O filho adoptivo do proletariado
As origens próximas da família Cunhal registam alguns antepassados ilustres, incluindo ramificações a grandes latifundiários e clérigos. As ligações directas a Seia concentram-se no exercício directo de profissões liberais, cargos políticos e gestão de algumas terras. Álvaro Cunhal assumiu estas origens privilegiadas, mas conseguiu encontrar uma "certidão de nascimento político" nas raízes rurais. "Sendo de origem burguesa, em toda a minha vida tive ligação muito profunda com operários, com camponeses, com pessoas exploradas e desprotegidas. Muito mais que com a burguesia". ".Era de facto de uma camada burguesa, mas ele próprio se assumia como um filho adoptivo do proletariado", recorda a irmã, Eugénia Cunhal.
A casa clandestina do Luso
Álvaro Cunhal foi preso pela terceira vez no dia 25 de Março de 1949. Vivia com Militão Ribeiro (“António”) e Sofia Ferreira (“Elvira”) numa casa alugada pelo PCP no Casal de Santo António, Luso. “Duarte” era um estudante universitário que tinha sido aconselhado pelo médico a retirar-se temporariamente para um meio sossegado por razões de saúde.
Sofia Ferreira (1922/2010)
“Dissemos que o Álvaro estava a tirar um curso, mas, por razões de saúde, o médico tinha-o aconselhado a retirar-se para um meio sossegado. Fazíamos uma aparência de vida de casal”, recorda Sofia Ferreira. Tinha 27 anos e Álvaro Cunhal 36. “Fazíamos a vida normal de um casal. Eu tratava das compras para a casa e ele passava a maior parte do tempo a trabalhar e a estudar, mas o Álvaro também saía para tomar umas imperais. O Álvaro era um homem que despertava paixões. Era muito bonito”.
As credenciais revolucionárias
As comemorações do 1.º de Maio de 1974 constituíram um momento histórico para o PCP e em particular para Álvaro Cunhal. O primeiro feriado nacional do Dia Mundial do Trabalhador representou uma vitória e a enorme mobilização das massas populares permitiu fazer a passagem narrativa do pronunciamento militar para o levantamento popular.
A revolução parecia avançar imparável e concretizar os sonhos da geração de comunistas que entregaram a sua vida à luta na ilegalidade. Pinheiro de Azevedo dirá mais tarde que este dia marcou em concreto o verdadeiro início da revolução “por omissão trágica” de Spínola. O presidente da República tinha sido “mal aconselhado” e recusara presidir à manifestação. “Foi a sua ausência que permitiu ao Partido Comunista começar a controlar as operações no âmbito do MFA”, acusou o antigo primeiro- ministro.
A convicção de Cunhal sobre o significado do momento ficou demonstrada com mais uma reprodução cénica. Depois da subida ao chaimite na chegada a Lisboa, apareceu na tribuna ao lado de um marinheiro e na presença do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Costa Gomes aceitara o desafio que Spínola rejeitou. O líder dos comunistas conseguiu projectar uma imagem de síntese entre o poder revolucionário vitorioso e as massas populares como partido da vanguarda. A manifestação tornou-se também numa homenagemao PCP e às décadas de luta clandestina contra a Ditadura e uma mensagem inabalável de esperança para os quadros em formação. Os milhares de pessoas que saíram às ruas no 1.º de Maio, tal como tinham feito logo após as primeiras horas do golpe de 25 de Abril, credenciavam o pronunciamento militar em levantamento popular.
A revolução inacabada
O 25 de Novembro marcou uma nova etapa para Álvaro Cunhal. O PCP manteve‑se na legalidade e actuante dentro do regime político, mas o pronunciamento militar aventureiro gerou um forte ambiente de desconfiança e terminou com o processo revolucionário. O 25 de Abril transformou‑se na “revolução inacabada”. O comité central do PCP reuniu‑se pela primeira no início da Dezembro e apresentou a versão comunista dos acontecimentos. “O chamado 25 de Novembro não foi um golpe militar para a conquista do poder e muito menos uma insurreição. Foi uma convergência de sublevações na sequência de uma vaga de saneamentos à esquerda, em torno de um processo de disputa de lugares de chefia entre vários sectores do MFA e das Forças Armadas”.
O 25 de Novembro
Na manhã do dia 25 de Novembro, as tropas pára‑quedistas da Base Escola de Tancos receberam ordens para ocupar o Comando da Região Aérea instalado no Monsanto e as bases aéreas do Montijo, Ota, Monte Real e Tancos. Os militares do Ralis avançaram sobre o aeroporto de Lisboa, cortaram os acessos à capital através da auto‑estrada e as tropas da Escola Prática de Administração Militar ocuparam a RTP.
