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quinta-feira, 1 de junho de 2017

"Contem aos vossos filhos "



Recordo-me do meu país cinzento. Sem a beleza do preto e branco da fotografia. Era um país de chuva e frio. De mulheres de negro, com xailes e véus de viúvas de mortos. E mulheres viúvas dos vivos, namorados na guerra ou dos homens que a monte passaram fronteiras. Era um país de fome, de gente triste, de gente descalça que enfiava os pés curtidos nos tamancos à porta da cidade para escapar à multa. Era um país de segredos e de cochichos. De trabalho duro e suor desde criança (a palavra já existia, mas para poucas!). Era um tempo em que se desesperava à espera, pela carta de França, por notícias de África. “Daqui fala o soldado António. Para os meus pais, irmãos e para a minha namorada desejo um Natal muito feliz e um Ano Novo cheio de prosperidades”. Ou, por vezes, propriedades. E eles voltavam, os que voltavam, uns em caixões de pinho. Outros deixando por lá, espalhada na picada, pedaços de uma perna desfeita por uma mina, como o Girão que me contaram que jogava à bola como ninguém. Outros, como o Temido, regressaram sem o braço e imagino-o a apertar a mãe num abraço de despedida ou a acenar no adeus a caminho da guerra. Portugal era um país de analfabetos, de letras reservadas para alguns. “ O menino não se importa de ler o que aqui está escrito.” “O eléctrico que lá vem é o 4? Eu não sei ler…” E era um país onde estar doente era a desgraça dos pobres.
E mais fome, sempre a fome. E mais pobreza, uma sopinha para os pobrezinhos, umas roupitas usadas. Um “sempre assim foi e sempre assim há-de ser, que havemos de fazer…”. Um país de respeitinho e de muito medo. O medo que tinha tudo, ou quase tudo, como escreveu O´Neill, o medo “vai ter olhos onde ninguém os veja/mãozinhas cautelosas/enredos quase inocentes/ouvidos não só nas paredes/mas também no chão/no tecto/no murmúrio dos esgotos/e talvez até (cautela!) /ouvidos nos teus ouvidos”. 
Às vezes, havia notícias diferentes. Não nos jornais ou televisão visados pela censura. Mas em imprensa e folhetos clandestinos. Com palavras novas que a miudagem não conhecia: greve, prisões. Em surdina comunicava-se: “Sim, levaram ali o vizinho. Foi de noite.” Tinham sido uns homens de gabardines cinzentas. O vizinho perdeu o emprego, a companhia da família, foi espancado, sujeito a torturas várias. Outros foram mortos. 
Nesses dias, nas paredes da cidade apareceram palavras aos gritos. “Todos ao primeiro de Maio!”. “Libertem os presos políticos!”, “Fim da guerra, já!”. “Lê tudo agora, rapaz! Amanhã já aí não estão.” – comentara o senhor Alberto. “Então, quem é que apaga?”- perguntei eu, puto da primária. 
Finalmente, numa madrugada de Abril o medo assustou-se e fugiu com o rabo entre as pernas. Quando o sol nasceu, nos dias que se seguiram, o povo deu cor às ruas, do vermelho da cor de cravo a todas as cores possíveis. Começou esse dia inicial, inteiro e limpo, como cantou Sophia, e inaugurou-se a liberdade, agora muito mais que uma avenida. O que permite que alguns ignorantes ou imbecis saúdem o “28 de Maio”!
(Escrevo este texto nos finais de Maio, depois de ter lido nas redes sociais um escrito laudatório de um jovem sobre a revolta do 28 de Maio de 1926 que deu início à ditadura de 48 anos. É preciso cuidar da memória. Não esquecer!)

"Francisco Queirós, Diário As Beiras, 1 de Junho de 2017

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