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quarta-feira, 23 de julho de 2014

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

Clara Sarmento

Resumen

O presente ensaio estuda um objecto e o discurso por ele evocado, enquanto representação, invenção e re-invenção da cultura popular de uma região portuguesa. Contudo, pretende também ver através do objecto, isto é, “atravessar a [sua] opacidade inoportuna”, tal como propõe Michel Foucault em A Arqueologia do Saber. Esse objecto é o barco moliceiro da Ria de Aveiro que, mais do que um caso de tradição versus modernidade, constitui uma representação da identidade cultural de uma comunidade intimamente ligada ao ecossistema lagunar. Os painéis do barco moliceiro são assim representações simbólicas intersemióticas dos valores, práticas e representações partilhadas pela comunidade local. Os textos icónicos e escritos patentes em cada barco são produto de uma rede de circunstâncias políticas, ideológicas, sociais e económicas, dificilmente reconhecidas mesmo por aqueles que desenham, pintam e escrevem (e vivem) sob a sua influência. Ao longo do século XX, o moliceiro e seus painéis participaram numa complexa dialéctica entre as representações do discurso oficial e a sua real função social, económica e simbólica, gerando todo um imaginário histórico, todo um “inventário” (cf. Gramsci) que motivou, contextualizou e sustentou esta forma única de arte popular.
Inicio de página

Texto integral

1. O barco moliceiro: meio-ambiente, práticas e metodologias

  • 1 Com quarenta e sete quilómetros de extensão, a Ria de Aveiro atinge uma largura máxima de sete quil (...)
1O barco moliceiro tem como campo de acção a Ria de Aveiro, amplo estuário do rio Vouga que se estende ao longo da Beira Litoral portuguesa, entre Espinho e o Cabo Mondego ou, em termos mais amplos, numa zona geográfica situada a sul do Porto e a norte de Coimbra.1 A área ocupada pelo estuário é de aproximadamente 66 quilómetros quadrados, na maré baixa, e de 83 quilómetros quadrados, na maré alta, o que faz da Ria de Aveiro o maior estuário lagunar costeiro do país. A laguna é separada e protegida do Atlântico por uma extensa barreira arenosa, hoje em dia densamente populada, onde coexistem o turismo sazonal, a pecuária e a agricultura.
2De fundo plano e pequeno calado, o barco moliceiro é construído em madeira de pinho. Apresenta bordos largos e baixos, quase à flor da água, e uma inconfundível proa muito recurvada, em meia-lua, acabando numa ré também ligeiramente arqueada. Os meios de propulsão tradicionais são a vela (de formato trapezoidal, em lona), a vara ou a sirga. Hoje em dia, é frequente acrescentar-lhe um motor fora de bordo. Apesar de as primeiras referências documentadas sobre o barco moliceiro datarem da primeira metade do século dezoito, isso não significa que os moliceiros não existissem anteriormente; significa apenas que este artefacto popular e as práticas a ele associadas não haviam sido até então reconhecidos pelas autoridades políticas e religiosas, i.e., letradas.
3O barco moliceiro é o tipo de embarcação destinado à colheita e transporte da vegetação da Ria de Aveiro, ocupação conhecida pelo termo popular de “apanha do moliço” e serve também para o transporte de mercadorias, bens, pessoas e gado. O “moliço”, nome vulgar que abrange, sem distinção de espécies, as plantas que constituem a vegetação submersa da Ria, é utilizado como fertilizante na transformação das dunas em terra de cultura, no contexto de uma agricultura de subsistência, escassamente mecanizada, organizada em minifúndios familiares. Contudo, é importante realçar que, acima de tudo, este tipo de barco foi concebido para um tipo de agricultura praticado num ecossistema peculiar – a laguna – que é, ao mesmo tempo, rio e mar, terra e água. Os moliceiros são ferramentas agrícolas, tal como o carro de bois ou a charrua.
Figura 1: Barco Moliceiro na Ria de Aveiro (2002)
Figura 1: Barco Moliceiro na Ria de Aveiro (2002)

4O termo moliceiro é também tradicionalmente associado àqueles que trabalham a bordo da embarcação: o proprietário do barco e/ou um ou mais trabalhadores assalariados (“camaradas”) e/ou um aprendiz (“moço”), organizados numa hierarquia muito informal. O proprietário do barco tanto pode ser um agricultor a recolher algas para as suas terras, como um vendedor profissional de moliço. No entanto, estamos essencialmente a falar de uma população de camponeses pobres, obrigados a complementar o seu rendimento com a pesca ocasional na Ria, a agricultura em pequena escala e a criação de algum gado, juntamente com outras ocupações sazonais ou temporárias. A maioria dos proprietários tem apenas um moliceiro, que geralmente troca de dono diversas vezes durante as duas décadas de duração média do barco. Contudo, sempre ocorreram excepções, como no caso dos pequenos e médios proprietários agrícolas, que podiam manter o barco na sua posse indefinidamente, ou mesmo adquirir até uma dezena de moliceiros, operados por assalariados. Aqueles que trabalhavam directamente nos moliceiros faziam-no porém em condições de extrema precariedade. Não surpreende, portanto, que a emigração maciça ocorrida na região durante as décadas de 60 e 70 tenha levado consigo a maioria dos trabalhadores-moliceiros, o que sentenciou o fim da indústria tradicional do moliço.
  • 2 Contudo, a crise económica actual forçou as autoridades locais não só a cancelar ou a diminuir as e (...)
5A função do moliceiro tem-se alterado profundamente nas últimas décadas. De instrumento indispensável para a economia de toda a região, passou a ser uma simples atracção turística, um símbolo a preservar consoante a boa vontade e as possibilidades financeiras dos proprietários. A poluição, a evolução económica e a emigração afastaram as pessoas deste estilo de vida peculiar. Os fertilizantes químicos substituíram as algas, anteriormente usadas para a fertilização dos solos arenosos, a indústria do sal perdeu grande parte da sua importância e as estradas tiraram o lugar do moliceiro como principal meio de transporte das populações do litoral. Dos cerca de mil moliceiros registados na Capitania do Porto de Aveiro em 1935, sobrevivem hoje menos de quatro dezenas. A construção naval quase cessou, devido à grande vaga de emigração de finais de 60 e da década de 70, mas a partir de meados da década de 80 os moliceiros ressurgiram como símbolos culturais. As autarquias e outras entidades locais públicas e privadas estão a encomendar, com uma frequência crescente, novos moliceiros aos artesãos sobreviventes, para serem utilizados no turismo e em visitas guiadas pela Ria, para exposição em museus locais e internacionais, ou para exibição pública num canal aveirense, como exemplo de património cultural.2 A tradição do moliceiro não está destinada a desaparecer, pois a embarcação foi adaptada a uma nova realidade social e económica, assegurando, assim, a sua sobrevivência e até eventual crescimento em número. Caso contrário, se os moliceiros e seus proprietários tivessem persistido em trabalhar apenas num tipo de actividade rural já obsoleta, a embarcação estaria sentenciada a uma morte inevitável.
6A característica mais original do moliceiro é o conjunto de quatro painéis distintos que lhe adornam a proa e a popa, com pinturas características em cores vivas (azul, amarelo, verde, vermelho, preto, branco), legendadas por uma frase escrita à mão. Os painéis da proa acompanham a curvatura do “bico”, enquanto os da popa apresentam-se sob uma forma mais ao menos rectangular. Ambos possuem uma cercadura brilhante de várias faixas coloridas, constituídas por flores e figuras geométricas. Existe uma grande variedade nos temas expostos nos painéis de um moliceiro, em estilos que vão desde o traço mais tosco e grosseiro, até imagens de cuidada elaboração. O decorador, ao mesmo tempo construtor ou “entendido” na arte, chamado para o efeito, realiza as pinturas espontaneamente ou por sugestão dos proprietários das embarcações. Nesse caso, alvitra-se um tema ou um mote predilecto, que o decorador ilustra consoante a sua imaginação e talento.
7O estudo de mais de quinhentos painéis, registados durante períodos regulares de trabalho de campo entre 1988 e 2004, confirmou a existência de cinco grupos principais de imagens e inscrições, com várias subcategorias: Jocosos (eróticos, sátira às instituições, a figuras típicas e ao trabalho); Religiosos (cristológicos, marianos, hagiográficos e votivos); Sociais (retratando o trabalho; varinas e varinos; mestres moliceiros, barqueiros e pintores; apelos ecológicos e de celebração do património; festas e cerimónias; declarações e sentenças); Históricos (imagens de monarcas e personagens da História; Descobrimentos; escritores; soldados e cavaleiros); e Lúdicos (com referências a contos populares, televisão, cinema e futebol).
Figura 2: Painéis de Moliceiros (finais da década de 90)
Figura 2: Painéis de Moliceiros (finais da década de 90)
8As comunidades isoladas e dispersas, como a dos agricultores-moliceiros, desenvolvem geralmente os seus próprios códigos, mitos, heróis e padrões sociais. No presente caso, essas comunidades criaram um objecto cultural distinto, que usa códigos pictóricos e linguísticos em simultâneo, sistemas semióticos coexistentes que criam um fenómeno sem paralelo na cultura portuguesa. Este fenómeno simboliza tanto o confronto como o compromisso entre a comunidade e o mundo exterior. Neste caso, “uma população que pinta os seus barcos e os lança nas águas de uma lagoa, cria um álbum de imagens através do qual expressa a sua visão do mundo” (Rivals, 1988: 254).
9A primeira etapa da pesquisa para esta investigação consistiu num trabalho de campo participativo, levado a cabo na Ria de Aveiro entre 1988 e 2004. Procedeu-se ao registo fotográfico das embarcações e realizaram-se entrevistas com os construtores e pintores sobreviventes, bem como com antigos operários da indústria artesanal do moliço. As imagens dos barcos e das práticas envolventes anteriores aos anos 80 foram obtidas em colecções e museus públicos e privados, nacionais e locais. A etapa seguinte consistiu na pesquisa sobre as embarcações em museus, arquivos, jornais, paróquias, câmaras municipais e outras instituições relevantes, nacionais e locais. O principal foco desta pesquisa incidiu na iconografia, documentação turística, mapas, jornais e regulamentos locais, livros escolares e literatura popular. Os Livros de Registo de Embarcações – uma colecção de livros manuscritos existente nos arquivos da Capitania do Porto de Aveiro que cobre praticamente todo o século vinte (entre 1914 e 1998) – tiveram grande importância para o projecto, tal como teve a correspondência oficial entre as autoridades locais e o poder central, durante o período compreendido entre a década de 40 e 1974, preservada nos Arquivos Histórico e Municipal de Aveiro. Além destas fontes, também os vários trabalhos publicados a partir de finais do século dezanove, relacionados com o moliceiro e a Ria de Aveiro, foram avaliados criticamente.

