Santhiago Moacir nasceu em Matola, Moçambique, não longe de Lourenço Marques, atual Maputo, no já longínquo ano de 1945. Filho de mãe preta e pai desconhecido, Moacir depressa recebeu a alcunha de “cabrito”, o que sugeria a cor da pele do progenitor.
Por qualquer motivo, do qual não será de desprezar o económico, a mãe de Santhiago nunca referiu o nome do pai da criança. Dentro da sua pobreza, nunca passou fome, não lhe faltou comida, roupas,  adereços e, por vezes até, um pouco de cor para colocar nos olhos e nas unhas. A criança sempre teve algo material que a diferenciava das outras do seu bairro, para além da cor da pele e da estatura.
Santhiago nasceu com olhos claros, pele tom de galão claro, cabelos mais escorridos do que encarapinhados,  mais alto do que o comum, sem ser branco nem preto, com mãe e sem pai.
Santhiago cresceu feliz. Depressa aprendeu a lidar com o facto de ser cabrito, entre outras ofensas menores. Que a verdade seja dita: as ofensas, as maldições, os maus-olhares, foram quase sempre suprimidas pela sua presença física e o poder oculto atribuído ao seu desconhecido pai. Em 1955, terminou com distinção a 4.ª classe. Por decisão materna, enveredou pelo prosseguimento de estudos, para grande escândalo da sociedade em que estava integrado.
A esta hora já estarão os leitores que seguem estas palavras a perguntar-se da razão de terem de saber da “estória” de Santhiago Moacir. Pelos vistos, nem sequer é árbito de futebol como sugere o título. Pois é muito simples: todos nós podemos encontrar  Santhiago Moacir no jardim do Campo Grande, em Lisboa.
Desenganem-se, não está numa cadeira de rodas, não é um velhinho simpático que poderia ser romanceado como nosso avô e não pode ser arrumado dentro das nossas caixas mentais impermeáveis, insonoras, inodoras e insolúveis.
O senhor é um velhote seco e alto, nem branco nem preto, muito menos mulato e que, independentemente das estações do ano e das condições atmosféricas, põe um quico na cabeça, veste uns calções, camisa de manga curta, meias até meio da perna, com umas botas que acabam um pouco antes do término das meias. Toda a sua indumentária tem um denominador comum, a cor beje.
Todos os dias percorre o jardim do Campo Grande, com um ritmo cadenciado: cinco passos, o que equivale a cinco metros, uma apitadela. Começa na estação de metro do Campo Grande e acaba na estação de metro de Entrecampos. Volta atrás e faz de novo. Repete e repete. Cansa só de ver.
Nos dias em que está mais desatinado vai para o asfalto, cara a cara com os carros, em contramão, como forcado na arena. Quando algum condutor o adverte com uma buzinadela, saca do apito de forma ostensiva e estridentemente, como que dando fé que o Campo Grande é dele e não de nenhum parolo sentado atrás de um volante.
Vamos voltar ao sujeito enquanto novo e que é o motivo desta “estória”, ou seja, a Santhiago. Terminou o antigo 5.º ano do liceu, em 1960. Em Moçambique este sucesso foi um marco. Um não branco terminar o 5.º ano liceal era “obra”.
Muitos anos depois, este caso ainda era lembrado em Matola, tal como os ecos da festa comemorativa, como nunca se tinha visto até então e como nunca mais se veria até aos festejos da independência, como era referido pelos mais velhos. Ainda na atualidade, quando o povo simples da Matola se quer separar da elite de Maputo, refere este acontecimento.
Santhiago viu-se quase doutor, mas sem saber o que fazer. Com 16 anos, sentia-se dono do mundo, acreditando que para ele não existiam limites. Decidiu conceder a si mesmo um ano de licença, que se foi arrastando para lá disso.
No entanto, não ficou parado. Incapaz de parar de se cultivar, nesses quase três anos que passaram, aproveitou para tirar nas belas praias moçambicanas um mestrado seguido do doutoramento em ciências naturais, aplicadas ao sexo feminino.
Um dia encontrou finalmente o seu caminho. Alistou-se no exército português. Mas o que provavelmente poderia ser um caminho sem escolhos, tornou-se um ano depois do seu alistamento num inferno. Tinha começado a guerra de libertação de Moçambique.
Santhiago sempre fora um homem de palavra. Embora concordasse com a independência do seu país, decidiu ficar do lado do exército colonial português. Decisão complexa e nunca totalmente fechada no seu coração.
Cinco anos passaram, nos quais o sargento Moacir viu muitas coisas, sentiu cheiros nauseabundos, muito estremeceram os seus ouvidos, sangue e entranhas engoliu, pegou em membros deslocados dos corpos. Por tanto e tanto passou que a guerra se tornou para ele um fardo superior às suas forças e da qual não sabia como se livrar.
Um dia teve uma visão. Uma visão terrestre pois o sargento Moacir dando continuidade ao jovem Santhiago não tinha religião. Uma “camone” que partilhou com ele as areias da praia de Bilene decidiu também compartilhar o seu coração.
Um simples salto para a África do Sul, um passaporte falsificado e um voo para Inglaterra libertaram-no da sua cruz. Em três dias, o de novo jovem Santhiago estava de regresso ao regaço da sua “bifa”.
