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terça-feira, 18 de setembro de 2012


SEGUNDA CARTA DE EUGÉNIO LISBOA AOS GOVERNANTES

Carta Aberta aos Governantes de Portugal, Incluindo 
uma Modestíssima Proposta, não Original, mas Muito Segura

Exmos. e Mui Amargurados Senhores,

A maior parte dos portugueses, dando mostras de uma muito punível insensibilidade para com V. Exas., não tem em devida conta as dificuldades e amarguras que implica a governação, em tempo de vacas magras

. É, simplesmente tremendo! V. Exas. sabem bem as medidas severas que haveria que tomar para se sanear, de uma vez por todas, a situação financeira do país. Mas, hélas!, V. Exas. têm coração, têm também família, V. Exas. pertencem, quer se queira, quer se não queira, à pobre família dos humanos. V. Exas., em suma, sofrem e, portanto, hesitam. Custa-lhes serem desapiedadamente duros. Sabem o que se deve fazer, mas a vossa mão recua. Há em Vós uma timidez que me avassala e comove! Eu, porém, aqui estou para vos sugerir, intrepidamente, medidas bem mais radicais do que aquelas de que V. Exas., timoratamente, recuam. É que é preciso cortar a direito, enquanto é tempo! O país está de tanga: há que ser cruel, direi mesmo sanguinolento, custe o que custar. Cortar ou não cortar, eis a questão!
Vou dizer-vos, com frieza de cirurgião, ao que venho. E como não quero ser acusado de plágio, digo-vos, honestamente, que a minha modestíssima proposta nada tem de original. Baseio-a, singelamente, na “Modesta Proposta, no sentido de impedir que os filhos de gente pobre, na Irlanda, se tornem um fardo para os seus pais ou para o seu país; e promover que se tornem benéficos para o público”. Esta “modesta proposta” foi apresentada, em 1729, por esse escritor de génio, que se chamou Jonathan Swift, e que foi também autor das imortais e nada inocentes Viagens de Gulliver. Havia fome na Irlanda, o povo sofria muito e os governantes, coitados e consabidamente, sofriam ainda mais. É que o governante, sempre empenhado no bem público, sofre mais, muito mais do que o povo que morre de fome. Coelho, Relvas e Gaspar sofrem hoje infinitamente mais do que sofremos eu ou tu, leitor desatento e ignaro. Por isso lhes sugiro que sejam duros, melhor, intimo-os a serem implacáveis. Cortem mais! Tiraram-nos tudo? Tirem ainda mais! Eu explico como. Swift começou por esclarecer: “Todos os partidos estão de acordo, creio, em que esta prodigiosa quantidade de crianças [na Irlanda, em 1729], nos braços, às costas, ou coladas aos calcanhares das mães e, muitas vezes, dos pais, é, no deplorável estado em que o Reino se encontra, um pesadíssimo agravo; e, por isso, quem descobrir um método honesto, barato e fácil de tornar essas crianças membros sãos e úteis da comunidade merecerá tanto do público que será digno de uma estátua, como salvador da Nação.” O método “honesto, barato e fácil” que Swift propõe, com toda a candura (que o nosso Ministro das Finanças apreciaria) é que as crianças, em vez de se tornarem um fado se transformem no necessário alimento de que tantos adultos famélicos necessitam ( o autor de Gulliver exemplifica, com precisão científica: “Uma criança fará dois pratos num jantar de amigos”). A Swift parece evidente ser esta, de entre muitas, a melhor proposta para a crise. Por isso, observa: “Pela minha parte, tendo, há muito, aplicado o meu pensamento a tão importante assunto, e amadurecidamente pesado as diferentes propostas de outros aventadores de alvitres, vi-os sempre pecar por grosseiros erros de cálculo.” E acrescenta, dando força à sua férrea argumentação: “É verdade que uma criança acabada de nascer pode sustentar-se do leite materno durante um ano solar, com escasso recurso a outros alimentos, que nunca custam mais de dois xelins, que a mãe pode, com certeza, granjear, ou o equivalente em migalhas no seu legítimo ofício de pedir; e é exactamente quando as crianças têm a idade de um ano, que eu proponho olhar-se por elas, de tal maneira que, em vez de serem encargo para os pais ou para a paróquia, ou ficarem à espera de alimentos e vestuário o resto da vida, possam, pelo contrário, contribuir para alimentar e, em parte, vestir milhares de pessoas.”
Não vou transcrever, para benefício de V., Exas. e do faminto povo português, todo o riquíssimo inventário de sugestões e argumentos, que a lógica férrea do autor de Gulliver propõe, em casos de crise como aquela que atravessamos. Só mais uma amostrazinha do formoso espírito argumentativo do irlandês: “Outra grande vantagem do projecto é que ele evitará abortos voluntários e o horrível costume que as mulheres têm de matar os filhos ilegítimos, coisa muito comum entre nós, sacrificando, suspeito eu, as pobres crianças inocentes mais para evitar as despesas do que a vergonha, o que arrancaria lágrimas de compaixão ao peito mais bárbaro e desumano.”
Aqui têm, pois, V. Exas., um texto clássico, que muita vantagem acharão em compulsar. No entanto, por vezes, o próprio Swift recua, cedendo à compaixão. Peço a V. Exas. o favor de não ceder a tais fraquezas.
A última transcrição que faço, por exemplo, deverá ser lida ao contrário: Swift fala no “horrível costume que as mulheres têm de matar os filhos ilegítimos”, como algo pior que o aborto. Não aceite isto, Gaspar, neste nosso tempo de abortos feitos em clínicas, com os custos que se sabe! Matar os filhos já nascidos evita, precisamente os horrorosos custos clínicos com a interrupção voluntária da gravidez. Promova, sem escrúpulos, com coragem e espírito de poupança, o assassinato da criança já formada e bem nascida e verá o seu amado défice a decrescer muito mais depressa.
O que acima fica é apenas um exemplo, uma sugestão de infinitas outras linhas de poupança e sábia administração de recursos, a seguir. A partir daqui, V. Exas. só terão que puxar pela vossa imaginação financeira e pelo vosso incomensurável gosto de cortar e de ir por aí fora, cortando, cortando... Quase não há limites para os cortes que ainda estão por fazer. Depressa, pois! O país não aguenta que lhe não cortem, com valentia e decisão, o que há ainda por cortar. Cortar é redimir. No corte se revela o forte!

Eugénio Lisboa
A dita e o balde

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