Na tradicional Festa do Pontal, Passos Coelho, deputado e líder do maior partido da direita nacional e ex-primeiro-ministro dos XIX e XX Governos Constitucionais da República Portuguesa, proferiu as seguintes reflexões no final do seu discurso de ontem:
“Vejam as alterações recentes que foram feitas recentemente à lei de estrangeiros. E que na prática permite que qualquer pessoa possa ter autorização de residência em Portugal desde que arranje uma promessa, uma promessa! Reparem bem, de poder ter um contrato de trabalho. E já que o Estado deixará de ter condições para simplesmente expulsar alguém que possa, sendo imigrante, ter cometido crimes graves contra a própria sociedade portuguesa. Este foi o governo que aprovou estas alterações. Porque é que não discutem na sociedade portuguesa as implicações que para a segurança do país, a médio e longo prazo, isto pode trazer?“
Discutamos:
• As alterações a que podemos especular a que se refere são de facto “recentes”, dado que estão contidas num diploma aprovado na sua fase final pelo Plenário da Assembleia da República há cerca de dois meses (e não pelo Governo, como o presidente do PSD afirma), a 23 de Junho (Passos Coelho estava lá), com os votos contra dos deputados do PSD e CDS-PP e aprovação dos restantes deputados do PS, BE, PCP, PEV e PAN.
• “Na prática”, uma promessa de contrato de trabalho não é uma coisa leviana, como saberão a maior parte dos portugueses trabalhadores por conta de outrém por experiência própria. Passos não é jurista (consta que é economista), mas deduzo que tem assessores com capacidades de lhe explicar o conceito. Caso não tenha, pode sempre consultar o insuspeito-de-simpatias-com-esta-casa jornal SOL, que falou com especialistas na matéria que lhe podem fazer um desenho: “O diploma tem origem na transcrição de diretivas europeias que visam facilitar a entrada de trabalhadores temporários no espaço europeu: apanha de fruta, essas coisas”, aponta um deles. “É também importante clarificar que a ‘promessa de um contrato de trabalho’ não é uma coisa verbal; é um contrato que promete um contrato de trabalho, por assim dizer, e já é vinculativo”, aponta outro, que fornece mais exemplos: “É natural que uma empresa queira conhecer a pessoa antes de oferecer um contrato definitivo; que queira entrevistar ou fazer um período de estágio. Este diploma vem facilitar isso. Não é uma coisa negativa. Traz mais mobilidade”.
• O Estado não “deixará de ter condições para simplesmente expulsar alguém que possa, sendo imigrante, ter cometido crimes graves contra a própria sociedade portuguesa” e é grave que Passos Coelho não saiba o que o PSD votou, abusando assim da sua estulta ignorância para desinformar os militantes do PSD e os cidadãos que possam eventualmente ver nele uma alternativa à atual maioria parlamentar. O que a nova lei clarifica, na alteração que faz ao artigo 135º, é o seguinte:
“Não podem ser afastados coercivamente ou expulsos do País os cidadãos estrangeiros que:
a) Tenham nascido em território português e aqui residam;
b) Tenham efetivamente a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa a residir em Portugal;
c) Tenham filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assumam efetivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação;
d) Se encontrem em Portugal desde idade inferior a 10 anos e aqui residam.
2 – O disposto no número anterior não é aplicável em caso de suspeita fundada da prática de crimes de terrorismo, sabotagem ou atentado à segurança nacional ou de condenação pela prática de tais crimes.“
A lei não impede por exemplo a expulsão de um cidadão estrangeiro que cruze o Guadiana em Alcoutim, mate uma ou mais pessoas, e depois decida estabelecer residência num monte alentejano; a lei aliás não mexe no artigo 134º, “Fundamentos da decisão de afastamento coercivo ou de expulsão”, que estabelece que “sem prejuízo das disposições constantes de convenções internacionais de que Portugal seja Parte ou a que se vincule, é afastado coercivamente ou expulso judicialmente do território português, o cidadão estrangeiro:
a) Que entre ou permaneça ilegalmente no território português;
b) Que atente contra a segurança nacional ou a ordem pública;
c) Cuja presença ou atividades no País constituam ameaça aos interesses ou à dignidade do Estado Português ou dos seus nacionais;
d) Que interfira de forma abusiva no exercício de direitos de participação política reservados aos cidadãos nacionais;
e) Que tenha praticado atos que, se fossem conhecidos pelas autoridades portuguesas, teriam obstado à sua entrada no País;
f) Em relação ao qual existam sérias razões para crer que cometeu atos criminosos graves ou que tenciona cometer atos dessa natureza, designadamente no território da União Europeia;
g) Que seja detentor de um título de residência válido, ou de outro título que lhe confira direito de permanência em outro Estado membro e não cumpra a obrigação de se dirigir, imediatamente, para esse Estado membro;
h) O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que o estrangeiro haja incorrido;“
A lei não toca nestes motivos, mas deixa de ser cega à condição social do cidadão visado, à sua ligação ao nosso país e aos cidadãos menores (portugueses ou não) que poderiam ser afectados por uma expulsão, como era a anterior versão, proposta pelo PSD e CDS-PP. Parafraseando o PCP, o proponente original da alteração legal em questão, não faz sentido que um cidadão nascido em Portugal ou que tenha tido em Portugal a sua formação desde criança, ou que tenha filhos menores em Portugal, e que até possam ser cidadãos portugueses e que cá permaneçam, possa ser expulso para países com os quais não tem qualquer ligação, que não tem qualquer responsabilidade por eventuais crimes que tenham sido cometidos, podendo deixar em Portugal filhos menores que serão assim injustamente penalizados, fazendo recair sobre estes uma penalização que não tem qualquer justificação. Os cidadãos que têm em Portugal todas as suas raízes familiares devem ser julgados e punidos em Portugal pelos crimes que cometam. Não faz qualquer sentido que, com a invocação discricionária de razões securitárias, o Estado Português se arrogue o direito de expulsar cidadãos que fazem parte do nossa sociedade para países com que estes não terão qualquer outra relação que não seja um vínculo formal de nacionalidade que não corresponde à realidade da vida.
