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domingo, 17 de setembro de 2017

Instrumentos musicais populares





Não são muitas as obras de referência sobre os instrumentos musicais tradicionais na Região. Até finais do século XIX, não há informação suficientemente rigorosa sobre os instrumentos usados pelo povo madeirense.
A referência mais antiga de que dispomos é a obra Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, manuscrito datado de 1590 e de que Álvaro Rodrigues de Azevedo editou, em 1873, a parte que diz respeito à Madeira. Aí podemos ler que na festa de Nossa Senhora do Faial, a 8 de setembro, os romeiros “juntos fazem muitas festas de comédias, danças, e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 1873, 99).
Noutra obra um pouco posterior podemos encontrar referências à utilização de instrumentos musicais pela população local. Trata-se do relato das festas levadas a efeito em vários locais do país pela Companhia de Jesus, quando foi conhecida a notícia da canonização de S. Inácio de Loyola e S. Francisco Xavier (Relação, 1622). Um dos locais em que se realizaram esses festejos foi o Funchal e o texto descreve-os com minúcia. No que diz respeito a instrumentos musicais, surgem referidos os seguintes: trombeta bastarda, flautas, tamboris, violas, rabequinha, pandeiro, alaúdes, charamelas de cana, tambor, cestos, ginebra e búzio. Alguns destes instrumentos continuaram a ser muito utilizados na Região.
Durante os séculos XVIII e XIX foram numerosos os livros publicados por viajantes, essencialmente britânicos, mas também por alguns alemães e franceses. Foram igualmente editadas algumas gravuras com cenas da vida das populações regionais. Apesar da grande quantidade deste tipo de livros, as informações que os mesmos contêm devem ser avaliadas com muito cuidado. Os textos destas obras resultaram da experiência dos seus autores, ou seja, de passagens pela ilha da Madeira com uma observação distante das populações, sendo, muitas vezes, as narrativas completadas ou tornadas mais interessantes com transcrições de outras obras, sem qualquer referência a fontes. Além disso nota-se que, muitos dos visitantes/ autores destes textos assumiam perante a população local uma atitude de superioridade que lhes dificultava a objetividade de observação. Também as gravuras são consideradas pouco fidedignas. Não eram trabalhos totalmente executados no local, pelo que muitas vezes os esboços traçados eram posteriormente “completados” após o regresso a casa, o que facilmente proporcionaria que a memória fosse traída pelo tempo decorrido. A imaginação colmataria as lacunas detetadas. Por último, é preciso recordar que, para muitos visitantes europeus, a Madeira era o mais próximo e acessível destino exótico. Daí facilmente poderia resultar que apenas fossem retratados os aspetos mais distintos das suas próprias práticas populares. Haverá sempre lugar para a dúvida relativamente aos critérios de seleção de cenas a apresentar.
Por tudo isto, a grande maioria destas obras de viajantes que passaram pela Madeira não deve servir como fonte de informação, pois são raros os autores que demonstram ter conhecimentos de música que lhes permitam fazer descrições ou avaliações corretas daquilo que presenciaram.
Como exceções a esta regra podemos considerar a obra de John Adams Dix, que inclui uma boa descrição do machete (braguinha) e a obra do inglês Robert White, que refere, como instrumentos populares madeirenses, o machete ou machetinho, a viola-francesa, a guitarra e a rabeca. Emmeline Stuart Wortley e Isabella de França foram outras duas autoras que fizeram referência credível a instrumentos musicais. Refira-se ainda Platon de Waxel, que em 1869 publica na Gazeta da Madeira um artigo onde aparece referido pela primeira vez o rajão.
De facto, é apenas no século XX que encontramos o primeiro trabalho resultante de uma investigação científica sobre o tema: Tocares e cantares da ilha. Estudo do folclore da Madeira, escrito por Carlos Santos. A partir daí, muito em particular a partir dos anos 70, foram surgindo diversos estudos, essencialmente sob a forma de artigos em revistas e jornais.
A escassa contribuição de bibliografia ou iconografia com mais de 70/80 anos torna indispensável um trabalho aprofundado de comparação dos instrumentos musicais madeirenses com os das restantes regiões do país, de forma a permitir descortinar pistas sobre as suas origens e percursos. Essencial para isso é a obra de Ernesto Veiga de Oliveira, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, editado pela primeira vez em 1964, embora não aborde a Região com grande profundidade.
Em termos genéricos, podemos considerar que a tradição musical madeirense, no que diz respeito aos instrumentos, resulta da fusão de três componentes: instrumentos comuns a toda a tradição portuguesa, atual ou histórica; instrumentos diretamente associáveis a uma origem no noroeste; e criações locais.
Assim, pode-se concluir que na Região da Madeira existe uma série de instrumentos que podem ser encontrados em todo o país, não impedindo a presença de formas mais ou menos ancestrais, que na Região encontraram a particular combinação com os instrumentos originários do noroeste, ponto de partida de muitos dos povoadores da Madeira. Por outro lado, como é natural, a criatividade local encontrou formas de responder às suas necessidades através de criações próprias. Desta convivência resultou a tradição própria da Madeira.
Os instrumentos tradicionais madeirenses são em seguida abordados, seguindo o conhecido sistema de classificação definido por Sachs e Hornbostel.
Idiofones
De percussão direta
Castanholas - Foto: Rui Camacho