O golpe antecipado pelo Grupo dos Nove eclodia por fim em plena luz do dia. Chegara o momento da clarificação forçada pelo agravamento da instabilidade. Ou o processo revolucionário dava finalmente um salto e se transformava numa revolução irreversível ou era travado e abria caminho ao desmantelamento de todas as conquistas.
O 25 de Novembro acabou por representar uma grande derrota da Esquerda militar, a sua desarticulação e desagregação e o desaparecimento do MFA como movimento militar revolucionário organizado. “Mas não representou a derrota definitiva da Revolução, como alguns se apressaram a concluir”, garantiu Álvaro Cunhal.
A vida em Moscovo
“O Álvaro trabalhava muito e ajudava nas tarefas de casa para se libertar dessa intensa actividade intelectual”, recorda a companheira de então, Isaura Moreira. A sala de jantar do apartamento moscovita onde viveram na década de 60 foi transformada em escritório de trabalho. Sobravam dois quartos, uma sala de estar, duas casa de banho, uma delas transformada num pequeno estúdio de revelação de fotografias, e a cozinha onde Cunhal dedicava esporadicamente algum do seu tempo.
O bairro onde Álvaro Cunhal viveu com a companheira e a filha
“Ele cozinhava bem e chegou a ensinar-me a fazer algumas coisas”, detalha Isaura Moreira. Doces e algumas sopas, por exemplo. Cunhal tomava também a iniciativa de ajudar a companheira na gestão doméstica da casa e fazia compras na loja de lacticínios perto de casa. Comprava leite para a companheira e para a filha Ana e kefir para si. Uma espécie de iogurte típico do Cáucaso, mas com um processo de fermentação diferente e de maior facilidade digestiva por ser processado por um elevado número de microrganismos.
Isaura Moreira e Ana Cunhal
As férias em S. Pedro de Muel
As férias de Verão de 1934 em S. Pedro de Muel foram as últimas em família. “Os nossos pais levavam‑nos a passar as férias na praia e lembro‑me de ser muito pequena e estar a brincar com o meu irmão", recorda Eugénia Cunhal. No Verão do ano seguinte, Álvaro Cunhal assume em definitivo a vida na clandestinidade. Parte para uma primeira missão em Moscovo e no regresso fica em Espanha para se envolver no início da Guerra Civil.
“As pessoas começaram a ter um comportamento desagradável connosco e os meus pais decidiram deixar de ir lá”, continua a irmã. Cunhal apreciava bastante as férias em S. Pedro de Muel. A pequena localidade concilia a força do mar e a imagem austera das rochas imponentes junto à costa com um intenso forte cheiro emanado pelos pinhais da região. Avelino e Mercedes foram confrontados com a decisão irreversível de Cunhal mergulhar na clandestinidade e visitar a União Soviética ilegalmente. “Falaram‑me dessa ausência em S. Pedro Muel. Pediram segredo e disseram‑me para não me preocupar, mas eu percebia que eles próprios estavam bastante preocupado com a situação do Álvaro», recorda Eugénia. Avelino e Mercedes tentaram explicar de forma simples a opção do irmão. “Diziam que o Álvaro acreditava num mundo melhor e que estava a tentar fazer qualquer coisa pelos outros”.
O irmão de Álvaro Cunhal
A família Cunhal mudou-se para Lisboa em 1924. As mortes de António José com 24 anos e de Maria Mansueta com apenas 7 anos deixaram marcas profundas. Álvaro Cunhal tinha 5 anos quando a irmã morreu. “Durante alguns anos praticamente inutilizou a vida da minha mãe pela dor de tal perda. Também, neste mesmo período, a vida foi muito complicada, muito difícil”. António José, três anos mais velho que Cunhal, morreu com tuberculose e gangrena pulmonar em 1933.
Lisboa
Teve uma vida intensa ligada ao cinema experimental. Realizou um filme de elevada dificuldade técnica. A Lenda de Miragaia representa o auge da sua curta vida artística. Trata-se de uma animação que recorre às silhuetas animadas, sendo o único filme português conhecido a utilizar a técnica neste período. António Cunhal e Raul Faria utilizaram os métodos pioneiros da primeira longa-metragem de animação do cinema europeu, As Aventuras do Príncipe Achmed, de Lotte Reinigir. Numa entrevista concedida em Março de 1930 à publicação Cinéfilo, confessaram o entusiasmo pela nova técnica. “Nada há escrito sobre o assunto. Nada há que nos sirva de guia”. Conheciam a obra de Lotte Reinigir e sabiam que o seu trabalho tinha contado com a ajuda de inúmeros desenhadores e de auxiliares para recortar as figuras. “Nós acumulamos todas essas funções. Somos os dirigentes e os operários, simultaneamente”. António Cunhal assumia-se como um artista modernista e encontrou na absoluta originalidade da técnica das silhuetas uma motivação acrescida. A Lenda de Miragaia tornou-se numa obra de referência.
