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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Um polícia dispara mais depressa sobre um suspeito negro? - Segurança



www.sabado.pt


Sempre que um jovem negro é atingido pela polícia norte-americana, Rui Costa Lopes, 37 anos, volta a ler sobre o guineense Amadou Diallo nas notícias. A morte deste imigrante, em Nova Iorque, iniciou uma linha de pesquisa sobre como os preconceitos influenciam a tomada de decisões de profissões críticas, como os polícias (e os juízes ou os médicos), e que o investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) tem seguido também em Portugal.
Essa morte ocorreu nos anos 80? 
Em 1999. Polícias (que, acho, estavam à paisana) confundiram-no com um suspeito de violação e deram-lhe instruções para permanecer quieto. Não sei se porque não percebeu, se por nervosismo, foi buscar a carteira para se identificar. No momento que o fez, dispararam 40 tiros. Metade acertou-lhe.

E iniciou-se uma linha de estudo sobre o peso que a discriminação teve para a decisão dos agentes?
Exactamente. O Joshua Correll desenvolveu um jogo com cenários simulados: as pessoas tinham de decidir se disparavam ou não sobre brancos, negros, que, às vezes, seguravam uma arma, outras objetos neutros, como um telemóvel. O que ele observou é que disparam mais rápida e frequentemente contra alvos negros. É mesmo uma questão da cor, da etnia, do alvo.

Há um preconceito português?
[São] estereótipos muito semelhantes aos dos Estados Unidos (EUA). Mas nos EUA há coisas mais negativas, associadas à criminalidade, e mais positivas como [os negros] "são pessoas muito musicais, com aptidão desportiva superior". Essa parte é menos forte em Portugal.

"São úteis, apesar da cor da pele, podem ser estrelas da NBA." 
Exactamente. E as pessoas justificam-se erradamente quando pensam que não estão a ser preconceituosas e dizem "eu digo tanta coisa positiva sobre essas pessoas."

Perguntava-lhe sobre qual é o preconceito típico do português? 
Há a ideia ainda muito marcada por um ideal luso-tropicalista de que nós fizemos um tipo de colonização que, supostamente, foi mais amigável, mais de miscigenação. Isto foi um mito muito avançado no Estado Novo e que ainda permanece. Temos estudos que mostram que isto é um mito, que tem sido utilizado para esta ideia de que nós somos um povo que sabe bem receber e dar-se com outros povos e, portanto, somos menos preconceituosos.

Estudou se houve fases em que a discriminação esteve mais latente, como com os retornados? 
Eu diria – mas não fiz essa pesquisa histórica – que faz sentido que tenha causado preocupação naquele que a psicologia social mostra ser um grande preditor de atitudes negativas face a outros grupos: estamos todos a combater pelos mesmos recursos [como o emprego].

Isso também aconteceu com os brancos que vinham das colónias. 
Como se fossem menos brancos.

É muito mais do que a cor da pele, tem que ver com origem social...
... local de nascimento, estrutura social. A conversa tem estado centrada na questão do preconceito racial, mas há aquele projeto de que sou responsável, a linha de estudos sobre decisões especialmente críticas, face a grupos de baixo estatuto (de que negros e ciganos fazem parte).

Como estão a estudar esse processo de tomada de decisão?
No último ano, fizemos estudos com universitários em que lhes pedimos que se ponham em posições como se fossem as pessoas que tomam estas decisões. 

[Mais recentemente], fizemos o primeiro estudo com estudantes de medicina.
Colocam-lhes situações em que a condição de saúde é semelhante, o que diferencia os pacientes são as condições socioeconómicas?
Estamos a comparar imigrantes negros com portugueses brancos. Não mostramos só dois pacientes para não perceberem o que está por trás do estudo. 

Um médico ajudou-nos a estabelecer as informações médicas sobre a atribuição de um tratamento que tem custos muito elevados, a hepatite C. Quem o toma tem 99% de probabilidades de ficar curado. Custa 7 mil euros. Damos informação médica muito técnica sobre isto, que é equivalente para as duas pessoas, que estão no meio de outras [três a seis, no total] para não perceberem esta igualdade. Ainda não sei os resultados, mas o que esperávamos é que darão mais prioridade aos portugueses brancos do que a outros.
O que justifica essa prioridade?
Temos ideia sobre ser uma questão de preconceito, uma antipatia em relação a certos grupos sociais. Pode-se traduzir em perceções de que certas vidas têm menos valor. E as pessoas podem utilizar estas avaliações de valor como base para as decisões. Também há a hipótese de serem estereótipos. Perguntámos aos estudantes de medicina quais eram os estereótipos sobre os negros que os portugueses podem ter. 