Castanholas – Foto: Rui Camacho




CastanholasAs castanholas são compostas por duas peças de madeira escavadas no seu interior e presas por um cordão, que permite que se entrechoquem de forma adequada, ao mesmo tempo que serve para as fixar na palma da mão. As castanholas presentes na tradição madeirense são específicas da freguesia da Tábua e estão associadas às Missas do Parto, realizadas nas últimas madrugadas antes do Natal. Dois grupos existentes na freguesia dirigiam-se para a igreja na vila, tocando as castanholas. Estas podiam variar em tamanho, desde as que cabiam na palma da mão até outras que, pelo seu tamanho, tinham de ser tocadas com as duas mãos; estas tinham pegas para esse efeito. Outras, mais elaboradas, fruto da criatividade do seu autor, podiam ter formatos como um avião, cabeças de animais ou outros, usando-se, por vezes, um cordel para as acionar.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, foi proibida a sua execução, pelo grande ruído que faziam. Em 1946, após o final das hostilidades, as castanholas reapareceram na festa de São Pedro da Ribeira Brava. No entanto, aos poucos, também fruto da forte emigração que se fez sentir, foram desaparecendo. Começando por ficar caída no esquecimento, esta tradição de tocar castanholas tem sido alvo de várias tentativas de recuperação.
Não havia uma madeira recomendada para a sua confeção, podendo ser usado castanho, nogueira, buxo, urze, etc. Os grupos ensaiavam ao longo dos meses anteriores à Festa, executando na sua marcha diversos toques. O grande objetivo de cada grupo era conseguir sobrepor-se ao outro, abafando o seu toque. Daí que houvesse uma constante procura de construir instrumentos que produzissem o som mais forte possível.
Tréculas


Tréculas - Foto: Rui Camacho

Tréculas – Foto: Rui Camacho





As tréculas são um conjunto de lâminas de madeira fina (umas 10 ou 12), ligadas entre si por um fio flexível (tanto pode ser um cordel como um fio de nylon, ou outro semelhante), tendo a separá-las pequenas tiras de madeira, atravessadas pelo fio referido. É esta separação das lâminas que permite que elas choquem entre si, produzindo o som próprio deste instrumento. Nos dois extremos do conjunto, o fio termina com argolas que, agarrando-se uma em cada mão, podem ser agitadas de modo a fazer entrechocar as lâminas. Trata-se de um instrumento de acompanhamento encontrado em diversos pontos do país com características semelhantes.