2. Condicionantes históricas e ideológicas da cultura popular portuguesa

10Entre Maio de 1933 e Abril de 1974, Portugal viveu sob um regime autoritário conhecido como Estado Novo, inspirado nas ideologias fascistas e chefiado por António de Oliveira Salazar (1889-1970). Este regime substituiu a sequência desordenada de governos que sucederam à Primeira República de Outubro de 1910 e a uma breve ditadura militar, entre 1926 e 1933.
11Oficialmente neutro durante a II Guerra Mundial, apesar das óbvias simpatias fascistas, o Portugal de Salazar empenhava-se na salvaguarda das colónias (o que resultou numa trágica guerra colonial entre 1961 e 1974) e na neutralização de qualquer tipo de oposição em território nacional. A tentativa de Salazar de organizar a nação, em termos espaciais, ideológicos e sociais, torna-se evidente em três momentos diferentes mas complementares: na constante descrição laudatória das províncias metropolitanas e ultramarinas e suas características vagas, artificiais mas distintivas; na generalização das crenças e costumes do colectivo “povo”; na rigorosa distribuição, divisão e hierarquização dos papéis sociais. Nada é deixado ao livre arbítrio do actor social, tudo é predeterminado e aceite com alegria singela, espírito de sacrifício e honrada resignação.
12As ideologias autoritárias tendem a ser simplificadas de forma a transmitir princípios claros e inquestionáveis, em que o exercício do poder é apresentado como algo natural e legítimo, e qualquer desejo de resistência como sendo fútil e inútil. De acordo com os princípios autoritários, o dever de obedecer é tão simples e inevitável como um fenómeno natural; como tal, os discursos políticos ideologicamente orientados valem não tanto pelo conteúdo concreto das suas ideias mas, sobretudo, pela sua função disciplinadora. É o que se passa com a paradigmática alocução de Oliveira Salazar, durante as comemorações do décimo aniversário da Revolução Nacional, em 26 de Maio de 1936, quando define as “verdades indiscutíveis” estabelecidas pela sua nova ordem:
Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever (Mattoso, 1994: 291 ss).
13Assim, “Deus”, “Pátria”, “Autoridade”, “Família”, “Trabalho”, velhas bandeiras dos discursos político-ideológicos das direitas autoritárias e conservadoras, foram transformados em dogmas do Estado Novo.
14Apesar de a ideologia poder apresentar-se como um conjunto de ideias coerentes, surge mais frequentemente como uma compilação de princípios dispersos, provenientes do senso-comum, sob uma variedade de formas e representações. Por isso, vale a pena levar a cabo um estudo específico das formas de organização cultural que mantêm o mundo ideológico em movimento dentro de um determinado país, bem como examinar a forma como tudo isto funciona na prática real. As práticas e textos da cultura popular operam dentro daquilo a que Gramsci chama de compromisso de equilíbrio entre poder e consentimento – por outras palavras, dentro da hegemonia. Todas as relações de hegemonia são, necessariamente, educacionais e ocorrem entre os vários grupos que constituem a sociedade. O Estado exige consentimento mas também educa no sentido desse consentimento. É o grande educador, cujo principal objectivo (pelo menos, de acordo com o seu discurso institucional) é criar uma civilização mais elevada e moldar a cultura e os valores morais das massas populares, de acordo com a necessidade de constante desenvolvimento da nação. O Estado, de acordo com Gramsci, é todo o complexo de práticas e actividades teóricas que as classes dominantes utilizam, não apenas para justificarem e manterem o seu poder, mas também para exercerem a sua hegemonia e ganharem o consentimento das classes subalternas (Gramsci, 1971).
15Como tal, os grupos dominados têm de ser persuadidos a aceitar que a sua condição, as suas expectativas e dificuldades são inalteráveis e inevitáveis. Uma vez convencidos de que nada pode ser feito para melhorar a sua situação, que permanecerá eternamente imutável, as críticas e as aspirações dos grupos dominados acabarão eventualmente por extinguir-se. Como afirma Pierre Bourdieu: “Toda a ordem estabelecida tende a produzir (em graus muito diferentes e com meios muito diversos) a naturalização da sua própria arbitrariedade” (1977: 164). Numa nação que deseja regenerar e educar o espírito da época de acordo com essas verdades inquestionáveis, a educação ideologicamente orientada, tanto impositiva como formativa e repressiva, é – como veremos adiante – um dever sagrado de cada professor do sistema público de ensino, um sistema estrategicamente purgado de todo e qualquer elemento subversivo indesejado.
16Durante os longos anos da ditadura, a cultura e as tradições portuguesas – genuínas, ideologicamente orientadas pelo Estado Novo ou até inventadas – foram utilizadas para inculcar no povo determinados valores e normas de comportamento, através da reiteração, do exemplo e da instrução, de forma a enfrentar a ameaça de um mundo em evolução. Estas práticas exploravam uma base ideológica artificial mas muito eficaz, seleccionando um passado histórico conveniente ou um presente etnográfico. A cultura popular tradicional, na sua forma “folclórica” ideal, era vista como o meio perfeito para o Estado Novo reorganizar a sociedade. O resultado deste trabalho de domesticação, denominado “folclore”, era extremamente útil para a estratégia ideológica do Estado Novo. Esta estratégia discursiva seria alegadamente capaz de combater os perigos da classe operária liberal e dos costumes urbanos com um modelo de celebração da vida rural, que reduzia o conceito de “povo” a “camponês”, em que os lavradores, pescadores ou artesãos eram os principais actores sociais. Esta estratégia redutiva era levada a cabo com a colaboração voluntária dos etnógrafos próximos do regime que, nos anos 30 e 40, não hesitaram em recorrer à apologia sistemática do primitivismo plebeu, do analfabetismo, da humildade miserabilista e da docilidade bovina, como sendo as características ideais do “bom povo português” (Silva, 1994: 112).
17A noção de “arte popular pura”, que caracterizava a vida quotidiana no ponto de vista ingénuo e a-crítico dos etnógrafos do século dezanove, ia de encontro ao ideal de uma nação rica em folclore e costumes pitorescos do regime de Salazar. A arte popular seria uma forma de auto-celebração criada pelo “bom povo” – na sua maioria camponeses ou pescadores profundamente religiosos, com vidas austeras e humildes. A exaltação do artesanato, dos costumes tradicionais e dos meios de transporte rudimentares reflectia um estilo de vida muito semelhante às condições de mera subsistência que o regime na verdade proporcionava ao mundo rural português.
18Durante o período do Estado Novo, formas de arte popular como os painéis do moliceiro também faziam eco da mitologia oficial como consequência mais ou menos directa da influência dos canais institucionais de educação e propaganda. Os estereótipos ideologicamente orientados, enquanto parte da memória colectiva, eram apropriados e reproduzidos pelas populações, que os adaptavam de acordo com a sua experiência de vida e senso comum. No que à cultura do moliceiro diz respeito, o controlo do Estado era exercido de forma quer directa quer indirecta: directamente, através da supervisão, regulação, censura, manipulação e propaganda, principalmente por parte dos representantes locais do poder central; e indirectamente, pela influência e ideologia do ensino primário (universal e obrigatório) controlado pelo Estado.
19Entre 1957 e 1964 – os anos mais repressivos do regime – até os painéis do moliceiro, juntamente com a própria embarcação, tinham de ser registados (com transcrição e descrição de frases e imagens) na Capitania local. Esta era uma forma directa de controlo por parte do Estado, também usada para evitar mensagens subversivas ou imagens chocantes em termos morais e políticos. Isto mostra como qualquer veículo de comunicação e criatividade, incluindo a arte popular, era sujeito à supervisão política e/ou à “censura oficial”, uma instituição que prevaleceu durante a Segunda República e se manteve, sem interrupções, durante quase cinquenta anos, entre Maio de 1926 e Abril de 1974.
  • 3 Tal como banhar em vinho tinto a imagem de madeira de um santo padroeiro local (S. Paio da Torreira(...)
20Os coloridos moliceiros, excelentes símbolos do folclore local, inspiraram uma série de eventos politicamente orientados, onde a cultura popular se transforma em “entretenimento cultural” para consumo de um público externo, não-local. Os moliceiros desde sempre haviam participado nos festivais religiosos populares ou “romarias”. Inicialmente, serviam apenas de meio de transporte mas, nos anos 50, o seu papel começou a mudar. Ao longo do século vinte, os artigos da imprensa local sobre as festividades populares reflectiram as diversas (r)evoluções ideológicas, políticas e sociais em curso. Durante as primeiras décadas do século, e ainda sob a influência dos Românticos, emergiu um fascínio genuíno pela “beleza e ingenuidade” da cultura popular portuguesa. Com a implantação da República em 1910, e durante o período de instabilidade política que se lhe sucedeu, as facções rivais locais apoderaram-se das festividades populares e usaram-nas como armas políticas, acusando-se mutuamente de mau planeamento, gestão e propaganda, em artigos profundamente sensacionalistas. Mais tarde, quando o Estado Novo começou a reorganizar (isto é, a “normalizar”) a nação, os poderes locais também manipularam as festividades populares, transformando-as em celebrações artificiais do chamado “folclore”. Após uma limpeza moralizadora que extinguiu quaisquer vestígios de práticas ancestrais,3 as autoridades católicas passaram a exercer um controlo apertado sobre o aspecto religioso destes eventos. Consequentemente, os artigos na imprensa criticavam as alegadas “práticas imorais pagãs” e enfatizavam o crescente elitismo destas festividades modernas, “altamente civilizadas e ordeiras”, que atraíam turistas e visitantes da classe média, vindos de todo o país. Os seus actores e proprietários originais, a população local, tornaram-se personagens secundárias, que actuavam para prazer dos visitantes.
21Em Março de 1954, a Ria de Aveiro recebeu o primeiro Concurso de Painéis de Moliceiros – criado, supervisionado e avaliado exclusivamente por representantes locais do poder político – no qual os três barcos decorados da forma mais “típica” (isto é: decorados com cenas idílicas da vida rural e frases inofensivas e cheias de erros) recebiam grande atenção oficial e propaganda, e uma modesta recompensa monetária. De acordo com Gramsci, esta estratégia de premiar as actividades individuais ou grupais consideradas pelas autoridades como merecedoras de louvor e distinção, tem de ser integrada no conjunto de acções “civilizadoras” do Estado, uma estratégia que é sempre de pronto publicitada nos meios de comunicação oficial.
Figura 3 – Os 3 vencedores do 1º Concurso de Painéis de Moliceiros, Março 1954 (à esquerda) e Quatro moliceiros a concurso, Abril 1962 (à direita)
Figura 3 – Os 3 vencedores do 1º Concurso de Painéis de Moliceiros, Março 1954 (à esquerda) e Quatro moliceiros a concurso, Abril 1962 (à direita)

