A Fábrica STEPHENS da Marinha Grande
O último dia
Fotos LUIZ CARVALHO
EXPRESSO, 13 de Junho de 1992
A Stephens fechou e houve quem chorasse por ela.
«A Marinha já não o que era»
ISABEL Constâncio desligou a máquina naquela derradeira manhã — a acompanhava no seu dedicado trabalho de operária vidreira da Fábrica Stephens. «Não sei como vou poder ficar em casa a ouvir as sirenes de outras fábricas». As lágrimas caem-lhe pelo rosto, como se esta mulher — de aparência tão forte — representasse o papel de heroína de um filme a preto e branco da fase neo-realista italiana.
O último dia da Fábrica Escola Irmãos Stephens começou como qualquer um dos outros milhares de dias que preencheram os mais de duzentos anos da história da Marinha Grande. Cada operário ocupou o seu posto como se fosse cumprir uma missão superior. O fiscal da linha de fabrico continuava a rejeitar, com um X desenhado a tinta vermelha, as peças imperfeitas; o olhar de cada trabalhador seguia, atento, cada uma delas a desfilar rumo ao armazém.
No final do dia, todos deixaram a fábrica arrumada, pronta para reabrir no dia seguinte, não obstante cada um deles compreender, com precisão, a inutilidade dos seus últimos gestos, o patético da rotina, a impossibilidade de qualquer esperança. O enorme espaço vazio transformou-se numa espécie de catedral — um monumento ao dia findo e aos milhares de dias que o precederam, até ao tempo em que esta e outras fábricas fizeram nascer a cidade, sem preverem tão injusta recompensa. Envolta já no lusco-fusco da tarde, ela parece, agora, eterna, perene, quase tão mágica como o cristal que fabricava.
ANTÓNIO Loureiro guarda num saco o que lhe resta das recordações daquele mundo que o transformou num especialista do cristal: uma cassete de música avulsa, um totoloto falhado, um comunicado sindical e por fim, quando já atravessava o portão de ferro forjado, a sua ficha de operário dedicado, que um colega lhe passou para as mãos. Em poucas palavras a ficha descreve a sua história e a de muitos outros que, sendo outros, são os mesmos. No primeiro dia de Setembro do ano de 1960, foi admitido.
Recebia 12 escudos, diariamente. No verso, onde tinham registo as sanções disciplinares, a folha é orgulhosamente branca. António Loureiro é irrepreensível e não foi seguramente por sua culpa que a Fábrica fechou. Olha, uma última vez, para trás. A chaminé ainda fumega, mas já sem o fôlego dos dias felizes. Os fornos começaram a arrefecer há já alguns dias, mas uma morte, nem por ser programada, é menos triste. Nem sequer de eutanásia se trata, que nem todos os que dependiam daquela vida consentiram no seu fim. António caminhou para o largo fronteiro e juntou-se aos seus 200 colegas que, reunidos, se preparavam para prestar uma derradeira homenagem ao «ex-libris» da Vila.
DISCURSOS, flores, lágrimas, e meia dúzia de punhos já erguidos com timidez, quando o orador, sindicalista, ainda grita: «A luta continua.»
Uma operária exclama: «Fomos enganados! Mataram a nossa alma! Esta Marinha Grande já não é o que era». Tem razão — que é feita da vila operária, das tradições da greve geral de 1934? Como pode haver «vanguarda» se as novas fábricas de moldes funcionam com computadores e meia dúzia de operários?
Não foi só a Stephens que morreu, com ela foi-se a alma de muita gente. Ali se formaram gerações daqueles operários que vinham nos livros: com espírito de classe, solidários, firmes como o aço e transparentes como o vidro que fabricavam. Agora restam-lhes as palavras escaldantes que contrastam com o arrefecimento dos fomos que alimentaram a Fábrica e o espírito de luta de quem lá trabalhava.
Também a luta arrefeceu, dando lugar à resignação. Podem dizer, como disseram, que o encerramento da Stephens é anti cultural, que é uma perda histórica, que é contra os trabalhadores e o povo da Marinha, mas sabem, de antemão, que é impossível voltar atrás. Todos os tempos deixam saudades, mesmo os piores, aqueles de uma jorna de 12 escudos — e todo o presente cria revolta. Pelo passado e pelo presente se gritam, em tom de futuro, as palavras mágicas de quem nada mais pode dizer — «A Luta Continua! A Luta Continua! A Luta Continua!» Uma operária destaca-se do grupo e, de câmara fotográfica em riste, tira o último retrato.
Os tempos mudaram...
EXPRESSO, Sábado, 13 de Junho de 1992
Fotos Luiz Carvalho, copiadas do jornal Expresso
A Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande
Foto da gravura encontrada em marcasdasciencias.fc.ul.pt |
(...) Após a morte de Guilherme Sephens a fábrica passou a ser administrada pelo seu irmão, João Diogo, que, apesar de algumas dificuldades, nomeadamente durante as invasões francesas, manteve um extraordinário desenvolvimento e progresso. Em 1826, João Diogo faleceu deixou em testamento a Fábrica à “Nação Portuguesa”. Demoraria cerca de dois anos até que o governo decidisse que, não tendo capacidade para administrar a Fábrica, iria abrir concurso para a sua exploração. Entre 1827 e 1919 a Fábrica conheceu vários arrendatários e tempos de prosperidade, realizando grandes projectos que desenvolveram tecnologicamente a Fábrica, produzindo vidro de grande qualidade, e períodos de grandes dificuldades, chegando mesmo a encerrar e os trabalhadores terem de procurar emprego na construção de estradas ou limpezas do pinhal.