Chocalhos – Foto: Rui Camacho
Chocalhos:

Chocalhos - Foto: Rui Camacha





Este instrumento é constituído por um pedaço de madeira em que se fixam cápsulas de refrigerantes espalmadas. Usam-se, para o efeito, pregos colocados de forma a permitir que aquelas se desloquem, chocando entre si. Uma variante menos frequente utiliza uma canavieira em que se recorta uma secção média longitudinal, onde se movimentam as cápsulas presas com um prego ou arame fixo na parte lateral da canavieira.
O seu uso tradicional era predominantemente como acompanhamento rítmico em situações de grupos que se deslocavam a arraiais ou em excursões. Embora seja um instrumento pouco generalizado no país, existem referências de que o mesmo é usado em zonas como o Alentejo ou Barcelos.
Ferrinhos, triângulo ou sininhos: Também na Madeira se encontra este instrumento de expansão nacional. Trata-se de uma simples barra de ferro cilíndrica dobrada em triângulo, com um vértice aberto, suspenso por um fio ou agarrado com a mão, e que é percutido com outra peça metálica, que tanto pode ser uma pequena barra como um prego comprido. Abrindo e fechando a mão, agarrando o triângulo, obtém-se uma pequena variação no som emitido pelo instrumento.

Ferrinhos - Foto: Rui Camacho

Ferrinhos – Foto: Rui Camacho
De percussão indireta
Brinquinho
Brinquinho - Foto: Rui Camacho


Brinquinho – Foto: Rui Camacho





Este é o instrumento mais peculiar da Madeira, embora se possam encontrar nele afinidades com o zuca-truca minhoto. É composto por um longo bambu, percorrido no seu interior por um arame que, acionado na sua extremidade inferior, faz movimentar os bonecos colocados no topo, munidos de castanholas nas costas. A referência iconográfica mais antiga na Madeira data de início do séc. XX e ainda se aparenta muito a este instrumento. Com o tempo, foi assumindo outras características: a cana ficou mais curta (60 a 70 cm); tem duas rodas de bonecos sobrepostas, com castanholas nas costas; sob os pés dos bonecos, prendem-se tampas de refrigerante espalmadas, que serão movimentadas pela deslocação dos bonecos, fazendo aumentar riqueza acústica do instrumento; no topo do brinquinho, coloca-se mais um par de bonecos.

Grilinho – Foto: Rui Camacho




Grilinho - Foto: Rui Camacho


Grilinho: Em termos de utilização como instrumento musical na Madeira, o grilinho é uma adaptação e popularização daquilo que era, anteriormente, um objeto de caráter lúdico. Era  muito comum nas famílias os pais aproveitarem as cascas de noz para lhes fixarem um pequeno pedaço de madeira; pressionando e libertando a sua extremidade, produzia-se o som. No processo de assimilação como instrumento musical, houve uma alteração na escolha da matéria-prima, em que a casca de noz foi substituída por um pequeno tronco de canavieira. Corta-se neste uma abertura, onde se fixa de forma flexível uma palheta do mesmo material. Carregando na sua extremidade elevada e soltando-a, a oposta vai chocar com o corpo do grilinho, produzindo assim o som. Com esta nova forma, começou a ser adotado por grupos folclóricos ou outros grupos musicais.

De fricção
Reco-reco

Reco-reco - Foto: Rui Camacho

Reco-reco – Foto: Rui Camacho




Trata-se de um instrumento tipicamente minhoto, composto por pau ou cana com uns 50 a s70 cm de comprimento, em que se talha uma sucessão de rasgos transversais paralelos. Outro pau, geralmente um pedaço de cana rachada, é usado para raspar sobre esta superfície, produzindo assim o ritmo desejado. Sendo de confeção muito simples, e usando-se com frequência pedaços de tronco ou ramos com o formato apropriado, os seus fabricantes mais habilidosos ou criativos podem decorar as extremidades do reco-reco de acordo com o seu formato. Assim, podem aparecer rostos esculpidos ou pintados, por vezes com uma rica ornamentação. Tem um uso muito frequente, quer nos arraiais madeirenses, quer por parte de grupos musicais, sendo um dos elementos da sua componente rítmica.

