«Carta a uma Jovem Portuguesa» - relembrada por Rui Felício
Em Abril de 1961 é publicada na Via Latina a “Carta A Uma Jovem Portuguesa”, do estudante Artur Marinha de Campos.
Foi uma pedrada no charco putrefacto da falsa moral e dos apregoados bons costumes que Salazar impunha para defesa de um puritanismo ultrapassado e balofo.
A carta denunciava a diferença abissal entre os direitos e comportamentos dos rapazes, em contraponto à passividade das raparigas, educadas para viverem no fingimento e na mentira, proibidas de expressarem livremente os seus sentimentos.
Aquela carta tornou-se uma bandeira, um verdadeiro manifesto que despertou as consciências e libertou as amarras e os preconceitos da juventude mais instruida.
O regime sentiu-se atingido numa das suas principais carateristicas basilares de amordaçar as liberdades.
E a reacção não se fez esperar.
As autoridades fizeram circular os boatos mais ordinários e insultuosos, através dos quais se acusavam as raparigas estudantes de se prostituirem, de fazerem sexo indiscriminadamente com o primeiro rapaz que se lhe deparasse e que o faziam nas matas do Jardim Botânico, ofendendo, com os seus comportamentos, os sãos principios das “pessoas de bem” das senhoras, e das crianças que passeavam naquele Jardim.
A seguir, mandaram fechar os portões do Jardim Botânico todos os dias depois do pôr do sol.
Antes disso, o Jardim estava aberto 24 horas por dia. Não sei se a restrição ainda se mantém nos tempos actuais.
Aquela carta foi um importante marco na libertação mental das mulheres portuguesas. Que ultrapassou as fronteiras de Coimbra e pouco tempo depois atingiu as Universidades de Lisboa e do Porto.
Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
Reprodução integral da «Carta a uma Jovem Portuguesa» no «Via Latina» nº 130, de 19 de Abril de 1961 aqui.
Excerto da «Carta»:
"«A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro, que nem eu nem tu construímos. A nós, rapazes, de viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante da sombra e da repressão mental. (…) Beijas-me e sofres. Dizes, não o devia ter feito, porque julgas que o deverias ter pensado.»"
Excerto de uma abordagem interessante em Esquerda.net: "É neste ambiente que, em Abril, rebenta o escândalo da publicação do texto “Carta a Uma Jovem Portuguesa”, do estudante Marinha de Campos, no Via Latina, semanário da Associação Académica de Coimbra. O texto torna-se um manifesto contra o moralismo serôdio do salazarismo(...) Sucedem-se as acusações e, nas hostes associativas, o embaraço é grande. Mesmo para as estudantes mais emancipadas, como as do Conselho Feminino da AAC, não é fácil tomar partido pelo texto. No Encontro, jornal da Juventude Universidade Católica, é denunciada a «apologia descarada do amor livre e a negação de toda a espiritualidade do matrimónio». A direção associativa remete-se ao silêncio e o jovem Marinha de Campos aceita dar explicações em Assembleia Magna, onde se defende timidamente, tentando evitar o encerramento da AAC, temido por muitos. O Via Latina publica uma edição aberta às críticas à Carta, sem a valorizar, em nome da liberdade de expressão."
E recomendo também a leitura deste «Resumo d´A reidentificação do feminino e a polémica sobre a “Carta a uma Jovem Portuguesa”, de Rui Bebiano e Alexandra Silva, publicação do nº 25 da Revista de História das Ideias (2004)» no blog «Mátria Lusitana».
A Funda São
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