Na minha cabeça de garoto dos anos 70 do século passado, um agente da PSP era um homem mal-humorado, barrigudo, vestido de cinzento, com uma incontinente tendência para a ameaça e uma abusiva vontade de nos tirar, a mim e aos meus amigos de rua, a bola com que jogávamos um futebol memorável.
Sempre que um polícia passava, fugíamos para casa ou parávamos, aflitos, a brincadeira: quietos, em quase continência amedrontada, esperávamos que a farda se fosse embora. Um polícia era um inimigo.
Depois, aconteceu o 25 de abril de 1974, houve a liberdade, houve a democracia e a polícia começou a transformar-se.
Houve o momento em que as fardas passaram a ser azuis; houve, em 1980, um concurso que integrou 312 mulheres na PSP e o inicio de uma evolução profunda na corporação (já havia mulheres-polícia antes, mas eram poucas e as sua funções muito limitadas); houve lutas pelo direito ao sindicalismo; houve uma mudança que humanizou a PSP: nas ruas os agentes e as agentes passaram a ser bem-educados, ajudavam quem os interpelava, eram sensatos, leais e corajosos. Um polícia era um amigo.
Mas, na verdade, os polícias foram sempre mal tratados: uma vida posta todos os dias em risco em troca de um salário ridiculamente baixo, eventualmente compensado por "serviços gratificados", uma espécie de corrupção institucionalizada, não é forma digna de o Estado tratar estes homens e estas mulheres.
Portugal não tem um problema sério com violência e isso deve-se, em grande parte, ao trabalho dos polícias. Mas a PSP não vive um mar de rosas e enfrentou e enfrenta ataques graves: no bairro da Cova da Moura, por exemplo, a história não regista apenas as acusações de racismo sobre os agentes da esquadra de Alfragide, regista também, em 2005, a morte do agente Irineu Dinis, durante um patrulhamento de rotina, recebido com dezenas de tiros.
Tenho medo de voltar a ter medo dos polícias e tenho medo de os estarmos a empurrar para uma situação de rotura com o espírito de uma polícia verdadeiramente democrática, que tanta dificuldade o nosso pais teve em construir.
O organismo que investiga eventuais abusos dos agentes da polícia é o IGAI. Em 2017, segundo o mais recente relatório, o IGAI recebeu 772 queixas contra alegados abusos policiais. Parece muito mas, na verdade, apenas seis acabaram por originar sanções disciplinares... A desproporção é evidente.
Das duas, uma: ou há um exagero de queixas sem razão (e isto significaria que a sociedade está a ser injusta com a polícia) ou o IGAI está a abafar casos que deveriam ter outra resposta disciplinar (e, neste caso, a sociedade estaria a ser tratada injustamente pela polícia).
A Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância, um organismo do Conselho da Europa, afirma que a PSP está "infiltrada" por gente que simpatiza com o discurso político de ódio, racismo e homofobia. As queixas das associações antirracistas são recorrentes. A proliferação generalizada de telemóveis que gravam vídeo trazem com alguma frequência, como agora aconteceu no bairro Jamaica, imagens de atos suspeitos de violência policial injustificada.
Mas a mesma polícia que é acusada destas maldades todas é também a que promove a "Escola Segura" e vai às salas de aula explicar às crianças, entre outras coisas, que o racismo é mau.
O meu ponto é este: Não podemos fechar os olhos aos casos de abuso policial, que devem ser punidos de forma séria e adequada. Mas, mais importante do que isso, temos de trabalhar para erradicar as sementes de ódio, de racismo e de homofobia da polícia e, ao mesmo tempo, não podemos empurrar a polícia para o isolamento, para a vitimização, para a injustiça, para o entrincheiramento corporativo contra o Estado e a sociedade.
Tão mau quanto o racismo étnico contra negros ou ciganos seria, agora, a sociedade ser atingida por uma espécie de racismo profissional contra polícias.
Para a nossa segurança, para evitarmos uma escalada de conflito assustadora, temos, também, de aprender a tratar com decência a polícia. Não podemos transformar o polícia num inimigo, como acontecia no tempo do fascismo.
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