Pinhas – Foto: Rui Camacho



Pinhas - Foto: Rui Camacho




Pinhas: Por vezes a produção dos ritmos e dos sons é feita com recurso a materiais disponíveis no meio ambiente que, pelas suas características, não necessitam de qualquer trabalho de adaptação ou construção. É o caso das pinhas. Esta tradição de aproveitar os recursos disponíveis nasceu de uma opção muito frequente em situações como a deslocação para arraiais que, sendo a pé, não convidava ao transporte de muito peso. Desse modo, aproveitar duas pinhas para, raspando-as, produzir o ritmo de acompanhamento dos cantos era uma solução fácil e cómoda. Não tem uso exclusivo na Madeira, podendo dizer-se que é fácil de encontrar em regiões de pinhal.

Membranofones
De percussão
Bombo

Bomo - Foto: Rui Camacho



Bombo – Foto: Rui Camacho





Descrito genericamente, trata-se de um corpo cilíndrico em cujas bases se fixam duas peles esticadas graças a um sistema de parafusos ou uma corda que, passando por cada uma das peles alternadamente, contorna todo o corpo do bombo. Ao longo da corda são colocadas pequenas presilhas que, deslizando ao longo desta, alteram a tensão das peles. Na sua parte lateral, existe um pequeno orifício que assegura o equilíbrio da pressão entre o interior e exterior do bombo. As membranas são percutidas por bastões de madeira, com formato muito variável. A proporção entre a altura e o diâmetro do cilindro é muito variável, tendo como resultado sonoridades díspares. Aquela e a decoração podem tornar-se elementos identificadores do autor do instrumento.
Esta descrição corresponde, de um modo genérico, aos bombos que se encontram na Madeira. No entanto, não havendo construtores locais que se dediquem a este instrumento, muitas vezes o que acontece é ser o potencial interessado a fabricar o seu próprio bombo. Deste modo, é grande a diversidade dos instrumentos que podemos encontrar.

Pandeiro – Foto: Rui Camacho




Pandeiro - Foto: Rui Camacho


Pandeiro ou pandeireta: Trata-se de um instrumento em que a membrana é percutida diretamente pela mão do executante. Um aro circular de madeira tem uma pele fixa num dos extremos. A sua altura é pequena, cerca de 6 cm. O diâmetro é igualmente muito variável, com uns 20 a 30 cm. A toda a volta do seu corpo, possui uma série de ranhuras onde se colocam soalhas metálicas, além de uma abertura maior que permite segurá-lo com uma mão. As soalhas vibram quando a pele é percutida, sendo também possível fazê-las soar sacudindo o instrumento. Até aos anos 80, encontravam-se pandeiros de fabrico local. Os instrumentos posteriores são importações do continente português ou obra de algum raro autodidata.





Num-num – Foto: Rui Camacho
Num-num - Foto: Rui Camacho





Num-num: Este é um dos casos de instrumentos que passaram de uma utilização meramente lúdica para a inclusão no conjunto de instrumentos musicais. Tradicionalmente era feito usando um pedaço de tronco de canavieira de uns 10 cm de comprimento. Perto de uma das extremidades, retirava-se parte da casca, deixando apenas uma fina película interior com uns 2 cm de comprimento, que iria produzir o som. Este resultava da própria voz do executante, que encostava a boca a esta película, fazendo-a vibrar. Este processo de fabrico tinha a desvantagem de o instrumento ser de curta duração. Ao secar a cana, a película perdia elasticidade, deixando de vibrar adequadamente e rompendo-se.
A partir dos anos 90, o fabricante José Camacho introduziu uma inovação que o tornou mais durável: em vez de deixar a película interna do tronco, faz um orifício neste e tapa a extremidade mais próxima da cana com um pouco de plástico fino (uma alternativa antiga era o papel de celofane dos maços de cigarros). O funcionamento do instrumento mantém-se, mas a sua longevidade é muito maior.
Em Santo António chegou a existir, nos anos 40, a chamada Banda dos Canudos, composta por um grupo de rapazes de idades entre os 8 e os 13 anos. Um dos elementos fez cópias em madeira dos instrumentos de banda, depois forrados com papel de sacos de cimento, a que se adaptava um num-num. Os rapazes ouviam as bandas a tocar e reproduziam as músicas com os seus instrumentos. Faziam ensaios regulares e tiveram atuações em festas na freguesia e mesmo numa inauguração oficial na zona.
Aerofones
De bisel ou de aresta
Pife

