Por Inês Maia
Nós, nascidos e criados no departamento francês de ultramar, na querela entre Ivan Karamazov e Aliócha[1] sempre ficamos ao lado do primeiro. Naturalmente. A figura de Ivan Karamazov é elegante, genuína e corresponde aos grandes ideais do iluminismo clássico. A voz demoníaca de Ivan é mais razoável à nós, do que a sensaboria de um fradeco, crente em mistérios metafísicos e infantis.

Quem dentro nós – da intelligentsia tupiniquim – não vibrou com os lampejos cortantes de Álvaro de Campos: “não há mais metafisica senão chocolates”? Quem dentro nós – amantes dos bons livros e do vinho – em sua tenra mocidade não se encantou com o idiota do Camus e sua filosofia do absurdo presente no Mito de Sísifo[2]? Quem não se pavoneou com a frase nietzschiana roubada de Lutero – e infelizmente desconhecida por seu legado neopentencostal – de que Deus está morto?
E.T.A. Hoffmann – que ao lado de Dostoiévski e Balzac formam a santíssima trindade do conservadorismo – lutava desesperadamente contra a desesperança de um mundo sem deus, sem fantasia e, na verdade, sem a ilusão socialmente necessária. O que, talvez, os três tenham em comum é o fato de se indignarem por Deus ser expulso do trono para dar espaço à um novo deus: o capital. O que, talvez, os três tenham errado é que toda àquela aposta de emancipação e racionalidade, que terá lugar nas ciências positivistas, alguns anos depois do desaparecimento de ambos, levaria a humanidade para o pior massacre de sua história.
Desde então, quase 150 anos depois da morte desses autores, na periferia do capitalismo, Deus sobrevive nos corações de milhares de desgraçados que querem no mundo além encontrar a paz que jamais tiveram em vida.  Isso só mostra que a Ideia de Deus é mais profunda do que julgava os entusiastas iluministas.
Se a religião é o coração de um mundo sem coração, como dizia o bom velhinho[3], devemos concluir que este continua pulsando e o ateísmo militante, longe de dar respostas efetivas, o abastece com sua fé na ciência pura. Enfim, a disputa fica entre dogmatismos nos quais o resultado é sempre um salto de fé. Stephen Hawking que mitologiza a ciência é só mais um crente.
Mesmo o melhor dos ateus, Feuerbach, que via claramente que “a religião é o primeiro, mas indireto, conhecimento de si do homem. É por isso que […], tanto na história da Humanidade, como na história do indivíduo, a religião precede a filosofia[4]” deixou de compreender o sentido profundo da Ideia cristã.
Tal como o psicanalista tomou o lugar do padre no confessionário, a ciência tomou o lugar do culto religioso e se tornou ela própria religião. O sentido negativo dessa constatação seria uma mera tolice não houvesse a ideia – religiosa – de que a ciência conduz ao caminho da verdade e a religião a falsidade. Nada mais frívolo. Foram dois séculos de pensamento cientifico sendo vendido como verdade pronta e acabada.
A religião, portanto, independente dos seus múltiplos significados se mantém, mesmo que a fé saia de um deus todo-poderoso e passe para as últimas pesquisas da nanotecnologia. Isso demonstra algo profundo: a alienação constitui o nosso ser e é o impulso central de nossa consciência.
Durante muito tempo, porém, o conceito de alienação permaneceu reduzido a ideia de uma mera ilusão – hoje é comum chamar alguém de alienado, como se quem acusa o outro tivesse acesso imediato à coisa em-si – resultado de uso vulgar. O único modo para compreender a relevância dessa discussão e, talvez, entender minimante a horda de desgraçados da América Latina que mantém a esperança no mundo além, é empreender uma análise do significado do cristianismo para a formação do homem moderno.
Essa ideia não é nem um pouco original, Kierkegaard em meados do século XIX e, depois dele, o jovem Lukács juntamente com Ernst Bloch, no início do século XX, já iam por esse caminho. Lukács nas suas Anotações, encontradas somente depois de sua morte nos anos 1970, chega a esboçar algo que só com Badiou e Žižek será analisado: a fissura existente entre o Antigo e Novo Testamento.