Fonte : Centro Português de Fotografia
22O facto de existir um controlo indirecto, por parte do Estado Novo, da cultura do moliceiro, através da educação e de uma ideologia orientada pela escola, requer alguma contextualização. A República procurara, com escasso êxito, dignificar o ensino primário e seus agentes; o Estado Novo agiu de modo inverso, desvalorizando com sucesso o ensino primário. O ensino obrigatório foi, inclusive, reduzido pelo Estado Novo de quatro para três anos, uma situação que se manteve até ao princípio dos anos 60. Os professores primários (na sua maioria mulheres com baixas remunerações) eram utilizados como veículos de doutrinação política e religiosa. ­O Estado Novo desvalorizou a função educativa da escola, em favor de funções mais ideológicas e disciplinadoras. A escola tornara-se uma ferramenta nas mãos do Estado, usada para ensinar virtudes em detrimento de práticas ou conhecimentos úteis. Torna-se obrigatória a suspensão do crucifixo sobre a cadeira do professor nas escolas do ensino primário público. É igualmente obrigatório o canto coral, destinado a exaltar as glórias portuguesas, a dignidade do trabalho e o amor à pátria. Sublinha-se a importância de instruir os alunos sobre as colónias portuguesas, pois o Estado considerava que, se incutisse em todos a noção exacta do valor do império ultramarino, a nação adoptaria uma atitude interna e externa de defesa dos valores coloniais.
23O livro de leitura oficial consistia num volume único, a nível nacional, um por cada ano, e continha textos para leitura, uma secção de aritmética e uma longa secção de doutrina católica – apesar de muitos dos textos para leitura consistirem já em orações ou textos devocionais. O livro de leitura da quarta classe era um pouco diferente, em termos de formato, dos outros três, mas com uma orientação ideológica semelhante e uma mensagem política ainda mais forte, em lugar da doutrina religiosa elementar. Estes livros, inspirados pelos manuais escolares italianos do período de Mussolini, eram voltados para a criação de uma mentalidade colectiva nacionalista e católica. Publicados pelo Ministério da Educação, sob rígida supervisão do governo, permaneceram inalterados durante décadas, excluindo pequenas alterações a nível formal em meados da década de 60 (Ministério da Educação Nacional, 1958a; 1958b; 1968).
24Figura 4 – Livros de leitura
Figura 4 – Livros de leitura