Pife - Foto: Rui Camacho



Pife – Foto: Rui Camacho




O pife tem caraterísticas muito peculiares, pois é o único aerofone de bisel tradicional na Madeira, e é usado em exclusivo na Primeira Lombada da Ponta Delgada, associado aos festejos do Natal. Durante o percurso para as Missas do Parto, grupos de rapazes iam executando uma melodia simples, destinada a chamar os moradores para se juntarem ao grupo na deslocação até à igreja. O seu uso tem perdurado ao longo dos anos em diversos eventos do ciclo do Natal daquele lugar.
Trata-se de um pedaço de canavieira de 20 a 25 cm de comprimento e cerca de 1,5 cm de diâmetro. Corta-se junto a um nó, de modo a ficar a extremidade tapada. A cerca de 1 cm desta, perfura-se a embocadura, com um ferro em brasa. O mesmo ferro serve para fazer os dois ou três furos próximo da outra extremidade, de onde sairão as diferentes notas entoadas.

Apito – Foto: Rui Camacho




Apito - Foto: Rui Camacho



Apito: No sítio do Jamboto, freguesia de Santo António, existiu outro grupo, que se denominava Música dos Canudos, composto por rapazes entre os 12 e 18 anos. À semelhança da Banda dos Canudos, da mesma freguesia, este grupo fazia réplicas de instrumentos musicais, a que juntavam um apito. Este podia assumir duas formas, sendo sempre feito em canavieira: a de um apito propriamente dito; ou a forma de uma flauta de bisel, com três ou quatro furos na extremidade inferior. Era essencialmente a acompanhar as Missas do Parto ou Reis que este grupo se juntava, podendo ainda tocar espontaneamente, quando se encontravam nos tempos livres.


Foto: Rui Camacho


Foto: Rui Camacho






De bocal


Búzio - Foto: Rui Camacho

Búzio – Foto: Rui Camacho






Búzio: 
Não é muito fácil encontrar o búzio associado à tradição musical madeirense, até porque esta não é uma concha dos mares desta zona do Atlântico. A sua sonoridade permite que seja escutado a grande distância, pelo que está associado a festas ou trabalhos que implicam deslocações. É o caso das cantigas de borracheiros, entoadas pelas veredas da serra entre a costa norte da Madeira e o Funchal, ou do toque das castanholas no percurso para as Missas do Parto. Em ambos os casos, para além da componente musical inerente, tem associado o fator de aviso à distância da aproximação dos grupos em que está integrado.
Em várias regiões do continente português, o búzio tinha um importante papel de meio de comunicação, quer como aviso para problemas como o fogo, quer para facilitar a localização em condições de nevoeiro. Também os levadeiros fizeram uso deste meio de comunicação à distância.
De palhetas
As palhetas têm como antepassado ancestral um instrumento chinês, chamado cheng. No entanto, os três aerofones de palheta que vão ser abordados de seguida são resultado de linhas de evolução diferentes, daí assumirem as suas características próprias. Todos são produtos industriais introduzidos na Região a partir de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX. De nenhum deles se conhecem exemplares de construção local.
Gaita de beiços ou harmónica