Quanto a Kierkegaard – longe de tracejar, como os românticos alemães, dentre os quais Hoffmann, o desejo de um retorno incorruptível a era cristã – ergue um ateísmo de verniz materialista ao mostrar a incapacidade da fé moderna: “Não posso realizar o movimento da fé”, diz Kierkegaard, “não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no abismo; tal coisa é impossível, mas não me vanglorio por isso. Possuo a certeza de que Deus é amor, este pensamento tem, para mim, valor lírico fundamental[5]”. Ora, os neopentecostais não pensariam a mesma coisa? A Neosaldina no lugar da oração para sarar a dor de cabeça não significa que a relação com Deus é de outra ordem? A questão é, então, porque o cristianismo sobrevive a Neosaldina e a todos os avanços científicos?
Não tenho a pretensão de dar uma resposta definitiva a essa questão senão problematizá-la. Há, felizmente, dois livros importantes a esse respeito e que levantam questões importantíssimas; 1) A monstruosidade de Cristo de Žižek; 2) São Paulo: a fundamentação da universalidade de Badiou. Ambos retomam questões que foram abandonadas no meio caminho, quando o materialismo histórico se tornou, por um bom tempo, a religião oficial dos pensadores de esquerda.
A questão que se levanta é a da possibilidade do próprio cristianismo conter os germes da fissura moderna. Essa hipótese também não é original, Meister Eckhart já havia dito que, no Novo Testamento, Deus começa a evanescer da terra. Deus deixa de se manifestar terrenamente e passa a se manifestar por meio de milagres, no coração dos homens. Então como pensar esse processo de abstração de Deus – não duvidemos, por exemplo, que Deus para os medievais era tão real, quanto uma nanopartícula é real para nós.
Ora, é muito interessante a abordagem multiculturalista-identitária que Reza Aslan faz em seu famoso livro Zelota[6]sobre um Jesus nacionalista e ligado as raízes de sua origem[7]. Essa abordagem, contudo, não apenas torna incompreensível a importância da Ideia do Cristo – de sua monstruosidade para citar Žižek – como também, passa longe do caráter universal do cristianismo que o converte, nas palavras de Nietzsche, na vitória dos escravos.
Sabemos, por exemplo, que os Evangelhos e o Talmude são enfáticos ao abordar a liberdade que Jesus tomava nas relações. Jesus instaura um mal-estar ao optar em ir contra as tradições locais e acolher mulheres, doentes e pessoas marginalizadas no seu séquito de seguidores[8]. Era ao povo depreciado, e incapaz de satisfazer o código de pureza farisaico, que Jesus se dirigia: “não vim chamar os justos, mas os pecadores[9]. Aceitar que nas suas refeições houvessem prostitutas e vagabundos demonstrava que Jesus não apenas instituía uma novidade “bizarra”, mas também, que era contrário aos particularismos identitários dos fariseus judaicos. “A comensalidade com os desclassificados mostra a esperança de Jesus num Reino que investe contra a sociedade de seu tempo”[10].
Mas como explicar que um esfarrapado galileu se mantenha vivo até hoje? É talvez Hegel que vai mais longe nessa problematização. Para ele, a Ideia do cristianismo, enquanto produção concreta de realidade, é o fato de que a fé aí – na religião revelada por Jesus – é a crença consciente no que é. Quando há fé, ela age efetivamente no crente, a consciência ultrapassa os limites do ser imediato e reconhece Deus em si. Esse em-si da fé não se coloca como algo representado ou produzido e sim como imediato.
Deus, desse modo, vem-a-ser imediato como um homem singular, sensivelmente intuído e se torna presente na minha consciência. A figura de Cristo não é o homem carnal, procurado com desespero pela ciência moderna, mas, a figura da própria Ideia que une em si mesma abstração e concretude.
A monstruosidade de Cristo reside no fato que ele é a encarnação da essência divina no homem. Não se pode esquecer a famosa cena do apóstolo Paulo no Aerópago que diante dos estóicos e epicureus fora satirizado justamente pela distância entre a Ideia sacrílega de um deus que se encarna no homem[11] e a razão muda dos filósofos. Não se pode esquecer igualmente que o fundamento da Universalidade presente em Paulo é sua abertura do cristianismo para todos os povos gentios.
O problema insondável para os filósofos gregos na época do apóstolo Paulo era entender como um deus encarnado expressava o saber de si mesmo, em outras palavras, como era possível que a substância divina estivesse no interior de um sujeito. Como afinal a substância havia se tornado sujeito?