25Na maior parte dos casos, o único contacto com o objecto livro ao longo de toda uma vida ocorria com o livro de leitura da escola primária, cujo valor e influência eram, naturalmente, enormes. Facto que se torna ainda mais marcante se, para além de único livro de toda uma vida, este é também efectivamente o “livro único”, que espelha a única mundividência e ideologia admissíveis pelo regime. Veiculava-se um saber mnemónico, maniqueísta, rigidamente categorizado, em que o mundo era apresentado à criança de um modo pré-estabelecido, perfeitamente ordenado, de forma definitiva e inquestionável. Esta forma de ensino era ainda mais eficaz porque reforçada por ilustrações atraentes, de linha clara, pormenorizadas e de cores alegres. Este sistema de ensino actuou até 1974, mas a sua influência indirecta perdura até à actualidade, uma vez que os educandos de então são os educadores de hoje, reproduzindo ainda e, muitas vezes, de forma passiva e a-crítica os ensinamentos colhidos na infância, tão cómodos e atraentes pela sua simplicidade, guias de um universo sem dúvidas nem opções. Assim, a ideologia do Estado Novo influenciou (e ainda influencia, sob uma ténue aparência de progresso) não só o meio cultural em torno do moliceiro, mas também toda a cultura portuguesa em geral.
26Os livros do ensino primário situavam os seus textos em cenários rurais, sempre dentro de Portugal. Mesmo que o tema não estivesse directamente relacionado com o mundo rural, a ilustração contígua encarregava-se de estabelecer a ligação. São estratégica e cuidadosamente evitadas quaisquer referências laudatórias à transição do universo rural para o urbano ou do agrícola para o industrial. O conjunto de texto e imagem é complementado por provérbios e lendas tradicionais, que representam o saber oral e a memória colectiva da sociedade camponesa, e por símbolos patrióticos e religiosos.
27Para Eric Hobsbawm, as tradições inventadas após a Revolução Industrial classificam-se em três categorias: aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social; aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, estatutos ou relações de autoridade; e aquelas cujo propósito principal é a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento (1983: 17). Estas três categorias estão claramente patentes na realidade sócio-cultural apresentada nos livros de leitura do Estado Novo, onde a História, como diz Claude Lévi-Strauss (1986: 167), substitui a Mitologia, cumprindo a mesma função. Sabiamente guiada pela autoridade-autor e pelo mestre-mediador, ao aprender a ler, a criança aprendia simultaneamente a ordem oficial do mundo: “O Estado Novo ofereceu à Nação uma nova versão da sua glória passada, (re)criando momentos e personalidades de acordo com a interpretação oficial da História, forjando uma nova era e restaurando a mítica era dourada que serviu de modelo a cada celebração” (Paulo, 1994: 91).
28Em comunidades piscatórias e agrícolas pobres como as da Ria de Aveiro, a taxa de iliteracia era extraordinariamente elevada. Nas comunidades piscatórias, a escola desempenhava o papel de uma mera exigência burocrática, pois a frequência do ensino obrigatório era a única forma de os pescadores poderem exercer legalmente a sua actividade. No que diz respeito à comunidade moliceira, tripulação, construtores e decoradores eram analfabetos ou apenas capazes de assinar o próprio nome, aquando da requisição das licenças ou do registo das embarcações na Capitania. Dado o baixíssimo nível de escolaridade da maioria da população lagunar, os painéis legendados (com uma ortografia muito discutível) eram tradicionalmente obra dos poucos artistas “letrados” da região. Estes decoradores adquiriam a sua escassa educação na escola primária e não constituíam uma excepção à regra da influência dos livros escolares na sua visão do mundo, pois esses livros (assim como os livros em geral) eram relíquias raramente reencontradas após o abandono da escola, e o poder visual e verbal das suas mensagens tornava-se assim irresistível.
29Os livros escolares exerceram uma influência óbvia sobre os símbolos e imagens que os decoradores populares escolhiam para o moliceiro, como fica provado pela observação de alguns painéis, principalmente históricos e religiosos, em particular aqueles que representam personagens históricas como o rei D. Dinis, o Santo Condestável D. Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e o poeta Camões. Todas estas personagens históricas encontram-se aí retratadas de forma solene e estática, com talento e pormenor variável, mas seguindo sempre o mesmo modelo. Ainda é possível notar a influência da imagem que ilustra o texto “Camões” (no livro de leitura da quarta classe) em vários painéis históricos representando o famoso escritor português, adoptado pelo regime como símbolo de uma tradição cultural gloriosa.
Figura 5
Figura 5

30A glória, fé, engenho e sabedoria destas personagens históricas são simbolizados, tanto nos painéis como nos livros de leitura, através de motivos iterativos como o livro (Os Lusíadas de Camões), a espada, a bandeira, a caravela, o castelo, o mapa, a bússola e o astrolábio. A Cruz de Cristo, presente nas velas dos navios dos Descobrimentos, surge também na ilustração de capa do livro de leitura da quarta classe. A Cruz – omnipresente na iconografia do Estado Novo e, consequentemente, nos seus livros escolares (e também, como já mencionado, nas próprias salas de aula) – era representada como companheira e fonte de inspiração do herói. A Cruz de Cristo e a bandeira nacional são motivo transversal a quase todas as categorias de painéis, excepção naturalmente feita para os jocosos, dada a reverência com que é encarada.
31Os painéis Religiosos davam preferência às figuras maternais protectoras da Virgem Maria, assim como da Rainha Santa Isabel e de Santa Joana Princesa de Aveiro, também por influência dos livros escolares. Os textos destes livros apresentam as figuras femininas não como heroínas, mas como companheiras de heróis e/ou como personificação de virtudes cristãs de fé, resignação e caridade. Em geral, as mulheres eram associadas à religião e às virtudes católicas. A Rainha Santa Isabel e Santa Joana eram tema de vários textos, nos quais a sua santidade e milagres eram descritos como factos históricos reais e inquestionáveis. O culto da Virgem era cuidadosamente reforçado, não só na secção de leitura dos livros, mas também na longa secção de “Doutrina Cristã” (na realidade, Católica). Estes ensinamentos eram – e ainda são – reproduzidos e ilustrados em muitos dos mais artisticamente decorados painéis de moliceiros.
Figura 6
Figura 6

Alguns textos moralistas eram directamente transferidos dos livros escolares para os painéis do moliceiro, devido quer ao seu impacto ideológico, quer ao facto de os decoradores concordarem efectivamente com a mensagem inerente. O painel com a legenda “Uma boa acção”, por exemplo, representando um jovem a transportar o feixe de lenha de uma senhora idosa, copia não só a imagem mas também o título do texto homónimo “Uma boa acção”, do livro de leitura da quarta classe, além de inspirar outros painéis, como era visível ainda na década de 80.
Figura 7
Figura 7

32De forma semelhante, o texto intitulado “Dois Portugueses” recorda a noção de “uma grande Nação unida” (“Portugal vai desde o Minho a Timor”), já que as colónias eram vistas como meras províncias ultramarinas, de forma a contornar as críticas da comunidade internacional. Isto originou o aparecimento de painéis com os dizeres: “A cor do sangue é igual”, “Ambos somos filhos de Deus” e “Diferentes na cor, mas somos iguais na pátria”, onde diferentes raças veneram a Cruz e a bandeira portuguesa em perfeita igualdade.
Figura 8
Figura 8

33Apesar de estas mensagens ideológicas surgirem em livros destinados a crianças entre os sete e os dez anos, tal não significa que se deva encarar os moliceiros e a sua arte como produto de mentes pueris. Na verdade, os seus autores mais não fazem do que reter, reproduzir e, por vezes, adaptar os parcos conhecimentos doutrinários apreendidos na escola primária e que o contexto social, económico, cultural e religioso envolvente se encarregou de perpetuar.

3. A discreta arte da subversão

34Contudo, mesmo sob a capa da hegemonia, o contestatário pode sempre ocultar o desafio e a sátira e fazer passar a sua mensagem dúplice com relativa imunidade. Por isso, as autoridades não descuravam estes potenciais meios de comunicação (logo, de subversão) popular e supervisionavam-nos activamente. As pinturas do moliceiro eram o principal meio não autorizado e anónimo através do qual a população local podia expressar-se, um facto que incentivava a paródia, o grotesco e as mensagens subversivas, como contra-celebração dos valores oficiais.
35Os artistas anónimos do moliceiro desenvolveram os seus próprios códigos, mitos, heróis e padrões sociais. O isolamento, as condições análogas e a dependência mútua entre subordinados favoreceram o desenvolvimento de uma cultura local, apoiada numa forte imagética de “nós versus eles”. Em termos subversivos, quando tal ocorre, o objecto em si torna-se numa força poderosa de coesão social, visto que todas as experiências subsequentes são mediadas por uma visão partilhada do mundo. O resultado prático é que essa cultura popular – da qual estes painéis fazem parte – alcança o anonimato da propriedade colectiva e é assim constantemente ajustada, revista, truncada ou até mesmo ignorada. A multiplicidade de autores confere-lhe protecção e, quando deixa de corresponder aos interesses comuns, desaparece: assim os painéis são modificados, pintados de novo, reescritos ou pura e simplesmente apagados.
36As pinturas do moliceiro tendiam a ser vistas como o produto de um modo de vida local, rude, simples, ingénuo e pitoresco. Durante quase um século, estas palavras foram repetidas em ensaios e etnografias, guiadas por preconceitos culturais, para caracterizar a arte do moliceiro. De facto, os erros ortográficos, juntamente com imagens simples e directas em cenários rurais, parecem provar que essa arte era (e é) produto de uma comunidade ignorante e centrada sobre si própria. No entanto, muitas vezes, ao encenar ostensivamente a sua própria ignorância, os actores sociais estão a utilizar criativamente os estereótipos designados para os estigmatizar. Sendo “superiormente” considerados ignorantes pelo poder político e científico, e sabendo que uma crítica directa teria sérias consequências, os pintores de moliceiros escondem a crítica por detrás da máscara da ignorância, para desviar a atenção das autoridades. O que levou Eric Hobsbawm a afirmar: “A recusa de compreender é uma forma de luta de classes” (1973: 13).
37A simbologia épica, por exemplo, é não só reproduzida mas também adaptada pelo moliceiro aos heróis locais, que são os mestres barqueiros e moliceiros, tradicionalmente retratados a cavalo, em pose guerreira, quando não acompanhados de espada e escudo, e com bandeira e castelo por cenário, numa original e irreverente transposição da gesta nacional para a gesta local da sobrevivência quotidiana.
Figura 9
Figura 9