Gaita de beiços - Foto: Rui Camacho




Gaita de beiços – Foto: Rui Camacho





A harmónica teve origem na Alemanha, onde foram fabricadas as primeiras, no séc. XIX. Matthias Hohner fundou uma companhia, em 1857, que fabricou gaitas-de-beiços e outros instrumentos em grande escala, que exportou para muitos países. Não se conhece bem o processo da chegada da gaita-de-beiços à Madeira, que deve ter tido lugar ainda em finais do séc. XIX. Só se sabe que todos os instrumentos eram importados, sendo o referido fabricante alemão o mais conhecido. No entanto, houve também uma época em que apareceram no mercado gaitas de fabrico nacional.
A a gaita-de-beiços é composta por duas placas onde estão colocadas finas palhetas de metal. O instrumento possui uma série de orifícios pelas quais se sopra ou aspira o ar. A passagem do ar faz vibrar uma ou mais palhetas, assim produzindo o som. O instrumento não possui caixa-de-ressonância, podendo o músico usar as mãos em concha para, de certa forma, a simular.
Pela sua portabilidade, custo acessível, sonoridade e por ser um instrumento completo, rapidamente se tornou popular. A presença mais notória na Madeira diz respeito à sua utilização nos arraiais ou momento de lazer individual. As gaitas de uso popular sempre foram exclusivamente diatónicas, embora existam também outras cromáticas, não usadas na tradição.

Harmónica (acordeåo diatónico) – Foto:Rui Camacho





Harmónica (acordeåo diatónico) - Foto:Rui Camacho


Harmónica (acordeão diatónico)
O acordeão diatónico deverá ter chegado à Madeira em finais do séc. XIX, provavelmente pela mão de emigrantes. Sempre foi um instrumento das classes populares.
Descrito de forma sucinta, o instrumento típico desse período é composto por um fole de cartão especial, fixo nas partes laterais. Do lado direito, tem uma fieira de dez botões, cada um com duas palhetas livres associadas. Na parte superior, tem quatro dispositivos para registos sonoros, que servem para alterar o timbre. Do lado esquerdo, encontram-se duas chaves metálicas para acompanhamento da melodia e uma outra chave do ar, que permite retirar o ar e fechar o instrumento sem emitir qualquer som. Outro aspeto relevante do instrumento é que, carregando no mesmo botão, se obtém ao fechar o fole uma nota diferente da que se obtém ao abri-lo.
Foi um instrumento muito popular e de presença comum nos arraiais e grupos folclóricos, até começar a ser destronado pelo acordeão cromático, dotado de uma maior amplitude musical e outras possibilidades em termos de acordes. Existem harmónicas com três afinações diferentes: dó-fá; sol-dó e fá-dó.
Acordeão cromático

Acordeão cromático - Foto: Rui Camacho






Acordeão cromático – Foto: Rui Camacho




Tal como o seu parente diatónico, entrou na Madeira trazido por emigrantes, provavelmente nas primeiras décadas do séc. XX.
Trata-se de um instrumento composto por um teclado, um fole e um conjunto de botões (baixos). O fole provoca a deslocação do ar que, fazendo vibrar palhetas associadas aos botões ou teclas, produz as diferentes notas. Do lado direito, encontra-se o teclado vertical semelhante ao do piano, com as notas mais graves em cima. Do lado esquerdo, situam-se os botões (em número variável), que exercem a função de baixo ou de baixo livre. Existem ainda, de ambos os lados, os registos, teclas que permitem modificar o som emitido.
A sua chegada provocou grandes alterações no panorama musical da Região, pela sua riqueza sonora. De facto, visto que o uso de um único acordeão pode ocupar o espaço sonoro de todo um conjunto de instrumentos tradicionais, aos poucos foi tendendo a substituí-los, tornando-se o seu tocador o centro de animação em arraiais tradicionais. Esse papel foi ainda facilitado pelo facto de, nestas situações, se necessitar de apenas um músico. O acordeão tem continuado a ocupar um lugar destacado nas festividades tradicionais. Desde os anos 90 do século XX, houve, por parte de diversos grupos folclóricos, uma revalorização do acordeão diatónico, que acabou por, em vários casos, substituir o cromático, dando aos restantes instrumentos a possibilidade de afirmarem o seu espaço.
Cordofones
Dentro do conjunto dos cordofones tradicionais na Madeira, encontramos aqueles que são exemplos locais de instrumentos de utilização nacional, versões madeirenses de cordofones comuns em outras zonas do país ou ainda instrumentos únicos. Todos têm em comum pertencer ao tipo alaúde – com caixa-de-ressonância.
Existe uma longa tradição de fabrico de cordofones na Madeira. Conhece-se o nome de alguns artesãos cuja qualidade de trabalho os tornou figuras de referência incontornável. É o caso de António Quintal, no séc. XVIII, ou de Octaviano João Nunes e João Nunes, “o diabinho”, no século seguinte. Na mudança para o séc. XX, destacou-se Augusto Merciano da Costa que, para além de ser um renomado construtor dos instrumentos tradicionais, se evidenciou pelas formas criativas que deu a alguns deles: com feitios de peixe, de coração, de pavão, de barco, etc. Merciano da Costa foi o autor de um conjunto de instrumentos musicais oferecidos ao rei D. Carlos e à rainha D. Amélia quando visitaram a Madeira, em 1901.
Nos finais do século XX, estavam ainda em atividade os seguintes construtores de cordofones: Carlos Jorge Rodrigues, Manuel Freitas Moniz, José Marcelino Mendes, Francisco Mendonça Rodrigues Cambé, José Gomes Henriques e Manuel Gomes Passos.