Se, como nos diz Hegel, a consciência é manifesta a si no objeto, Cristo detém esse si como algo não estranhado e sim como a unidade inseparável consigo, como um universal imediato.  Ora, esse ser revelado segundo seu conceito une imediatamente sujeito e objeto. Essa linguagem estranha de Hegel é para mostrar como a figura de Cristo, por assim dizer, institui a unidade entre natureza divina e humana, mais profundo que isso, mostra como a natureza divina é a mesma que a natureza humana.
Tal implicação será radicalizada por Meister Eckhart que enxerga nisso o completo dissolver do dualismo existente entre Deus e a sua criatura. Em suma, é o próprio homem que dá origem a Deus. Nas palavras de Žižek: “Deus não é nada fora do homem — embora este nada não seja um simples nada, mas o abismo da Divindade antes de Deus, e neste abismo, a própria diferença entre Deus e o homem seja aniquilada-obliterada[12]”.
A consciência religiosa é consciente de que o ser é a essência. Com efeito, essa unidade do ser e do pensar tem ao mesmo tempo sua figura em Deus. Como nos diz Hegel, Deus só é acessível no puro saber especulativo, pois é este que sabe Deus como pura essência. Há algo oculto nessa asserção, qual seja: a determinação histórica de Deus se liga à concretude da experiência da consciência humana.
Nesse sentido, o Deus cristão aparece como uma espécie de desdobramento ocorrido no desenvolvimento histórico da humanidade e nas suas formas de religião. Seria mais ou menos – e vulgarmente falando – como se o Cristianismo fosse a síntese das diversas multiplicidades religiosas.
Poderíamos pensar esse desdobramento a partir do próprio processo de abstração ocorrido nos desenvolvimentos da própria sociedade evanescente de Roma. Sabemos que tal processo não se realiza do interior para o exterior, ou melhor, da subjetividade para a objetividade, e sim da realidade para a consciência. O pensamento abstrato responde pelas formas de sociabilidade impostas por uma época.
Hegel, que sempre esteve atento a isso, demonstra como Cristo, como homem singular, consuma em si o movimento do ser sensível – dessa concretude que une em si a consciência e a realidade. Seu desaparecimento torna-se para a consciência uma consciência espiritual. O que constitui essa consciência espiritual é o ultrapassar de sua singularidade ao encontrar-se na consciência da comunidade. Desse modo, a Ideia se coloca universalmente ao se elevar à representação, pois, esta é a união da imediatez sensível com a universalidade.
É a própria representação que constitui a consciência espiritual na comunidade. O conteúdo dessa mesma representação é verdadeiro – enquanto objeto de consciência da comunidade cristã – mas seus momentos como elementos do representar não são conceituados. Em suma, os elementos que elevam o cristianismo como consciência espiritual de uma comunidade são independentes e só se relacionam exteriormente um com outro. Segundo Hegel[13], para que o verdadeiro conteúdo cristão revele sua verdadeira forma faz-se necessário a mais alta formação cultural da consciência, ressalta-se que tal formação implica mudanças profundas no solo histórico.
Por isso, a monstruosidade do cristianismo é que seu acesso se dá pela própria razão. Sua fé já é negativa, e sua universalidade pressuposta como exercício da consciência rumo ao conhecimento de si. Sua verdade não é ser somente a substância da comunidade, nem ainda se realizar por meio da representação, mas é tornar-se efetivo, refletir-se dentro de si e ser sujeito. Em outras palavras, o cristianismo entroniza o homem em sua relação social como o fundamento do espírito. O espírito é se tornar efetivo, pois seu conceito reside na superação do puro conceito como algo simplesmente pensado. É preciso que o céu baixe à terra.
Nietzsche teve um insight irônico e profundo ao dizer que “a ciência moderna tem por objetivo tão pouca dor quanto possível, bem como tão longa vida quanto possível, uma espécie de felicidade eterna, na verdade bem modesta em comparação com as promessas das religiões[14]”. Talvez, seja um dos poucos que enxergou que a constituição do ocidente está perpassada pela consciência espiritual cristã e sua busca reside nos ideais expostos pelo cristianismo.
Quando Marx compara o fetichismo da mercadoria com o fetichismo religioso é porque enxergou com atroz clareza a verdade da unidade efetivada pelo capital por meio da categoria do valor. Como Deus, o capital é aquele que une em si mesmo a abstração e a realidade, sua verdade é tornar-se efetivo, produzir e reproduzir-se socialmente e reduzir as relações sociais ao seu movimento de acumulação. Como Lukács dizia atentamente: quando Deus abandona o trono, logo outro senta-se no seu lugar.
