AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012


Um conto de Natal (que, como todos, não acaba mal)


"A morte voltou para a cama, 
abraçou-se ao homem e, sem 
compreender o que lhe estava a suceder, 
ela que nunca dormia, sentiu que o sono 
lhe fazia descair suavemente as pálpebras.
No dia seguinte ninguém morreu." 
Saramago - As intermitência da morte" - pág. 214


Se a Morte tivesse qualquer sentimento, como em tempos terá sentido, esse sentimento era o da surpresa aliada à sua confessada impotência de, por si mesma, acabar com a vida. A surpresa tida foi pela manifesta ignorância do ministros. Mas foi da sua impotência em satisfazer o governo que falou demoradamente, naquele conselho onde o primeiro ministro a quis presente. "É a vida que determina quando intervenho", disse a Morte. Disse-o mais que uma vez e ilustrou que é coisa humana o acontecer encurtar-lhe a chamada. Mesmo que o último sopro de vida seja coisa natural, ela tem de esperar que tal aconteça para cumprir a sua tarefa. Explicou que não se desespera pela espera, nem se apoquenta se a vida se prolonga. Todos os ministros a escutaram, contrafeitos por não terem, como esperavam, uma colaboração a contento. A um dado momento, a Morte deixou insinuar que apenas tinha alguma capacidade de persuasão aos vivos deprimidos para se deixarem levar por ela. Gostaram dessa parte e logo o  ministro da coisa social lhe estendeu uma pen, dizendo-lhe. "Tem nesta base de dados milhares de coitados a quem cortámos a pensão, a quem lhes vai faltando a sopa e o pão, a todos cortaram a electricidade por falta de pagamento e a água ser-lhes-á cortada a qualquer momento, faça o seu melhor".

A Morte saiu à rua pronta para cumprir a tarefa prometida de ir, na medida dos seus saberes, acabando com a vida. E assim fez, seguindo a lista que o ministro lhe dera. O tempo foi-se passando e com a sua forte persuasão aumentaram os suicídios, os parricídios e muitos outros crimes de sangue. Alguns nomes da lista eram apenas convencidos a deixarem-se morrer, e morriam. Quando restava um único nome na lista, para toda a sua missão se considerar cumprida. dispôs-se a ir convencê-lo a acabar com a vida.

O homem estava sentado no escuro, pouco se incomodando com ele. Conhecia todos os cantos à casa, a disposição de todos os móveis e a colocação de tudo o que precisava mas que deixou de usar. Não era a escuridão que o incomodava. A fome ia-a enganando como podia e a sede era saciada com a chuva que ia apanhando numa bacia, numa jarra e numa panela, colocadas, uma em cada janela. Ia sobrevivendo ocupando o pensamento com coisas de não pensar. O homem levantou-se e numa decisão, não pensada, tomou um destino impensável: ser um sem-abrigo. Na rua, andou, andou, andou e os pés e pernas lhe incharam de tanto andar. Perdeu a noção dos dias. Perdeu a noção de tudo. Fugia de todos, até dos outros sem-abrigo. A Morte, que o seguia, sentindo a falta do luar, resolveu ser a altura certa para o abordar. "Que vida esta, aquela que tu levas?" e o homem não lhe respondeu. "Porque não lhe pões fim?" e o homem não lhe respondeu. "Ninguém suporta uma vida assim..." e o homem parou, olhou a morte de frente e, sorrindo sem lhe responder, seguiu-lhe a sugestão. Seguiu em frente, virou à direita, meteu-se pela rua estreita e depois por outra, larga, que dava para a marginal. Atravessou-a, lentamente, direito ao penhasco que havia ali, sobre o mar. Nem ouviu o que se teria ouvido se mais gente por ali andasse. E o carro com travões a fundo e guinando para um dos lados, não evitou o embate...

Uma luz clara inundava todo o branco ambiente que se ia alegrando com os tons coloridos das luzes que iam piscando, de um canto. Abriu os olhos e deu com uma cara de anjo que o não era pois os anjos, que se saiba, não usam estetoscópios pendurados em pescoços bem torneados. A médica sorriu-lhe, "Livrou-se de boa, dorme há três dias. Amanhã, se tudo correr bem, já pode ter alta" e quando ia a sair regressou "Há uma senhora, que tem vindo todos estes dias, deixou-lhe este recado." e estendeu-lhe um papel perfumado. Dizia:
"O governo foi demitido depois da sublevação impetuosa dos sem-abrigo... tu eras o último da lista... Não te incomodo mais. Incomoda-me tu a mim." e tinha um número de telefone de uma rede fixa, no fim.

Rogério Pereira 

CONVERSA AVINAGRADA

Sem comentários: