dúzia de polícias rufiões por azar e casualidade a trabalhar na mesma esquadra, por azar apoiados pelos sindicatos do sector, por azar acobertados pelo ministro da tutela que diz que o racismo não é sistémico na polícia, por azar sempre, por azar em tudo.
Nós sabemos perfeitamente que lidamos com o inimigo, e não há nenhum truque barato da sua estratégia de intoxicação e divisionismo que estejamos na disposição de engolir.
E à repressão da Cova da Moura, que é a repressão do bairro das Pedreiras, que é a repressão das torres do Aleixo, que é a repressão da polícia dos ricos na impunidade ante a fraqueza dos pobres, oporemos o combate de classe que vai atirar com a conversa da "nação" para o diabo que a carregue.
Havemos de vencer.


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