  • 4 Ver a referência aos painéis do moliceiro no texto de 1940 de Luís de Pina, “Arte Popular”, inserid (...)
38Por outro lado, textos visivelmente políticos, tal como “O Estado Novo”, “O Chefe de Estado” e “O Governo da Nação”, uma presença previsível nos livros de leitura, louvando Salazar e as virtudes do seu regime, não tinham qualquer influência nos painéis e inscrições do moliceiro, embora algumas etnografias da época tentassem negar esse facto (Lage, Ferreira e Chaves, 1940: 72).4 A História antiga, o passado longínquo, pleno de heróis semi-lendários, é passível de celebração popular, como uma “idade de ouro” e abundância, tal como o passado mítico de reis, rainhas, princesas e cavaleiros da tradição oral. Torna-se, porém, impossível celebrar a história mitificada contemporânea, que a realidade circundante de pobreza demonstrava ser uma mera ficção. Os moliceiros ignoravam as questões políticas (até mesmo questões maiores, tal como a guerra colonial); não criticavam as autoridades, mas também não as louvavam. De facto, e citando James C. Scott, “a especificidade da expressão cultural do grupo dependente é criada em grande parte pelo facto de, pelo menos nesta área, o processo de selecção cultural ser relativamente democrático” (1990: 157). Os grupos subordinados decidem a que aspectos dar ênfase, adoptam-nos para uso próprio e criam assim novos artefactos e práticas culturais que respondem às suas necessidades e sentimentos. O que resta, então, dentro da cultura popular depende em grande parte daquilo que a comunidade decide aceitar e transmitir. Isto não significa que as práticas culturais não sejam afectadas pela cultura dominante; contudo, a eficácia desse controlo é menor.
39Na generalidade, os livros de leitura do Estado Novo veiculam o estereótipo da mulher enquanto mãe e dona de casa, uma “nobre missão” a que as raparigas estavam predestinadas desde a infância. Segundo a ideologia dominante, as mulheres sacrificavam com alegria as suas vidas, trabalhando arduamente no lar e no campo, tendo os filhos como única e exclusiva recompensa. Existe até um texto no livro de leitura da segunda classe, onde um irmão agradecido exclama, na derradeira e memorável frase: “Como são lindas as meninas que sabem coser”. A agricultura era a única actividade fora do lar que os livros permitiam e celebravam para a mulher.
40Mas, no contexto real de trabalho do moliceiro, tais estereótipos de género não funcionavam exactamente como pretendiam os discursos e representações oficiais. Para garantir a subsistência familiar, a mulher sempre teve (e tem) de trabalhar fora do lar, sendo o trabalho doméstico e a educação dos filhos um elemento quase residual no duro acumular de tarefas do quotidiano. A mulher do povo, tal como é representada nos painéis do moliceiro, é a lavradeira, a pescadeira, a varina, sempre no seu ambiente de trabalho exterior, sem qualquer figuração de crianças nem referências ao lar ou à maternidade (excepção para os painéis jocosos que satirizam o motivo da noiva grávida). Ao contrário das cenas familiares dos livros de leitura, que representam maioritariamente famílias do meio rural, com as hierarquias simbolizadas através do código corporal (o homem mais alto do que a mulher, por exemplo), os pares dos painéis dos moliceiros têm códigos corporais semelhantes, na acção e nas dimensões, pois homens e mulheres são igualmente actuantes e relevantes no trabalho quotidiano.
Figura 10
Figura 10

41De modo semelhante aos livros de leitura, o universo referencial espácio-temporal dos moliceiros está confinado à aldeia, ao meio rural, à comunidade camponesa, à família e ao trabalho. Destaca-se a ideia de que o trabalho duro, ao ar livre, é salutar, se bem que os painéis por vezes lamentem a miséria, dificuldades e perigos da vida no campo e no mar. A imagem institucionalizada do camponês trabalhador e sacrificado é celebrada em sérios painéis sobre o trabalho, mas também pode ser fortemente satirizada em painéis jocosos. O respeito devido à faina agrícola é, nesta região tão próxima do mar, claramente superado pela celebração quase épica do pescador, do homem do mar. O pescador de alto mar nunca é satirizado, numa visão próxima da – mas não motivada pela – retórica do regime, que pretende representar o pescador da faina maior como legítimo herdeiro dos marinheiros dos Descobrimentos, um simples artifício retórico, dado que na realidade aqueles viviam em condições miseráveis.
42De facto, a supervisão ideológica por parte das autoridades centrais e locais não era completamente eficaz. Os pintores dos moliceiros, por exemplo, sempre privilegiaram a taberna como cenário para os painéis jocosos que satirizam a figura típica do bêbado local, com um tom humorístico que expõe o ridículo da realidade, ao invés de seguir o discurso moralista oficial. A taberna, o inimigo visado pelo código moral do regime, é na realidade um espaço de convívio há muito instituído na prática social, imune à retórica do regime. Mas há que ter em atenção a especificidade da taberna no contexto português: apesar de a taberna – tal como o mercado de Bakhtin (1984: 145-95) – ser geralmente considerado um espaço de discurso anti-hegemónico (Scott, 1990: 122), devido à sua relativa distância da vigilância oficial e ao facto de ser o principal local de reunião não-autorizado das classes trabalhadoras, ela não pode ser vista como um espaço de resistência aberta ou organizada, no Portugal pré-democrático.
43A comunidade popular critica a taberna somente quando esta é frequentada em excesso (apenas por homens) e deste excesso advém a incapacidade mais ou menos permanente para o trabalho, como no caso dos alcoólicos indigentes locais. E, mesmo neste caso, o comentário do moliceiro é sempre feito em tom jocoso, pois os marcadores comportamentais fundamentados em dicotomias de lícito/ilícito, bem/mal e permitido/proibido, com base na autoridade religiosa, estatal e paternal (“Deus, Pátria e Família”), são complementados com noções relativizantes muito pragmáticas e permeáveis, que subsistem há décadas.
44Figura 11
Figura 11

4. A (re)invenção contemporânea da tradição: a cultura popular como produto simbólico

45À medida que a agricultura tradicional vai lentamente desaparecendo, a geografia mental da comunidade agrícola-moliceira da Ria de Aveiro também muda, de um espaço agrícola centenário para uma mera paisagem rural, onde os antigos espectadores também se tornaram actores. A difusão em massa de uma iconografia virada para o turismo na Ria de Aveiro converte as representações individuais em representações colectivas, e estas estão direccionadas para os grupos sociais dominantes. Contudo, como em todas as mensagens polissémicas, há um fragmento de interpretação individual que prevalece e que diferencia os espectadores directos dos espectadores indirectos, de acordo com a sua origem cultural. Aos espectadores individuais é permitido participar num sistema cultural, histórico, social e económico, mas a sua interpretação da paisagem, tanto real como figurativa, deverá ser consciente e criticamente inserida numa relação que lhes foi imposta pelo facto de os residentes permanentes se terem tornado parte do sector terciário e estarem, agora, em minoria, em grande parte da região da Ria de Aveiro.
46Hoje em dia, a cultura popular e as suas produções estão cada vez mais atentas ao mercado e às regras da procura e da competitividade, e isto aplica-se tanto às produções utilitárias como às não-utilitárias. Este processo de refuncionalização é controlado à distância pela procura de uma massa heterogénea que, no geral, busca produtos que são vagamente simbólicos de um certo Portugal tradicional. Sem querer advogar aqui a procura dos “elementos fundamentais da cultura portuguesa” (Dias, 1961: 97-119) na “alma” dos objectos concebidos pelo povo, o produto artesanal está contudo sujeito a tornar-se num objecto de consumo que, muitas vezes, já não pode ser mais considerado como expressão de uma comunidade. O anonimato do mercado e a necessidade de ganhar a vida podem moldar e transformar os artesãos, enquanto estes moldam e transformam as suas próprias criações. No caso dos moliceiros, por exemplo, durante as duas últimas décadas, houve uma clara inflação no número de painéis jocosos de cariz erótico, cuja originalidade e humor fácil são muito atractivos para os turistas. Tradicionalmente, contudo, estes temas eram minoritários e menos explícitos, se bem que numerosos. Nos painéis tradicionais registados ao longo do século XX, o efeito cómico era, regra geral, resultado de trocadilhos verbais e maliciosos jogos de palavras. Recorrendo a imagens cada vez mais explícitas e elaboradas, os actuais painéis jocosos eróticos atraem a atenção de fotógrafos amadores e profissionais que, por seu turno, divulgam as suas imagens a outros potenciais visitantes e aos meios de comunicação social, todos eles fontes de lucro para a região.
47Figura 12: Painéis jocosos eróticos (2003-2004)
Figura 12: Painéis jocosos eróticos (2003-2004)