Anos depois, a paixão tinha acabado e o amor nunca tinha sido o forte do casal. Separaram-se. Entre queixas do clima, da frieza britânica, do excesso de trabalho para ganhar a vida, coroado pela recusa da sua inglesa em constituir família, Santhiago nunca se conseguiu habituar ao país de acolhimento.
Com o fim da guerra colonial e a independência de Moçambique, decidiu ir à embaixada do seu recém país. Saiu de lá lívido. O regresso à pátria significava a prisão: tinha sido considerado um traidor por ter lutado ao lado dos colonialistas. Sem esperança, tentou a embaixada portuguesa; aí o seu nome era sinónimo de desertor.
Com trinta e poucos anos, Moacir viu os seus cabelos embraquecerem. Não o sabia, mas era o retorno à juventude. Não à juventude das praias selvagens, desertas e solarengas moçambicanas, mas à praia das pensões e hóteis com mais ou menos estrelas, da costa nevoenta e chuvosa da Grã-Bretanha.
O seu cabelo cor de neve, aliado à sua presença esbelta, reservavam-lhe um lugar de destaque entre as viúvas, divorciadas e outras com estado civil diferente. As suas perfomances e sentido de reserva eram elogiadas de boca em boca, pelo que Santhiago passou as duas décadas seguintes a alicerçar os seus conhecimentos nas ciências da natureza. Como ele costuma dizer enigmaticamente, conhecia a costa inglesa como ninguém.
Santhiago foi-se cansando desta vida. As ofertas de trabalho começaram a escassear. Por fim, decidiu retirar-se. Com um pé-de-meia suficiente para poder viver com dignidade a sua velhice, decidiu tentar voltar a Moçambique. Nem pensar! Continuava a ser considerado um traidor.
A África do Sul com as suas convulsões raciais meteram-lhe receio. Portugal com as suas amnistias aos antigos desertores de guerra acabou por se tornar o seu destino natural.
Com 60 anos recentemente festejados, o senhor Moacir, ligeiramente mais gordo, mas ainda atraente, chegou a Lisboa, indo de imediato para uma casa que tinha alugado na Portela.
Aos poucos, integrou-se, fez vacilar alguns corações femininos dos quais soube tirar o rendimento suficiente. Três anos depois da sua chegada, Moacir tratava a capital portuguesa por tu, como se fosse a sua cidade de sempre. A vida voltava a sorrir-lhe.
No ano de 2009, entrou na sua vida a jovem Maria. Morena, bem torneada, meã de altura, olhos verdes, voz sensualmente rouca, medidas certas, alegre, despretenciosa e espontânea, depressa se alojou feita lapa no coração de Moacir. Ou de Santhiago? Nos primeiros meses da sua relação, o jovem Santhiago claramente se sobrepôs ao senhor Moacir.
Mas onde Santhiago, Moacir? via ingenuidade, existia apenas frieza e trabalho. Onde ele pressentia paixão, existia esforço. O bom caráter de Maria não passava de um controle férreo sobre si mesma. Onde ele via presentes, ela via dinheiro. A paixão dela não passava afinal de auto-disciplina.
Pela primeira vez na sua vida, Santhiago Moacir começou a despender em vez de amealhar. Como nunca tinha gasto, não sabia gerir.  No final de 2010, tinha acabado a relação e o dinheiro. A sua solitária passagem de ano foi a última na sua casa da Portela, já ameaçado de despejo por falta de pagamento da renda.
Durante o ano de 2011, já recolhido num lar para os antigos combatentes – quando a mão portuguesa não executa de imediato, o coração acaba por perdoar – viu-se que Maria não lhe tinha levado apenas o dinheiro, os discos, os livros, o recheio da casa, tinha-lhe retirado também o miolo.
Há semanas que Moacir vegetava na sua camarata, quando nela entrou José, recém reformado da profissão e voluntário de coração. Moacir gostou da conversa, gostou que José lhe fizesse a barba. José gostou do charme que ainda emanava do seu interlocutor, das suas histórias bem apimentadas.
José voltou. Palavra puxa palavra, ou serão as palavras como as cerejas? Em breve se tornaram confidentes. Um dia, José trouxe fotografias da família, da infância. Moacir fixou-se numa em que o seu novo amigo estava vestido com a farda dos escuteiros e com um apito ao pescoço. Convenceu-o a deixar a fotografia na camarata.
Ficou tão pregado na foto, que o amigo como prenda de aniversário lhe trouxe umas botas, farda de escuteiro à sua medida e, cereja no topo do bolo, um apito.  Logo nesse dia, bem escanhoado e já vestido com a sua farda cor de caqui, saiu à rua. Campo Grande acima e Campo Grande abaixo.
Agora está feliz de novo. Santhiago consegue ainda dar passadas de um metro e Moacir põe os automobilistas na ordem com os seus cabelos brancos. Os “habitués” do local olham-no com simpatia. Toda a gente o respeita e mete conversa.
Só para terminar deve-se dizer que Santhiago Moacir, está com um processo disciplinar às costas por ter infringido o regulamento interno da casa de acolhimento: por mais de uma vez foi apanhado na camarata com umas “camones” que ele “sacou” durante o seu circuito habitual no jardim.
Verdade seja dita, que os rendimentos que ainda consegue fazer com os últimos “estertores” do seu coração são generosamente doados à casa onde vive. Todos os que lá vivem agradecem e o perdão decerto lhe vai ser concedido.
Deseja-se uma longa e feliz vida ao senhor do apito.