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quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A guerra que não acabou com todas as guerras…

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 Manuel Loff     
Cem anos depois, o mundo pauta-se muito mais pelos critérios imperialistas de 1914 que pelas lições de 1945



Charles Sorley morreu aos 20 anos nas trincheiras, em 1915. A Grande Guerra começara havia meses e já ele pedia: “Quando, em sonhos, vires milhões de mortos sem boca / Que em pálidos batalhões partem, / Não digas as mesmas coisas bonitas que outros homens disseram
já (…) Não precisas de o fazer. / Não os louves. (…) Nem derrames lágrimas. Os seus olhos cegos não verão as tuas lágrimas cair. / Nem fales de honra. É fácil estar morto. / Diz apenas, ‘Estão mortos’” (When you see millions of the mouthless dead). 


A guerra abrira um imenso buraco moral, humano e político que engoliria 9,5 milhões de mortos, e de onde sairiam 23 milhões de mutilados; por causa dela, uma pandemia (a gripe espanhola) matou 50 a 100 milhões de pessoas. Máquina infernal de massacre de combatentes, em que o matadouro das trincheiras não teve paralelo sequer com a II Guerra Mundial, a Grande Guerra foi o primeiro “conflito no qual o ato de matar se transforma numa operação mecânica e onde a morte toma o caráter de uma experiência coletiva, anónima, inqualificável” (Enzo Traverso, 1914-1945. 

A guerra civil europeia, 2007). É esta sua natureza que a aproxima da experiência de Auschwitz: a eliminação industrial de uma massa de seres anónimos, arrastados quase sem resistência para a morte, uns obedecendo à ordem cega de avançar para o fogo das metralhadoras ou os gases químicos, outros para dentro de uma câmara de gás. Neste sentido, é completamente coerente que a homenagem aos combatentes Grande Guerra tenha concebido a figura do Soldado Desconhecido.

E, no entanto, puro produto da era triunfal do nacionalismo, do imperialismo e do capitalismo confundido com civilização,para a guerre fraîche et joyeuse, como lhe chamaram os franceses, marcharam com aparente alegria milhões de soldados acabados de mobilizar. Uma febre patrioteira tomara conta da Europa e esmagara em poucos dias uma geração de socialistas que se comprometera a fazer Guerra à Guerra — mas que, na sua maioria, acabaria simplesmente por fazer a guerra. 


O verão de 1914 fica para a História como uma das melhores demonstrações da enorme capacidade socializadora do nacionalismo de Estado, descrito como consenso interclassista e como tradição, reproduzido pelos novos instrumentos de enquadramento social da modernidade: a escola, as Forças Armadas, os media. Quem partiu fê-lo em nome de uma nação que lhe tinha sido imposta como se tivesse existido desde sempre, e como se a ela devesse a vida — e esta tivesse o direito de lha reclamar de volta. 

E, contudo, como escrevia o soldado Wilfred Owen, morto aos 25 anos uma semana antes do fim da guerra:  

“Se tu pudesses ouvir, a cada golfada / o sangue que jorra dos pulmões [destruídos pelo gás], / obsceno como o cancro, amargo como quimo (…) — não repetirias, meu amigo, com tanto entusiasmo / a crianças ansiosas por uma glória desesperada, / a velha Mentira: Dulce et decorum est / Pro patria mori [Como é doce e glorioso morrer pela pátria]” (Dulce et Decorum Est, 1918). 

Na batalha do Somme (julho-novembro de 1916) — a mais mortífera de quantas os britânicos participaram em toda a sua história: 19 mil mortos só no primeiro dia!—, os soldados cantavam já que “We’re here, because we’re here, because we’re here…” 

(“Estamos cá, porque estamos cá, porque estamos cá”). Depois dos 320 mil mortos em Verdun, os soldados franceses atiravam-se aos “patriotas” que gritavam que “pela Pátria é preciso ir até ao fim”: “Mas nós gritamos abaixo a guerra / Aprendam-no, é o lema mais belo / Não mais canhões, nem espingardas, nem fronteiras / Abaixo a guerra e os seus carrascos!” (On les aura!, 1917).


Se o Somme e e Verdun são símbolos da infinita futilidade da guerra, juntemos-lhes La Lys ou A guerra que Portugal quis esquecer (Manuel Carvalho, 2015), feita em África por “comandantes cuja indiferença à sorte dos soldados era permanente, ministros que dos gabinetes de Lisboa davam ordens concretas sobre planos de ataque a decorrer em frentes imaginárias (…), [a] corrupção de todos os que geriam depósitos”, ou, na memória da violência colonial, as “razias dos bens das populações [africanas], [a] violência sobre as mulheres ou [a] condenação de milhares de homens à condição escrava de carregadores”.


Guerra de nacionalismos e de projetos imperialistas contrapostos, fechada com uma paz que guardava no ovo a serpente das novas guerras, temos muito a aprender com 1918. Cem anos depois, o mundo pauta-se muito mais pelos critérios imperialistas de 1914 do que pelas lições de 1945.


Fonte: https://www.publico.pt/2018/11/17/mundo/opiniao/guerra-nao-acabou-guerras-1851430

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