48Quando a economia de mercado – base do poder económico que substituiu a hegemonia ideológica – não compreende a própria cultura, o património cultural torna-se externamente determinado e dependente das imagens que os outros criam e transmitem. Assim, os objectos culturalmente moldados (como os moliceiros) tornam-se objectos de consumo que, apesar de aclamados, são parte de um contexto comercial alheio à realidade que os criou e perde-se a possibilidade de compreender as suas funções e significados.
49A procura de objectos genuínos pode resultar numa autenticidade encenada, onde os objectos culturais são produzidos e aceites como autênticos ou, pelo menos, como razoavelmente similares à situação pré-massificação. Eric Hobsbawm considera que as tradições inventadas são uma tentativa de criar uma ligação de continuidade com o passado e com a identidade de uma comunidade (1983: 9). O conceito de “tradicional” é frequentemente associado ao conceito de “autêntico”, o que nem sempre é correcto, pois a manutenção da autenticidade é um fenómeno directamente ligado ao processo de continuidade e mudança, base de qualquer cultura. Contudo, esta autenticidade encenada pode ocasionalmente levar ao renascimento cultural das tradições, à renovação da identidade local e até à invenção de novas tradições e identidades.
50Tomemos, de novo, o exemplo das festas populares. A celebração dos moliceiros e dos seus painéis nunca foi uma prática popular genuína. Pelo contrário, é uma tradição recentemente inventada, que é explorada, mesmo na actualidade, pelo poder político e especialmente pelo poder económico e comercial, que artificialmente multiplica razões e ocasiões para tais celebrações, orientadas para o lucro e o turismo. Na realidade, no início, os proprietários das embarcações estavam até muito relutantes em participar nessas regatas e concursos e tiveram de ser pressionados com prémios de presença, de modo a participarem em número satisfatório na vistosa parada de barcos, ao longo do canal central de Aveiro. Esta atitude alterou-se profundamente no presente, pois os prémios monetários são agora uma das poucas formas que resta aos proprietários de retirarem algum lucro das suas embarcações.
51Com efeito, a verdadeira importância destes eventos reside não tanto na estratégia de conservação das marcas do passado, mas sobretudo no estímulo dado, por seu intermédio, à recuperação da dimensão mais genuína da festa, o da celebração colectiva, em que todos são potenciais protagonistas. Durante as festas, regatas e romarias, os papéis confundem-se e é cada vez mais difícil distinguir os turistas dos locais, pois estes podem comportar-se como turistas no seu próprio espaço. Muitas das pessoas que deambulam pelas margens tomaram directa ou indirectamente parte na construção e pintura dos barcos que participam nas festas, num duplo processo de exploração turística do espaço. O cruzamento de códigos e práticas culturais, ainda que efémero, dilui as fronteiras que separam a “cultura erudita” da “cultura popular”, numa dessacralização dos critérios convencionais de legitimação estética.
52Na presente conjuntura, não poderemos falar tanto de uma “ressurreição” mas antes de uma “metamorfose” do moliceiro, pois as condições de vida anteriores não foram recuperadas, nem o moliço, que deu o nome à embarcação, tem qualquer papel neste novo contexto social. O moliceiro ressurge no Portugal democrático de finais da década de oitenta, como objecto cultural desfrutável pelos turistas, independentemente da sua função original. O moliceiro foi restaurado devido às suas linhas elegantes e decoração única, tal como qualquer outro barco seria restaurado se a sua aparência estética o justificasse. A metamorfose do moliceiro dá-se a nível funcional, de significado, enquanto elemento de toda uma estrutura sócio-económica, mantendo-se a sua forma distintiva, o objecto em si.
53Em geral, na actual recuperação dos moliceiros para fins turísticos, os pintores modernos tendem a imitar ou até a reproduzir as imagens tradicionais. Tentam encenar o passado no presente, exageram o seu tradicionalismo enquanto reinventam a tradição. Sobreviveram os exemplos históricos dos grandes reis, guerreiros e navegadores, juntamente com a celebração neo-épica dos pescadores de alto mar e da faina maior. Hoje em dia, estes são até representados em maior proporção, se comparados com os seus homólogos das décadas de 1950 e 1960. Luís de Camões, por exemplo, o poeta nacional exaltado pelo Estado Novo, é mais representado hoje do que então. Durante o trabalho de campo que sustenta este ensaio, encontrámos variados exemplos de painéis tradicionais renovados, cujas legendas e imagens ainda ecoam velhas ideologias: “Que Deus vos guie pescadores”; “Deus e Pátria!” (um soldado a cavalo com bandeira nacional); “Todo o mar é nosso!!” (Infante D. Henrique); “Numa mão a pena noutra a espada” (Luís de Camões); “Velhos tempos na Terra Nova” (pesca de bacalhau à linha, num dóri, entre icebergues).
Figura 13
Figura 13

54Os pintores dos moliceiros contemporâneos reproduzem estes símbolos ideologicamente orientados, como se fossem testemunhos de um paraíso rural perdido, numa tentativa de fazer reviver aquilo que consideram ser popular, português, genuíno, tradicional, sem se aperceberem – ou aparentando não se aperceberem – que tais imagens e mensagens estão deslocadas no espaço e no tempo. O contexto ideológico circundante alterou-se e aquilo que em tempos era visto como “genuíno” não era uma reprodução fiel da realidade, mas sim uma representação autorizada e doutrinada pelo Estado.
55Os actuais pintores, alguns deles com educação secundária ou até licenciados em Artes Visuais, parecem colocar de lado as técnicas artísticas que dominam, enquanto tentam criar pinturas mais popularizantes do que propriamente populares, na tentativa de obter o prestigiante (e lucrativo) estatuto de “artesão”. Existe até uma reputada pintora de moliceiros que é professora de Educação Visual numa escola secundária da região. O diálogo entre o artista e os seus materiais torna-se não só numa forma de elevação mas também de rebelião contra a pobreza, ao transformar um objecto aparentemente sem valor (um barco de madeira que recolhe algas) numa delicada obra de arte. Existe uma razoável recompensa pecuniária para estes talentos pseudo-amadores reconhecidos pela comunidade, se bem que, no presente, estes amadores tenham já sido engolidos pela máquina turística estabelecida em redor do moliceiro. De facto, a pressão para construir novos barcos e para renovar os painéis a tempo dos numerosos festivais de Verão, bem como o interesse na captação de turistas facilmente atraídos pelo desenho “perfeito”, levou à procura crescente de novos artistas. Por sua vez, estes, cada vez menos populares e mais qualificados, têm muitas vezes dificuldade em resistir a uma declarada exibição das suas capacidades técnicas e artísticas.
56De entre os novos temas que foram introduzidos nos painéis modernos, a figura feminina é hoje, e mais do que nunca, representada de uma forma dúplice. A diferença entre a mulher local (pescadeira, varina ou camponesa) e a “outra” mulher (a mulher do cinema e da televisão, da cidade, ou seja, a moderna mulher urbana) denota-se nas suas roupagens e funções. No primeiro caso, trabalho e roupas de trabalho (lenço na cabeça, blusa, saia rodada, avental, pés descalços); no segundo caso, lazer e roupagens de lazer (sugestivos vestidos, saltos altos, longos cabelos, fato de banho, roupa interior, nudez parcial ou integral). As varinas e pescadeiras continuam a ser fortes, cheias de espírito e resposta cortante, subservientes ao homem em teoria mas poderosas na prática, numa inversão da ordem social tradicional, em muito auxiliada pela emigração massiva dos seus companheiros nas décadas de 60 e 70. Estas mulheres trabalham num contexto incessante de pobreza e duro labor generalizado, longe dos estereótipos comportamentais burgueses. A mulher “outra”, por seu turno, nunca surge em painéis laudatórios como os que celebram as varinas e pescadeiras. Pelo contrário, as mulheres urbanas e ociosas são objecto de painéis extremamente maliciosos, onde são satirizadas na sua sofisticação e indolência. Estas mulheres são representadas nas suas camas e aposentos, reclinadas a ver televisão, tomando banhos de sol na praia ou caminhando pelos espaços onde os outros (os locais) trabalham.
57Ainda ecoando as lições do Estado Novo, as mulheres modernas (então sinónimo de “imorais”) são representadas em situações eróticas, onde são respectivamente objecto e sujeito de desejo sexual e de encontros sexuais. Mas, hoje em dia, as mulheres são na verdade semelhantes aos homens no que toca a demonstrar as suas intenções e consciência sexual: em painéis que satirizam o preservativo, por exemplo, são as mulheres que instruem os homens ignorantes no seu uso. Quando representadas como varinas ou camponesas, o discurso pode tornar-se poético ou laudatório, mas a sátira prevalece sempre na representação da mulher nos painéis do moliceiro, com réplicas espirituosas e comentários cheios de malícia, tradicionalmente formulados por mulheres.
58Em numerosos painéis jocosos-eróticos, a simbologia e o vocabulário da produção (trabalho) estão plenos de alusões à simbologia e ao vocabulário da reprodução (sexo). Isto é bem visível nas diversas metáforas em que as mulheres são referidas como peixe ou boa pescaria e nas imagens dúbias de homens e mulheres em contexto de trabalho (pesca, caça, recolha de moliço, lavoura) que, assim, se transforma em contexto de prazer. Nos painéis jocosos eróticos, o artista hiper-enfatiza o corpo feminino, representando a mulher de forma carnavalesca, com formas exageradas e vestes sugestivas, multicoloridas, com predomínio do vermelho.
Figura 14
Figura 14