Viola de Arame – Foto: Rui Camacho





Viola de Arame - Foto: Rui Camacho



Viola de arame: Este instrumento madeirense faz parte da família de violas populares conhecidas em muitas regiões do país, assumindo em cada uma a sua denominação. É o caso da braguesa no Minho, da amarantina no Douro Litoral, da toeira na Beira Litoral, da beiroa da Beira Baixa, da campaniça do Alentejo ou da viola da terra dos Açores. O número de cordas e a afinação variam de região para região, mas têm em comum serem produto da evolução de tradições locais, sempre asseguradas por via popular. Na Madeira, é o instrumento privilegiado de acompanhamento da charamba, surgindo noutros géneros a par de distintos instrumentos.
De pequeno enfranque, boca com abertura circular, a escala entra em ressalto sobre o tampo harmónico, dividida em trastos metálicos – entre 14 e 17. Esta viola apresenta cabeça com cravelhas perpendiculares e, nos modelos posteriores, tem um mecanismo de carrilhão metálico. Possui cravelhame para 10 cordas, sendo que se utilizam apenas 9. O encordoamento é feito com cinco ordens de cordas, que se subdividem em quatro ordens de cordas duplas e uma simples (a 2.ª do agudo para o grave). As suas dimensões podem variar, tendo a viola de arame geralmente um comprimento total de cerca de 86 cm, correspondendo metade do comprimento à caixa-de-ressonância. O braço mede cerca de 42 cm e o tiro de corda é de cerca de 51 cm. Todas as cordas são metálicas, tendo a afinação sofrido alterações ao longo do tempo.




Braguinha - Foto: Rui Camacho

Braguinha – Foto: Rui Camacho








Braguinha ou machete: O braguinha é a versão madeirense do cavaquinho. Terá vindo para a Região trazido pelos povoadores continentais. No séc. XIX foi conhecido como machete, denominação que foi sendo usada por alguns na tentativa de fazer reafirmar o nome. Embora sendo um instrumento de tradição popular, na segunda metade daquele século gozou de muita popularidade em meios citadinos, sendo mesmo considerado o “enlevo das damas”, segundo Carlos Santos. Mas o percurso deste instrumento não se ficou pela Madeira. Sabe-se que foi levado por emigrantes, em finais do séc. XIX, para o Havai, território onde veio a dar origem ao ukelele.
Tal como o seu parente continental, tem quatro cordas, mas distingue-se por ter a escala sobreposta ao tampo, ao contrário daquele, em que é rasa. As cordas eram tradicionalmente de tripa, começando a surgir nos inícios do séc. XX a tendência para a prima ser em metal. Mais tarde, todas passaram a ser metálicas. As suas dimensões aproximadas são: comprimento total de cerca de 51 cm; o braço mede cerca de 30 cm; e a escala tem cerca de 23 cm, dispõe de 17 trastos. A sua afinação é, do agudo para o grave: ré-si-sol-ré.

