Uma aura de lenda e de heroísmo popular envolve a figura, hoje absolutamente ignorada, de Joaquim Ignez, um pobre e ignaro pastor, nascido e criado na aldeia de Salir, concelho de Loulé. Pouco ou nada se conhece sobre as suas origens familiares, sabendo-se apenas que manejava uma funda com insuperável pontaria e conduzia um rebanho de cabras, com tanta humanidade e carinho que as amestrara na arte de comunicarem, respondendo aos seus comandos e chamamentos.
Panorâmica da vila de Loulé, no último quartel do séc. XIX |
Residia no sítio dos Palmeiros, não longe de Salir, e vivia do produto do seu rebanho. Ganhava o sustento com honestidade, sacrifício e trabalho. Tornou-se conhecido, respeitado e admirado pelos louletanos, pela seriedade com que vendia o proveito do seu rebanho, mas também o produto da caça silvestre, mercê da destreza com que manejava a funda. Acima de tudo fruía do prestígio da sua valentia e da coragem com que defendia o seu rebanho ao calcorrear as brenhas da serra algarvia.
Nos tempos do “foge-foge” andava o povo no Algarve esbaforido com a opressão dos exércitos estrangeiros, primeiro foram os franceses e depois os ingleses. Não havia sossego, e no chamado “ano do barulho”, em 1833, ocorreu o desembarque da esquadra liberal nas praias de Altura/Cacela, de que resultou a invasão do Algarve pelas tropas do Duque da Terceira. Entre 24 de Junho e 20 de Julho de 1833, esteve todo o Reino do Algarve submetido aos desígnios dos novos ocupantes, cujo efectivo militar era sobretudo constituído por mercenários franceses, belgas, suíços, ingleses, etc.
O governador do Algarve, general Mollelos, fervoroso servidor do Trono e do Altar, fiel súbdito de D. Miguel e do absolutismo, receando o confronto com o exército invasor, desconfiando da motivação dos seus soldados e da eficácia do seu armamento, decidiu retirar-se do Algarve e reagrupar forças em Beja. Foi uma decisão desastrosa para a sobrevivência da causa miguelista. Na verdade, constituiu o princípio do fim do absolutismo e a afirmação do liberalismo em Portugal.
Ponte, supostamente romana, sobre a ribeira da Tôr |
Para a vila de Loulé destacaram um batalhão de mercenários belgas, que à imagem do que já haviam feito os seus camaradas franceses em Faro e Olhão, cometeram certos abusos e exerceram arbitrariedades que os louletanos não esperavam, nem podiam tolerar. Parece que os soldados estrangeiros, na visita de inspecção que fizeram à freguesia de Salir, desrespeitaram a fé católica. Diz-se que foram à igreja local na procura de valores que não encontrarem, e por represália tiraram as imagens dos santos e depuseram-nas no átrio, cometendo gestos impúdicos e proferindo palavras que vexaram a fé católica e ofenderam a honra dos salirenses. O povo empertigou-se e os mercenários belgas responderam com prepotência e impetuosidade, causando alarme e escândalo entre o povo da serra algarvia.
A humilde Igreja da Tôr, palco das diatribes belgas |
A partir de então a fama do pastor de Salir correu célere entre os montes da serra algarvia, tornando-se numa figura quase mítica, num herói popular que defendeu a honra dos seus humildes conterrâneos contra a injustiça e opressão dos ocupantes estrangeiros. A cabeça do humilde pastor foi posta a prémio. Lavraram-se autos de culpa e iniciaram-se os processos de captura, que decorreram durante anos sem efectivo resultado. O povo serviu-lhe de escudo, protegendo-o com o seu silêncio e auxílio material, frustrando a perseguição movida pelas autoridades liberais. Diz-se que o Joaquim Ignez homiziado na serra algarvia, chegou a acompanhar os homens do Remexido, preferido manejar a sua silenciosa e certeira funda em vez do cobarde e estrondoso fuzil.
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