Sequência d' A Lenda de Miragaia
A iniciação
Álvaro Cunhal terminou o curso liceal com média de 13 valores e em 1931 entrou para a Universidade de Lisboa. Tinha acabado de completar 18 anos e cruza-se finalmente com o comunismo. A adesão ao PCP foi como uma ordenação. “A minha opção já estava feita e quando entrei na Faculdade [de Direito] procurei os comunistas para me filiar no Partido”. O contacto surgira gradualmente através dos livros e dos jornais. “As leituras começaram a trazer-me notícia da Revolução Russa, da luta dos comunistas e do marxismo, comecei a ter uns livros à mão a esse respeito, um pai muito respeitador, homem de espírito aberto e democrático, e portanto foi fácil”.
É esta capacidade da subversão intelectual e de sobressalto cívico de Avelino Cunhal que abre as portas do comunismo ao filho. Salazar já iniciara a sua carreira despótica no Ministério das Finanças
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A moral do revolucionário na prisão
A prisão de um comunista representava uma oportunidade para mostrar a sua têmpera revolucionária. As três detenções de Álvaro Cunhal durante a sua longa vida de clandestinidade permitiram-lhe identificar um conjunto de regras consideradas essenciais para que os revolucionários pudessem ultrapassar os interrogatórios, as torturas e as detenções arbitrárias e intemporais. Se Fores Preso, Camarada” começa desde logo com uma dura advertência. “Se fores preso, camarada, cairá sobre ti uma grande responsabilidade. Terás de continuar defendendo o teu partido, os teus camaradas, o teu ideal, mas em condições muito diferentes, pois que te encontrarás isolado nas mãos do inimigo, sujeito aos seus insultos e às suas violências. Se fores preso, camarada, encontrar-te-ás em circunstâncias tão duras como nunca talvez tenhas atravessado”. Cunhal exige aos militantes que resistam e dêem provas perante o partido e perante os outros de que são “verdadeiros comunistas”. Comunistas capazes de se manterem “firmes” e “fiéis” aos ideais que defendem mesmo nas mais difíceis condições. Apela à resistência e reafirma a superioridade da lua comunista.
A leitura do folheto tornava a prisão uma coisa real e iminente. Passava a constituir mais um elemento do quotidiano. O que implicava viver uma angústia silenciosa esperando ouvir a porta ser derrubada a meio da madrugada pela polícia, dando início a um processo de sujeição física e psicológica. Joaquim Gomes, preso por três vezes, confessa o receio permanente em que os quadros viviam. “De facto, tinha medo. Muitas vezes me interrogava se teria forças para resistir aos brutais espancamentos e torturas da PIDE”.
Carlos Gomes e Joaquim Gomes estiveram presos no Forte de Peniche e foram ambos previamente torturados
As torturas na prisão do Aljube resultavam frequentemente em episódios de alucinações provocadas pela privação do sono e os agentes aproveitavam a fragilidade dos presos fingindo escrever num papel que depois guardavam no bolso para chamar a atenção do detido.
A prisão do Aljube, em Lisboa
Uma alegada confissão muito importante que acabara de ser feita sem que a vítima disso tivesse noção de que o fizera. A aparente menoridade das perguntas e das situações levava o prisioneiro para uma armadilha psicológica: trair o partido dando uma resposta que parecia inócua ou confirmando um qualquer dado já do conhecimento da polícia. A cena do “PIDE bom” e do “PIDE mau” degenerava invariavelmente em ataques de fúria de todos os agentes no caso de irredutibilidade dos presos.
O partido espera que os seus revolucionários aguentem estoicamente todas as privações e sevícias, conscientes de que estão a fazê-lo em nome de um bem maior. O sacrifício com a própria vida representa o limite do ideal revolucionário e Álvaro Cunhal irá dizê-lo depois do 25 de Abril numa homenagem a Catarina Eufémia. “Morreu como deve morrer um membro do Partido. Morreu à frente das massas, encabeçando a luta de classe, defendendo os interesses vitais dos trabalhadores”.
alvarocunhalbiografia.blogspot.pt
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