59Nos painéis sobre a vida quotidiana e o trabalho, notamos uma tendencial carnavalização Bakhtiniana (1984: 4-11) na inversão dos painéis do homem e dos animais domésticos. O burro é frequentemente representado com características humanas, como agricultor, mau estudante, espertalhão e, especialmente, como político. Invertem-se papéis e posições em cena, com um homem a carregar um burro às costas, ou a puxar uma carroça, cujas rédeas o animal segura. No imaginário popular, a inversão representa o desejo mais ou menos secreto de inverter também a ordem social de eterna pobreza e sujeição. No contexto pós-Estado Novo, qualquer necessidade de resistência que possa ainda subsistir no moliceiro toma a forma de pesada sátira e é dirigida contra as autoridades que, actualmente, dificultam a outrora livre e descuidada exploração (leia-se delapidação) dos recursos da Ria e – acima de tudo – contra os eternos bodes expiatórios do Portugal democrático: os políticos.
Figura 15
Figura 15

60A autoridade policial, por exemplo, é sempre satirizada. Tal como os padres e os monges, pela sua alegada luxúria disfarçada de virtude (um painel jocoso representa uma rapariga em roupas ligeiras e um padre no confessionário com a legenda “Qual de nós pecou mais?”), se bem que a religião em si nunca seja satirizada em circunstância alguma. Todas as profissões são celebradas pois todo o trabalho é honroso; mas todas as profissões podem ser tema de caricatura, excepção para os mestres moliceiros, construtores ou pintores, e para os pescadores de alto-mar, pelo seu prestígio na comunidade e pelos perigos que enfrentam. A única profissão desonrosa, a única cujos actores são invariavelmente representados como animais, parece ser a da política. Nesta disputa simbólica, o vencedor é sempre a voz do povo, tal como ela é expressa pela voz do moliceiro, através da sátira, da crítica e do lamento, graças à liberdade de expressão garantida pela democracia.
61Tendo em conta estes exemplos, conclui-se que a resistência (sob a forma de sátira) é muito mais forte e declarada na actualidade e é direccionada para os outrora reverenciados e todo-poderosos agentes da igreja e da autoridade, bem como para os agentes de um regime democrático que, ironicamente, deu ao povo a liberdade de expressão. Esta recente liberdade não disciplinou o humor ácido do moliceiro, bem pelo contrário, como se verifica através das diversas representações de mulheres, sexo, políticos, clérigos e agentes policiais, nos painéis do moliceiro.
Figura 16
Figura 16

62Raramente registámos painéis que documentem vivências de classe média: o painel retrata o povo/trabalhador nas suas actividades quotidianas, ou a realeza/nobreza inspirada no imaginário popular. Hoje em dia, o grande veículo de elevação e de normalização social é a televisão, e a sua influência é visível não só em alguns painéis que ilustram efectivamente aparelhos de TV, mas também nas novas personagens e acontecimentos que vão surgindo nos painéis: jogadores de futebol como Figo e Jardel; a diva do fado Amália; o “menino Tonecas”, personagem infantil de uma popular sitcom; políticos como Mário Soares e António Guterres e as crises e escândalos que tiveram de enfrentar; a disputa entre o autarca Rui Rio e o dirigente desportivo Pinto da Costa; a entrada de Portugal na União Europeia em 1986 e a prosperidade ilusória dos fundos comunitários na década de 90; o Euro (e a sua potencialmente cómica designação prévia “Ecu”); a exposição universal de Lisboa EXPO98; o célebre reality-show Big Brother; a loucura nacional dos campeonatos europeu e mundial de futebol de 2004 e 2006; a rivalidade entre equipas de futebol, entre muitos outros. Uma notícia reiterada ou polémica (como as touradas ilegais de Barrancos, a morte do apresentador Fernando Pessa, ou a comunidade nudista brasileira da Colina do Sol) pode gerar imediatamente um novo painel, para rápido consumo e logo substituído, pela simples razão de ter aparecido na televisão.
Figura 17
Figura 17

63Todos estes eventos, assuntos e personagens são democraticamente oferecidos ao povo através da televisão, item obrigatório em qualquer casa portuguesa actual (99% dos lares, mesmo os mais pobres, possui televisão, de acordo com o último Censo). À excepção dos painéis relacionados com o futebol e de homenagem a personalidades públicas recém-falecidas, todos os outros exemplos são representados com traços intencionalmente grotescos e sujeitos a observações muito mordazes. A televisão funde imagens e palavras, tal como o painel de um moliceiro, e torna-se assim numa irresistível fonte de inspiração para os pintores, principalmente quando a realidade imediata esgotou os motivos de sátira. Contudo, a selecção nacional de futebol, tal como as equipas locais, são símbolos reverenciados, encarados como orgulhosos representantes da identidade de uma nação, cidade, vila ou região, e são, por isso, assuntos intocáveis e como tal retratados. A saga nacional dos Descobrimentos, sistematicamente celebrada pelo Estado Novo, encontrou no futebol um sucessor adequado, se bem que inesperado: ambos criam uma sensação ilusória de orgulho patriótico e desviam a atenção da verdadeira situação do país. Ao representar, comentar ou satirizar todos estes tópicos, a moderna cultura do moliceiro ilustra, de forma muito lúcida, o imenso poder dos meios de comunicação social.
Figura 18
Figura 18

