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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Gastronomia através da História: o caso italiano (1)

outraspalavras.net

Por Esther Rapoport | Imagem: Saverio Della GattaOs comedores de spaghetti
Primeira Parte – O convite


Alguém que entra em um restaurante e pede uma entrada, um prato principal, um vinho e uma sobremesa, além de se alimentar, de desfrutar de um dos sentidos humanos, de exercitar um dos maiores prazeres da nossa natureza, repete, reforça e reformula um movimento histórico e cultural que é bem mais antigo do que podemos imaginar e que pode ter origens muito diferentes daquelas imaginadas.
A comida reflete, de maneira completa, a cultura de um povo. Isso porque, em primeiro lugar, o que se come é determinado pela geografia do lugar, seu solo, seu clima, sua fauna e flora. Depois, na hora da transformação, do forno e do fogão, segue receitas do povo deste local, suas tradições, crenças e histórias.

E você me questionaria: come melhor quem conhece história e geografia?

Sim, sem dúvida! Conhecer onde, quando, com quem e por que um determinado prato surge no cardápio da humanidade pode nos abrir um mapa da sabores que se misturam com outros indícios culturais e com a história. Existe forma mais interessante de se visitar a História do que sentados à mesa, com garfo e faca na mão?

Então vem comigo nesse rápido giro gastronômico. Já aviso que estão proibidas as paradas emmaquidônaldisestarbóquispizzarrâti e demais multinacionais que oferecem produtos ultra processados como se fossem comida. Vamos falar de alimentos de verdade, e para agradar todo mundo, vamos embarcar para o país que eu defino como a grande cozinha do mundo: a Itália.

Quando estou girando o mundo e me sinto cansada de provar coisas novas e nem sempre do meu agrado, e para dar uma descansada ao paladar, procuro um lugar que tenha “comida caseira”. Inevitavelmente acabo em um restaurante italiano. Mas isso não acontece apenas comigo. Geralmente em um grupo, no momento em que fica difícil achar uma sugestão que agrade a todos, o apelo “Pasta e Pizza” acalma e convence a grande maioria.

Já de partida, nessa viagem, lanço minha primeira questão: porque a Itália tem essa força gastronômica? Porque todo mundo, eu disse todo mundo, gosta de comer aquilo que chamamos de comida italiana?

A resposta, é claro, está na história. Vamos retroceder um pouco na linha do tempo da Península Itálica, uns 1500 anos, e observar como o Império Romano (do Ocidente) foi se esfarelando e seu território foi sendo ocupado, invadido, penetrado, pelos chamados “bárbaros”.

Adoro o episódio do gaulês Asterix e os Godos em que dois guardas romanos vigiam a fronteira do Império quando se escuta (com letras góticas) alguém atrás dos arbustos que diz: “quando eu disser três”, os guardas escutam, desconfiados, mas o maior diz que nenhum bárbaro teria a ousadia de colocar seus pés imundos em território romano. Não consegue terminar a frase e um grupo de godos, ou seriam visigodos, ou ostrogodos, atacam e rendem os romanos. Ótimo imaginar que foi assim!

É verdade que ao longo dos anos, desde o século V, bárbaros invadiram, saquearam, ocuparam ou simplesmente chegaram e se instalaram no território que fora romano, dividindo a península em inúmeros Estados autônomos, independentes e frequentemente concorrentes. Por exemplo: a República de Venezia, Ducado de Savoia, Ducado de Espoleto, República de Genova, Principado de Salerno, Reino da Lombardia, Reino de Sicília, Marquesado de Toscana, Estado Papal e tantos outros.

Cada um desses Estados, que ao longo do período Medieval e do Renascimento foram sendo aglutinados ou separados, desenvolveu uma cultura própria e diferente daquela do seu vizinho. A começar pela língua, cujos humores vibram ainda em notas e tons diferentes, de acordo com cada um dos dialetos que sobrevivem nas atuais regiões italianas (divisão política que equivalente aos nossos Estados). Depois podemos observar, na arquitetura,  que cada um desses reinos, ducados, principados e repúblicas construiu seus palácios, suas catedrais e suas muralhas, seguindo a planta elaborada por mentes geniais. Se um príncipe chamava Botticelli para pintar e valorizar um ambiente de seu palácio, o vizinho mandava chamar Ticiano, ou Tintoretto, o outro contratava Rafael e o mais rico já ia para as cabeças, chamava logo Michelangelo ou da Vinci. Nessa concorrência, a península foi sendo formada, lapidada, decorada com as maiores obras de arte do continente europeu.