Rajão – Foto: Rui Camacho



Rajão - Foto: Rui Camacho




Rajão: Este é um instrumento apenas existente na tradição musical madeirense. Segundo alguns estudiosos, será o sobrevivente de um instrumento extinto na tradição continental mas que o relativo isolamento da Madeira permitiu que sobrevivesse na Ilha. A sua afinação reentrante seria um dos traços que ajudariam a comprovar essa antiguidade, pois era uma afinação vulgarizada no séc. XVIII. O rajão é um instrumento muito popular, de presença quase obrigatória nos arraiais. A sua facilidade de aprendizagem fez dele um bom acompanhante para os despiques. Também nos grupos folclóricos a sua utilização é de regra, tradicionalmente como instrumento de acompanhamento.
O grande número de fabricantes que tem tido levou a uma diversidade de dimensões, com um comprimento total entre os 65 e 73 cm, com 17 ou 18 trastos. As cinco cordas sofreram uma evolução ao longo dos tempos. De um total de cordas de tripa, nos inícios do séc. XX já era comum coexistirem duas cordas metálicas e três de tripa.





Viola Francesa – Foto: Rui Camacho
Viola de seis ou viola francesa




Viola Francesa - Foto: Rui Camacho



A viola a que na Madeira se dão, indiferentemente, estes nomes é a que se conhece em todo o país, sem qualquer característica específica da Região. Atualmente, tal como no resto do país, é frequente ser chamada viola ou guitarra. Sendo um instrumento trazido por elementos de classes mais cultas, perfeitamente integrado em tradições culturais nacionais e destinado a interpretar música não tradicional, justifica-se o cuidado na preservação das suas características. A sua facilidade de execução fez com que rapidamente se tornasse muito popular, tendo uma presença muito frequente em todo o tipo de grupos musicais.
Esta viola é usada na Madeira em todos os géneros musicais, quer como solista, quer com função de acompanhamento. O instrumento tem um comprimento total de cerca de 1 m, com uma escala de 44 cm de comprimento em ressalto sobre o tampo e 18 trastos. Dispõe de seis cordas simples de aço, afinadas do agudo para o grave: mi-si-sol-ré-lá-mi.
Rabeca
Nome popular por que o violino é conhecido em diversas regiões do país. Na Madeira houve alguns artesãos que experimentaram fabricar este instrumento. No entanto, em geral, tratava-se de uma produção para uso próprio. Muitos dos instrumentos usados na música tradicional eram obras de importação. Na tradição musical da ilha do Porto Santo, a rabeca tem um papel fundamental nos bailes, em danças como como a Meia Volta ou Ladrão.
Pela sua complexidade de aprendizagem, não são muitos os executantes da tradição que se podem encontrar. As suas quatro cordas de aço são afinadas por quintas do agudo para o grave: mi-lá-ré-sol.

Bexigoncelo – Foto: Rui Camacho
Bexigoncelo: 


Bexigoncelo - Foto: Rui Camacho





O bexigoncelo é provavelmente uma criação de Manuel Teixeira de Mendonça, natural de São Jorge. Como gostava de percorrer as diversas festas das freguesias da zona norte da Madeira, cantando e tocando, para se acompanhar criou este instrumento, composto inicialmente por uma tábua de pinheiro a que estava fixada uma bexiga. Uma tripa de porco fazia as vezes de corda única, presa às duas extremidades da tábua e passando sobre a bexiga, que fazia as vezes de caixa-de-ressonância. A corda era tocada com um arco de cana, com um fio feito de folhas de babosa seca. As diferentes notas são definidas segurando a corda entre dois dedos da mão esquerda. A escolha do ponto em que a corda é pressionada define a nota tocada. A popularidade local do instrumento fez com que o grupo folclórico de Santana o adotasse, embora com umas pequenas adaptações. Posteriormente a corda usada passou a ser uma corda de violoncelo, sendo tocada com um arco de violino.

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Jorge Torres
Rui Camacho

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