E por fim, por proposta do PS, foi introduzida uma cláusula que trava possíveis abusos legais desta proteção, deixando claro que estas exceções não podem ser invocadas “em caso de suspeita fundada da prática de crimes de terrorismo, sabotagem ou atentado à segurança nacional ou de condenação pela prática de tais crimes“, de forma a garantir a segurança de todos os cidadãos, portugueses ou não.
Tenhamos também em conta a janela temporal destas declarações: Pedro Passos Coelho aproveitou a rentrée política do ano legislativo 2017/2018 para atacar propostas relativas a projetos de lei que deram entrada no parlamento na Primavera de 2016; que foram debatidos em Plenário em Outubro de 2016 (com uma curta intervenção crítica do PSD, pelo ex-ministro da Justiça Fernando Negrão, que todavia reconhecia “mérito” nas iniciativas e sublinhava o “espírito humanista” do debate); que estiveram 8 meses a ser discutidos na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, com audiências e vários pareceres de entidades externas, como a Ordem dos Advogados, o Conselho Superior de Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público ou o Conselho das Migrações (com opiniões escritas da parte da Confederação Empresarial de Portugal, Confederação de Comércio e Serviços de Portugal, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, União Geral dos Trabalhadores, Autoridade para as Condições do Trabalho, Fundação Calouste Gulbenkian, Direção Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas, entre outras entidades públicas e privadas); que, sob a forma de texto de substituição, foram a votos em sede de comissão na Primavera deste ano, onde as intenções do BE e PCP (autores dos projetos originais) e do PS (autor da já referida alteração na especialidade) foram consagradas num só texto – sessão onde nenhum deputado do PSD propôs qualquer alteração aos artigos votados; cujo texto de substituição foi em Junho passado ao Plenário para votação final global, onde nenhum dos 89 deputados do PSD fez qualquer declaração oral ou escrita; que foi promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa, sem qualquer análise crítica, e publicado como Lei em Diário da República no mês passado, sem que nenhum parlamentar do PSD tenha vindo a público apelar ao veto ou exigido uma fiscalização da constitucionalidade, tendo em vista uma alegada violação do direito à segurança ameaçada pela presença no país de “qualquer um”.
E como tal, 15 meses após o início do processo legislativo e quase 1 mês depois da promulgação pelo Presidente da República, e 24 horas depois de um atentado terrorista de extrema-direita neo-nazi e na véspera dumas autárquicas em que o PSD patrocina um candidato racista num dos concelhos mais populosos do país, é suposto o PSD esperar que o resto da sociedade ache normal e natural que Passos Coelho se indigne agora com uma putativa possibilidade de “qualquer um viver em Portugal”, alegadamente preocupado com a segurança nacional?
Ainda neste tema, Passos Coelho destacou no Pontal esta sua visão de Portugal:
“O que vai acontecer ao país seguro que temos sido se esta nova forma de ver a possibilidade de qualquer um residir em Portugal se mantiver? É por isso que o PSD se mantém como um partido que não cede à facilidade, que não cede à demagogia, que não cede ao radicalismo. É por isso que temos uma cultura diferente da Geringonça.“
Num ato que deve preocupar qualquer democrata em Portugal e envergonhar ‘qualquer um’ que se identifique legitimamente com o seu passado político, o PSD está a ceder a olhos vistos a um discurso que vai contra a sua matriz fundadora, contra os seus princípios basilares, contra a sua cultura de defesa dos valores liberais.
Numa cultura, de facto, radicalmente diferente.
Numa cultura, de facto, radicalmente diferente.
geringonca.com
Sem comentários:
Enviar um comentário