Em 1919 o Governo decide iniciar a sua exploração através de Comissões Administrativas. Destaca-se o período (1928-1966) em que a administração esteve a cargo do Engenheiro Acácio Calazans Duarte. Além do grande desenvolvimento tecnológico que deu à Fábrica, passou a ser obrigatório a formação dos aprendizes dos sectores de decoração, pelo menos em desenho e a frequência da escola nocturna da Fábrica, pelos menores analfabetos que ali trabalhavam.
A partir de 1954 um novo regulamento reformula a Fábrica, transformando-a num centro de desenvolvimento da indústria vidreira. Passou a designar-se Fábrica Escola Irmãos Stephens. Fabricava cristalaria de qualidade, desenvolveu a vertente artística do vidro, tendo contado com algumas parcerias, entre elas, com a Escola Nacional de Belas Artes. Em 1957 passou a ser superintendida pelo Instituto Nacional de Investigação e em 1977 passaria a Empresa Pública, conhecendo várias administrações até ao seu encerramento em 1992. Em 1993 foi adquirida pelo dinamarquês Jorgen Mortensen e reactivada. Actualmente já não de encontra em laboração.
citizengrave.blogspot.pt
A Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande
Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande], ca. 1865?]
SILVA, Francisco Augusto Nogueira da, 1830-1868
[Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande] [Visual gráfico / Nogueira da Silva ; [grav.] Alberto. - [S.l. : s.n., ca. 1865?]. - 1 gravura : madeira, p&b. - Data provável baseada no período de actividade dos autores. - Dim. da comp.: 7,5x25,1 cm (Biblioteca Nacional)
[Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande] [Visual gráfico / Nogueira da Silva ; [grav.] Alberto. - [S.l. : s.n., ca. 1865?]. - 1 gravura : madeira, p&b. - Data provável baseada no período de actividade dos autores. - Dim. da comp.: 7,5x25,1 cm (Biblioteca Nacional)
A Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande surge na sequência do encerramento da manufactura de Coina. A falta de combustíveis nesta região levou John Beare, seu administrador na altura, a transferir, em 1748, a tecnologia de Coina para a Marinha Grande, dada a abundância de matérias-primas, a areia, e de carburante nesta região, a lenha do Pinhal do Rei.
No dicionário geográfico, um manuscrito de 1758 é referido que “ há dentro desta vila e freguesia de Coina uma fábrica real que foy de vidro, a qual se acha damnificada e sem exercício há dês anos a esta parte por se mudar a mesma para o lugar da Marinha, termo da cidade de Leyria, e por este dezamparo se lhe perdem as madeiras que sam excellentes”.[1]
John Beare terá tido dificuldades em manter a unidade manufactureira em laboração. Em 1762, num relatório datado de 9 de Setembro, são descritos todos os problemas resultantes da instalação da Real Fábrica na Marinha.
Nesse relatório é referido uma Resolução Real de 23 de Agosto de 1749 para que fosse extinta a Real Fábrica devido aos grandes estragos ocasionados no Pinhal. A fábrica é acusada de consumir a melhor madeira, numa época em que toda a madeira de boa qualidade era enviada para a Ribeira das Naus, em Lisboa, para ser utilizada na construção naval. Além disso é acusada de ser responsável pela subida do preço pago aos carreiros. Estes preferem trabalhar para a Fábrica por um salário certo do que para o Estado.
Nesse relatório é referido uma Resolução Real de 23 de Agosto de 1749 para que fosse extinta a Real Fábrica devido aos grandes estragos ocasionados no Pinhal. A fábrica é acusada de consumir a melhor madeira, numa época em que toda a madeira de boa qualidade era enviada para a Ribeira das Naus, em Lisboa, para ser utilizada na construção naval. Além disso é acusada de ser responsável pela subida do preço pago aos carreiros. Estes preferem trabalhar para a Fábrica por um salário certo do que para o Estado.
Não conseguimos saber qual a data de encerramento da fábrica de Beare. No entanto, pensamos que em 1762 ainda se encontrava a laborar.
Em 1769 a administração da Fábrica é pertença de Stephens. Num documento dos Juízes do Officio de Vidraceiro é referido que apenas é permitido a Stephens “… a venda do dito vidro attacado, como sempre executara o seu antecessor Duarte Campeão”, pelo que é provável que depois de Beare, a Fábrica tenha tido outro(s) administradores .[2]
De facto, foi no ano de 1769 que o rei D. José I, por iniciativa do ministro Marquês de Pombal, chamou à corte o industrial inglês Guilherme Stephens. Nesse mesmo ano a família Stephens instalava-se na Marinha Grande e iniciava a construção da Real Fábrica de Vidros, segundo projecto do próprio Guilherme Stephens. Foi no ano de 1770 que com a colaboração de operários vidreiros vindos de Génova e alguns portugueses, se iniciou a produção de vidro de embalagem e vidraça.