Conclusão

64A cultura popular pode ser usada como uma alegoria e convertida em herança histórica, étnica e ética, de que o “povo”, esse personagem tão indefinido, asseguraria em exclusivo a custódia. Com efeito, desde o início, o conceito de “cultura popular” sofre de uma profunda ambiguidade semântica resultante da multiplicidade de significados inerente a cada uma das duas palavras que o compõem. As culturas populares tendem a ser caracterizadas como representando os costumes de grupos sociais subalternos, em constante desafio ao poder. Mas as culturas populares são bem mais do que uma forma permanente e sistemática de resistência. Funcionam também em repouso, exprimindo as diversas formas como os grupos sociais convivem no quotidiano com a dominação (Grignon e Passeron, 1989).
65Por tal, alguns objectos de cultura popular, como o barco moliceiro e seus painéis, são rearticulados de modo a produzir significados oposicionais, criando formas de resistência simbólica. A cultura popular é marcada pela tentativa das classes dominantes alcançarem a hegemonia e pelas formas de oposição a essa tentativa. Este processo de formação da cultura popular não consiste simplesmente na imposição de uma cultura de massas que coincide com a ideologia dominante, nem na criação de culturas de oposição espontâneas. Este processo cultural é antes um espaço de negociação entre ambas, onde os valores culturais e ideológicos, tanto dominantes como subordinados, se cruzam em trocas diversas e permanentes.
66Textos e imagens, tais como os dos livros escolares inspirados pelo fascismo que analisámos, exploram a cultura popular e as verdades ideologicamente orientadas, com vista a estabelecer a posição e os papéis sociais imutáveis do indivíduo no território local e nacional. Ainda assim, dentro dos discursos hegemónicos, podemos observar resistência e aceitação, um facto que resulta em articulação; ou seja, resulta numa negociação entre a cultura dominante e a cultura subordinada, utilizando os conceitos de António Gramsci. Nos seus Cadernos do Cárcere, Gramsci fornece outra pista essencial para qualquer estudo sério e abrangente da cultura popular, quando afirma que “o ponto de partida da elaboração crítica é a consciência daquilo que se é realmente, é ‘conhecer-se a si mesmo’ enquanto produto do processo histórico que depositou no indivíduo toda uma infinidade de traços, sem deixar um inventário” (1971: 54).
67É precisamente esta a lição que a história dos moliceiros ensina – os textos icónicos e escritos patentes em cada barco são produto de uma rede de circunstâncias políticas, ideológicas, sociais e económicas, dificilmente detectáveis e em geral demasiado distantes ou comummente aceites para serem reconhecidos de forma crítica, mesmo por aqueles que desenham, pintam, escrevem e vivem sob a sua influência. Contudo, é esse inventário invisível de Gramsci que constitui a fonte de inspiração para os painéis tradicionais e permite a sua organização em categorias, com um conjunto de regras pré-estabelecidas e tacitamente seguidas em cada nova ocorrência. Hoje em dia, há novos assuntos que são adicionados todos os dias, como resultado do poder volátil dos media, apesar de o artista popular – porta-voz da comunidade – escolher que assuntos devem ser ignorados e que assuntos devem ser reproduzidos e assim perpetuados.
68A intensa busca pelas origens da genuína cultura portuguesa inspirou a maior parte do discurso pseudo-científico que, ao longo do século XX, tentou transformar a narrativa das tradições populares numa descrição e justificação da própria identidade nacional. Desta forma, esta breve história cultural dos moliceiros também confirma que os meios institucionais de instrução e propaganda, as representações oficiais da realidade e as fontes documentais em geral devem ser criteriosamente avaliadas quando se estuda a cultura de um país dominado pela censura e pelos poderes hegemónicos durante décadas. Os recursos poéticos e políticos são utilizados em conjunto de forma a construir e preservar a alegoria da tradição como guardiã da verdadeira identidade nacional, juntamente com o mito das origens gloriosas que legitimam o prestígio auto-proclamado de posteriores autoridades governantes, bem como outras verdades manipuladas, muitas vezes ainda repetidas no presente.
69Mais do que testemunhos de “tradição” ou “resistência”, objectos como o barco moliceiro são actualmente considerados como representantes da identidade e do património cultural de uma comunidade local, intimamente ligada a um ecossistema específico, como é a Ria de Aveiro. No caso presente, os painéis do moliceiro são representações simbólicas inter-semióticas dos valores, práticas e representações partilhadas pela comunidade. Mas, hoje em dia, o moliceiro participa também de uma lucrativa estrutura económica e turística organizada em redor do objecto-barco, que perdeu entretanto quase toda a sua antiga função social e económica e foi reinventado enquanto símbolo cultural distintivo da região turística da Ria de Aveiro, reconhecido nacional e internacionalmente. Trata-se aqui, contudo, de uma metamorfose e não de uma ressurreição do objecto cultural, com novas funções dentro de um novo contexto, orientado pelas exigências do sector terciário.
70Em conclusão, este texto estudou um barco com características únicas que, de início, estava estreitamente ligado a uma comunidade e a uma economia local. Mais tarde, ao longo do século XX, o moliceiro e seus painéis participaram numa complexa dialéctica entre as representações do discurso oficial e a sua real função social, económica e simbólica. Contudo, os actuais agentes do turismo e da economia de mercado não podem dissociar-se do imaginário histórico – ou do inventário – que motivou, contextualizou e sustentou esta forma de cultura popular durante séculos, sob pena de estenderem a Portugal os teatros etnográficos e os museus de práticas perdidas em que tantas outras culturas foram já transformadas.
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Notas

1 Com quarenta e sete quilómetros de extensão, a Ria de Aveiro atinge uma largura máxima de sete quilómetros, apesar do seu progressivo assoreamento. A profundidade varia entre um e dois metros e pode elevar-se nas cales até quatro a seis metros. Abrange uma superfície líquida calculada em seis mil hectares, que se ramifica pelos braços principais de Ovar (em direcção ao Norte), Mira (voltado a Sul), Murtosa (a Nordeste) e Vagos (a Sudeste). Além destes, existe uma infinidade de braços secundários em ligação com os rios Vouga e Águeda, formando um extenso labirinto com as suas ilhas, canais, valas e esteiros que penetram por toda a região.
2 Contudo, a crise económica actual forçou as autoridades locais não só a cancelar ou a diminuir as encomendas, mas também atrasou o pagamento de muitas delas. Durante o ano optimista de 1998 (o ano da Expo98) a Câmara Municipal de Aveiro encomendou cerca de 25 novos moliceiros, mas esse projecto está actualmente suspenso.
3 Tal como banhar em vinho tinto a imagem de madeira de um santo padroeiro local (S. Paio da Torreira), de forma a obter protecção contra as maleitas. Esse vinho “sagrado” era posteriormente consumido em grandes quantidades, com previsíveis consequências.
4 Ver a referência aos painéis do moliceiro no texto de 1940 de Luís de Pina, “Arte Popular”, inserido no livro de Francisco Lage “Vida e Arte do Povo Português”, publicado e supervisionado pelo Secretariado da Propaganda Nacional: “Mas o artista actualiza as suas criações e, por isso, já aparecem alusões políticas e sociais: bustos de Salazar, legionários, filiados na Mocidade Portuguesa. Actualiza e moderniza os seus tipos, agrupa figuras, sofre a influência da política internacional” (Pina, 1940: 69-81). Contudo, não se localizou nas fontes consultadas quaisquer representações de Salazar, de legionários ou de filiados na Mocidade Portuguesa (excepção para uma curiosa ocorrência que mistura um jovem da Mocidade com o retrato do rei D. Manuel II), que seriam decerto as primeiras a ser reproduzidas e divulgadas, caso tivessem realmente existido.
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Índice de ilustraciones

TítuloFigura 1: Barco Moliceiro na Ria de Aveiro (2002)
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TítuloFigura 2: Painéis de Moliceiros (finais da década de 90)
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TítuloFigura 3 – Os 3 vencedores do 1º Concurso de Painéis de Moliceiros, Março 1954 (à esquerda) e Quatro moliceiros a concurso, Abril 1962 (à direita)
CréditosFonte : Centro Português de Fotografia
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TítuloFigura 4 – Livros de leitura
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TítuloFigura 5
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TítuloFigura 6
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TítuloFigura 7
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TítuloFigura 8
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TítuloFigura 9
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TítuloFigura 10
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TítuloFigura 11
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TítuloFigura 12: Painéis jocosos eróticos (2003-2004)
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TítuloFigura 13
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TítuloFigura 14
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TítuloFigura 17
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TítuloFigura 18
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Para citar este artículo

Referencia electrónica

Clara Sarmento, « A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro », e-cadernos ces [En línea], 10 | 2010, Puesto en línea el 01 diciembre 2010, consultado el 23 julio 2014. URL : http://eces.revues.org/607 ; DOI : 10.4000/eces.607
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Autor/a

Clara Sarmento

Doutorada em Cultura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Professora Coordenadora no Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto do Instituto Politécnico do Porto (ISCAP-IPP). Directora do Mestrado em Tradução e do Centro de Estudos Interculturais (www.iscap.ipp.pt/~cei) do ISCAP-IPP. Vencedora do American Club of Lisbon Award for Academic Merit e do Prémio CES para Jovens Cientistas Sociais de Língua Oficial Portuguesa.
clara.sarmento@iol.pt
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