Ora, se, com esse pequeno ensaio atingiu-se a noção primária de que a Ideia do cristianismo é mais profunda do que o que materialismo – positivista e ateu – vulgar julgava. Se, a hipótese evidenciou que o cristianismo tem em si o germe secular que irá culminar no iluminismo e nas revoluções. Então, talvez possamos refletir como o fenômeno do neopentencostalismo se apresenta tentando escapar dos lugares comuns e dos adjetivos fáceis.
A força do cristianismo, tal qual a do comunismo, reside na Ideia. “Denomino “Ideia” uma totalização abstrata dos três elementos primitivos”, diz Badiou[15] e prossegue: “um processo de verdade, um pertencimento histórico e uma subjetivação individual. Podemos dar de imediato uma definição formal da Ideia: uma Ideia é a subjetivação de uma relação entre a singularidade de um processo de verdade e uma representação da História”.
A Ideia cristã é efetivamente a criação de um etos que com seu desenvolvimento histórico cada vez mais converte-se na promessa de um futuro glorioso além-vida que o torna resistente as adversidades. Na medida em que guia subjetivamente as consciências individuais produz objetivamente realidades históricas. A diferença entre comunismo e cristianismo, é que naquele, o futuro glorioso deve ser construído pelas mãos dos escravos e tornar-se presente, ou seja, o comunismo quer realizar as potencialidades da razão, sua divindade.
A consciência religiosa na comunidade, enquanto cristianismo oficial e constituído, tem seu conteúdo em geral na forma da representação; a espiritualidade da comunidade tem a cisão moderna em seu interior. Em outras palavras, a consciência religiosa não tem a consciência do que ela é em si mesma. A representação não a permite enxergar que Deus é sua própria consciência e essência. Por isso, sua reconciliação é algo distante, um além, um futuro; está somente no coração. Não é por acaso que Lacan diz que o maior ateu é um teólogo, posto que, ao realizar a experiência de formação cristã, o que se descobre é a própria essência humana como fundadora de Deus.
“Se a existência de Deus, se a imortalidade da alma não fossem senão sonhos” dizia Robespierre, “ainda assim seriam a mais bela de todas as concepções do espírito humano”. E, nesse sentido, o neopentencostalismo ganha vida porque a religião continua sendo o coração de um mundo sem coração, mais que isso, ela fundamenta visões e orienta realidades subjetivas e históricas. Há no interior do cristianismo não somente uma promessa emancipatória grave, como também, toda oficialidade cristã, desde sua fundação até os dias atuais, serviu somente para esvaziá-lo dessa promessa, qual seja: Deus já está aqui no divã, façamos da vida livre de opressões, nossa religião!
Em suma, a realização do cristianismo já é sua superação, o verdadeiro cristão é um ateu modesto.

[1] Ambos personagens do clássico de Dostoievsky (ver DOSTOIEVSKY, F. Os irmãos Karamazov. São Paulo: editora 34, 2013)
[2] Eu sempre quis encontrar um adjetivo para Camus, mas o comitê invisível o encontrou antes, o idiota é uma citação deles (ver CAMUS, A. O mito de Sísifo. São Paulo: Editora Record: 2004 e também https://we.riseup.net/assets/262783/AosNossosAmigos2014.pdf
[3] A frase é de Marx na introdução de crítica ao direito de Hegel.
[4] FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Lisboa: fundação Caloute Gulbenkian, 2001. p. 45
[5] KIERKEGAARD, S. Temor e tremor. (In: _____________. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 217).
[6] ASLAN, R. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
[7] Por seus pressupostos Aslan não consegue compreender o motivo do apóstolo Paulo abrir o cristianismo para não judeus.
[8] Lucas capítulo 8, versículos 2-3
[9] Marcos, 2, 17
[10] CORBIN, A. História do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. São Paulo: Martins fontes, 2009, p.11
[11] Atos dos apóstolos capitulo 17, versículo 15.
[12] Žižek, S. A monstruosidade de Cristo, p.18
[13] HEGEL, G. F. W. A Fenomenologia do Espírito. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012 parágrafo 770.
[14] NIETZSCHE, F. Humano demasiado humano. São Paulo: editora escala, 1998 p.108.
[15] Badiou, A. A Hipótese Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 164
[1] Escritora e doutora desempregada.

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