Assim visto por alto, ainda não está bem analisado, há um grande estereótipo de que têm menor adesão terapêutica e, portanto, estão a dar -lhes um tratamento que se não cumprirem não vai resultar. E não vão gastar recursos com este grupo.
Aos universitários apresentavam casos criminais?
A informação era só cor da pele. Dizíamos que, por questões de confidencialidade, as fotografias estavam desfocadas, mas dava para perceber se é branco, se é negro. Pedíamos que imaginassem que tinham de decidir sobre a atribuição da sentença. São dois casos em tudo semelhantes (as mesmas atenuantes, o historial, o crime) à exceção da fotografia. E o que se mostra é que atribuíam pena mais pesada ao arguido negro do que ao branco.

Quando foi exposto o caso dos polícias da Cova da Moura, discutiu -se se haveria um sentimento de grupo. Isto ocorre? 
Os nossos pares, os grupos em que estamos envolvidos são uma enorme fonte dos nossos estereótipos. Por isso é que conseguimos ter estereótipos sobre grupos com os quais nunca lidámos. Isso acontece de forma mais evidenciada quanto mais coesos forem esses grupos. Eu não quero pronunciar-me sobre um caso em concreto. Já me questionaram sobre se os polícias portugueses são racistas. Seria até muito irónico que um investigador que trabalha sobre preconceitos, estereótipos, generalizações abusivas, desse uma resposta geral sobre este grupo. Contando a minha história pessoal, posso dizer que, há pouco tempo, fui ao Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna falar sobre o papel das nossas atitudes e estereótipos na atuação policial e percebi que há abertura para discutir estas coisas. Vamos fazer uma versão de estudos que foram feitos nos EUA. Um fotógrafo profissional esteve cá no ICS a tirar fotografias a negros e brancos a segurarem armas falsas que eu arranjei para prepararmos os materiais desse estudo.

O objetivo é chegarem aos médicos, polícias e outros profissionais que tomam as decisões?
Também aos juízes. Acho que vai ser tão difícil como os médicos. O nosso próximo passo é pegar naquelas pessoas que estão a estudar para ser juízes. Já temos contacto preliminar com o CEJ.

Porque é que o foco está nos médicos, juízes e polícias? 
São exemplos de decisões socialmente críticas, que tomamos sobre outras pessoas e que pode até levar à morte dessa pessoa. Pegámos nos casos que têm consequências mais graves: um médico que decide que uma pessoa não merece aquele tratamento ou não tem prioridade no transplante; um polícia que tem de decidir se dispara contra um suspeito; um juiz que decide sobre uma vida atrás das grades. Queremos estudar a população dos professores e a recomendação que fazem aos alunos de irem para o ensino profissional ou para o que lhes permite mais facilmente o acesso à universidade. Temos dados que mostram que afro-descendentes têm o dobro da probabilidade de serem reencaminhados para o ensino profissional.

São dados recolhidos aqui no ICS?
Não. De pessoal do ISCTE, relatórios da socióloga Cristina Roldão. Os dados mostram que, destes afro-descendentes, perto de 80% são reencaminhados para o ensino profissional. A decisão é dos próprios ou dos pais, mas queremos estudar as recomendações dos professores que têm um impacto brutal nas decisões.

Este seu trabalho não está relacionado com os discursos extremistas, até de líderes como Donald Trump ou Viktor Órban. Mas há uma escalada no discurso de preconceito. Será que a perceção de que as minorias são uma ameaça se deve aos discursos de ódio que vêm do topo, ou são aproveitados pelo topo?
Eu diria que há as duas coisas e que os líderes populistas tentam pegar nestes problemas a que as pessoas parecem estar muito sensíveis e dão respostas simplistas para problemas que são complexos. Para mim, é o que define um líder populista. Enquanto psicólogo social o que me interessa é o outro sentido: o líder tem impacto nas perceções destes grupos. 

Não tenho dúvidas de que acontece. Assistimos a uma mudança normativa brutal quando temos líderes com este discurso preconceituoso. Isso está a legitimar o nosso discurso preconceituoso.
Quando o MNE, Augusto Santos Silva, disse que os portugueses têm sido imunes em relação à discriminação aos migrantes e refugiados, estava a ser realista?
Lembro-me de ver esse título, mas não li a notícia. Portanto, não sei se ele não fez o discurso da desculpa luso-tropicalista. Eu diria que há outras questões. Temos agora exemplos de pessoas que estão a tentar cavalgar e a copiar de forma flagrante o Trump para chegar lá; mas ainda não temos isso. Há também a justificação de uma maior distância à realidade. O Governo português teve uma iniciativa de se mostrar disponível para acolher 1.500 refugiados, na Alemanha receberam 1 milhão. 

E desses ainda só chegaram 600, vários entretanto já se foram embora. Simplesmente, não é uma questão.
Não somos "um país de brandos costumes"? 
Os dados de inquéritos em Portugal mostram que não é verdade que temos níveis de preconceito reduzidos. 

São bastante elevados. Essa ideia de imunidade… os inquéritos até mostram que não estamos imunes, mas se calhar não temos discursos mais abertos, mais racistas por estarmos ainda muito distantes. 




Entrevista originalmente publicada na edição de 13 de Dezembro de 2018 da SÁBADO

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