Marquês de Pombal concedeu-lhe um “ empréstimo de 32 contos de réis, sem juros nem limite de tempo, podendo fazer os pagamentos parciais em cal para obras do Estado, dos fornos que possuía em Alcântara”[3] D. José deu-lhe permissão para “gastar toda a lenha do pinhal do estado, que lhe fosse precisa para a fábrica, durante 15 anos, privilégio que se tornou, depois, permanente, segundo alvará de 7-VII-1769”[4]. Mais tarde, declarou que a fábrica ficava sob protecção real, sendo considerada como útil ao bem público e ao dos pinhais.
A actividade de Guilherme Stephens repercutiu-se na formação dos empregados, na criação e manutenção de certas estruturas que foram essenciais ao desenvolvimento da Marinha Grande, principalmente vias de comunicação, tendo tido, também, um papel importante no desenvolvimento agrícola. A Fábrica funcionou como uma “escola”, “permitindo aperfeiçoar e consolidar um saber-fazer que, nessa segunda fase (1889-1930), já constituía um forte atractivo para a instalação de novas unidades vidreiras”[5]. Já em 1776 numa reclamação dirigida à Rainha D. Maria I, Guilherme Stephens se queixa da concorrência que lhe é feita pelos alemães que têm lojas de vidro na cidade de Lisboa e afirma que “Os lapidários e floristas do vidro nacionais, que foram ensinados na Fábrica, me certificam que podem lapidar e abrir flores em quanto vidro desta qualidade o Reino precisar; pelo que (…)seria útil proibir-se o despacho, na Alfândega, de todo o vidro que vier de fora do Reino, lapidado ou com flores, exceptuando-se os espelhos e lustros, para a manufactura dos quais a Fábrica ainda não tem oficiais capazes”.[6]
A Fábrica marinhense vai procurar dificultar a saída dos vidreiros que habilitou, recorrendo ao poder central para que este tome medidas. José Amado Mendes (1993) cita o provedor da comarca de Leiria que, em 1812, declara:”O administrador da Fábrica dos Vidros, situada na Marinha Grande (…) exige de mim, juiz conservador dela, providências prontas contra a ruína que se lhe vai seguir, da deserção que da mesma fazem operários, que se retiram para algumas das semelhantes fábricas edificadas em Lisboa, em virtude de aliciações que por parte destas lhes são feitas (…)”. Nos finais do XIX continuava a ver-se ameaçada pela concorrência quanto à mão-de-obra, agora pelas fábricas instaladas na própria Marinha Grande.
Após a morte de Guilherme Sephens a fábrica passou a ser administrada pelo seu irmão, João Diogo, que, apesar de algumas dificuldades, nomeadamente durante as invasões francesas, manteve um extraordinário desenvolvimento e progresso. Em 1826, João Diogo faleceu deixou em testamento a Fábrica à “Nação Portuguesa”.
Demoraria cerca de dois anos até que o governo decidisse que, não tendo capacidade para administrar a Fábrica, iria abrir concurso para a sua exploração. Entre 1827 e 1919 a Fábrica conheceu vários arrendatários e tempos de prosperidade, realizando grandes projectos que desenvolveram tecnologicamente a Fábrica, produzindo vidro de grande qualidade, e períodos de grandes dificuldades, chegando mesmo a encerrar e os trabalhadores terem de procurar emprego na construção de estradas ou limpezas do pinhal.
Em 1919 o Governo decide iniciar a sua exploração através de Comissões Administrativas. Destaca-se o período (1928-1966) em que a administração esteve a cargo do Engenheiro Acácio Calazans Duarte. Além do grande desenvolvimento tecnológico que deu à Fábrica, passou a ser obrigatório a formação dos aprendizes dos sectores de decoração, pelo menos em desenho e a frequência da escola nocturna da Fábrica, pelos menores analfabetos que ali trabalhavam.
A partir de 1954 um novo regulamento reformula a Fábrica, transformando-a num centro de desenvolvimento da indústria vidreira. Passou a designar-se Fábrica Escola Irmãos Stephens. Fabricava cristalaria de qualidade, desenvolveu a vertente artística do vidro, tendo contado com algumas parcerias, entre elas, com a Escola Nacional de Belas Artes. Em 1957 passou a ser superintendida pelo Instituto Nacional de Investigação e em 1977 passaria a Empresa Pública, conhecendo várias administrações até ao seu encerramento em 1992. Em 1993 foi adquirida pelo dinamarquês Jorgen Mortensen e reactivada. Actualmente já não de encontra em laboração.
Pátio da Fábrica-Escola Irmãos Stephens (FEIS) – Ao fundo o palacete que foi habitado pelos Stephens. À Direita, o edifício dedicado à administração (construções do século XVIII).
iejclubedopatrimonio.blogspot.pt
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