Até hoje a Itália é um grande colar de pérolas. Basta pegar uma estrada e percorrer 10 quilômetros. Você não conseguirá chegar ao final do percurso no mesmo dia, porque a cada quilômetro rodado surgirá uma vila, um burgo, uma igreja e uma cidadezinha que revelará uma joia inesperada e maravilhosa para ser visitada, um pequeno troféu para o viajante mais curioso.

Por isso a Itália abriga o maior número de sítios tombados pela Unesco como Patrimônio da Humanidade e talvez seja essa a explicação ao fato de o país estar sempre entre os primeiros colocados na lista de destinos mais desejados dos viajantes no mundo inteiro. É um destino que nunca sai de moda e nunca se esgota. Na Itália é fácil escapar das cidades super turísticas e mergulhar por caminhos quase inexplorados com a certeza de encontrar algum segredo maravilhosamente bem guardado.

E a comida?… Ahhh, a briga não é diferente quando a gente vai para a cozinha. Cada região, cada cidade, cada família inventou sua receita, escolheu seus ingredientes e certificou o nascimento de seus manjares dos deuses. E este fazer gastronômico é um patrimônio imaterial do país, valorizado e preservado ao longo das gerações. Hoje se prepara uma pasta, uma carne, uma torta como se fazia desde os inicio dos tempos (o exagero é proposital, para ser coerente com o estilo pungente e teatral do italiano médio). Não ouse modificá-lo, atualizá-lo. Sabe aquele papo de “releitura”? Nada disso é admitido em solo itálico. Se a avó fazia assim, este é o jeito certo de se fazer. Ponto final.

Esta forma de manter as tradições nas receitas e nos seus ingredientes tornou o cardápio italiano um documento de alta confiança. Um pesto genovese ou uma pasta alla 

Norma siciliana, têm suas receitas originais compulsoriamente preservadas e garantidas; já o purgatório está cheio de almas brasileiras que resolveram tropicalizar o tal do molho. Isso é um pecado! Hai capito?
Uma vez, em um pequeno restaurante torinese, sugeri à dona, que me servia uma fruta, que colocasse raspas da casca de limão sobre a fatia de abacaxi e ela, muito zangada perguntou: “e quem não gosta de limão, faz o que?”. Fui quase linchada e expulsa do local…

Mas vamos olhar a geografia da península italiana para entender como o espaço opera gerando tamanha diversidade alimentar.

Podemos resumir o mapa da seguinte maneira: ao norte temos uma planície (Planície Padana) cercada de montanhas (os Alpes) e no centro-sul, montanhas (cadeia dos Apeninos) cercada por planícies. Cada região apresenta determinado relevo com montanhas e/ou colinas e/ou planícies, e solos com características diversas. A fusão dessas condições geológicas e meteorológicas gera microclimas específicos e responsáveis pela multiplicidade de sabores, cores e consistências daquilo que se produz. Depois é só acrescentar povos com histórias e tradições gastronômicas diferentes, e teremos um verdadeiro mosaico de pratos e receitas.

As regiões, que competiam desde o século V ou VI, entraram empurradas no projeto dos Savóia de unificação nacional, em 1861, e seguem até hoje pisando nos calos umas das outras. Os italianos são muito regionalistas, territoriais, enxergam o vizinho como adversário, inclusive na hora de cozinhar. E como cada um tem sua receita, baseada na tradição centenária de cada família, nos vocabulários e nas histórias regionais, a ideia de uma Itália é ainda frágil. Ou seja, quando a gente percorre o país, nos damos conta de que, sob o aspecto gastronômico, não existe um “restaurante italiano” porque não existe uma “comida italiana”. 

O que existe é a cozinha lombarda ou piemontesa, ou napolitana, ou siciliana ou toscana ou ainda veneziana, cada uma deixando muito claro seu orgulho como portadora de um patrimônio cultural local.

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