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Foi uma noite bem passada. Muito bem passada.
No entanto, começou mal logo ao deitar-me. Por qualquer motivo que não atinjo, não conseguia de deixar de pensar na proibição de fumar nos carros quando estes estão ocupados por crianças. Ao fim das tantas, já só conseguia cantarolar esta fantástica canção: “Uma da manhã. Ei! Duas da manhã. Ei!”. Só que, por qualquer motivo inexplicável, não conseguia acrescentar o “bem-bom” da canção, expressão esta que lhe dá, acima de qualquer tipo de dúvida, um sentido filosófico e inspirador.
Não fumo, não me lembro de ninguém que tenha sequer tentado fumar quando me acompanha, comigo ao volante, mas era esta a causa da insónia, por causa dessa desgraça civilizacional que consiste no facto de as crianças apanharem fumo dentro dos carros. Não um fumo qualquer claro, como por exemplo o dos outros veículos, mas sim o fumo do cigarro.
Abreviando, já não me lembro se cantarolei “Três da manhã. Ei!”. De qualquer forma, fosse qual fosse a cançoneta, tinha que me levantar às 7h. Nesse espaço de tempo dominado pelo sonho, lembro-me que, de forma descoordenada, ia tendo sucessivas utopias, imaginações sem fundamento, fantasias, desvaneios, alegrias, ilusões, esperanças, ideia quiméricas, todas elas envolvendo veículos automóveis.
Como é normal em mim, quando acordo não me lembro da maioria dos meus sonhos. Mas, por qualquer motivo que não sei explicar, alguns, nesta noite, vinham-me à memória e, para mais, singularmente,  todos eles tinham uma coerência lógica.
Vou tentar explicar o que ainda me está fresco na memória. De repente, os portugueses decidiram pegar nos seus carros, mais ao menos ao mesmo tempo. Deixou de se ver carros estacionados em segunda fila, carros parados em cima das passadeiras dos peões, os passeios ficaram desocupados do estacionamento selvagem, cidadãos deixaram de se encolher e de se contorcionar para fazerem esse simples exercício de saírem das suas casas, porque impedidos por um carro estacionado de forma ordinária e não civilizada à frente das suas portas, até qual milagre de fátima, o meu vizinho do lado que se desloca em cadeira de rodas, não tinha obstáculos constituídos por veículos de duas e quatro rodas a impedirem o seu caminho.
Esses carros começaram a ocupar pontes, autoestradas, vias rápidas. Juro que vi a ponte de Valência, a de Viana do Castelo,  a da Arrábida,  a de Santarém, a de Vila Franca, a 25 de Abril, a Vasco da Gama, a de Alcácer, a de Olivença, a de Vila Real de Santo António, intransitáveis porque os condutores tinham deixado os carros e ido embora.
 Vi as fronteiras fechadas pelos mesmos motivos. Vi as estradas nacionais e as SCUT ocupadas pelos camiões. As estradas das cidades atravessadas pelos transportes públicos imobilizados. Estradas secundárias e rurais ocupadas por tratores, lambretas e debulhadoras. Não observei conflitos. Ninguém nada mais fazia do que largar os seus carros e ir a pé para o seu destino. De repente, vi o meus país parado e quando perguntava algo a algum cidadão, o porquê desta atitude – de súbito, como que por artes mágicas, deixaram de ser contribuintes e voltaram a ser cidadãos – todos me diziam: «O cidadão anda a dormir? Então não vê que estamos fartos?».
Barcos e comboios também pararam. E eu, qual S. Tomé, perguntava: « Isto vai durar quanto tempo?» Entre inúmeras respostas, uma ficou gravada em mim: «Cidadão, isto vai durar até que alguém desista!».
«Alguém?» perguntei. A resposta foi simples: « Ou nós ou eles que mandam!».
Comecei a ficar um pouco baralhado. O meu povo tinha decidido lutar sem usar violência. Consistia apenas num jogo de paciência. Quem desistisse primeiro perdia.
De repente encontrei alguém que me disse: « O senhor não vê o que se passa? Quantos contribuintes não vão poder ser auxiliados? Quantos vão morrer por não chegar ao hospital a tempo? Os danos que isto não vai trazer à nossa economia? E a troika? Os estrangeiros? O que vão eles pensar de nós?». O homem não deixava de ter alguma razão naquilo que dizia, mas não gostei de ele ter usado a palavra “contribuintes”, pelo que fiquei a pensar se ele não me estava a tentar enrolar.
Por fim, lembro-me de estar na autoestrada que chega a Setúbal em alegre confraternização popular, comendo uma bela salada mista, acompanhada de choco frito e bebendo uma bejecas, quando o despertador tocou. Eram 7 da manhã e lá tive que me levantar, fazer a higiene matinal, tomar o  pequeno almoço e voltar ao trabalho.
Vale-me que ainda tenho uma casa, tenho trabalho, que gosto do meu trabalho e do local onde trabalho.
Praça do Bocage