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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O que faz um petroleiro parado no meio do Tejo há mais de um ano?

www.dn.pt



"Esperar por coisa nenhuma é capaz de dar cabo de um homem", diz Paul Knudsen, que não está a falar só de um homem, mas de 16. Ele conhece-os bem, é o líder da Knudsen Suppliers, a única equipa que os visita - uma vez a cada dois meses, para levar abastecimentos. 

E eles são a tripulação do Rio Arauca, um petroleiro arrestado no Tejo há um ano e quatro meses.

É um navio invisível à vista de toda a gente. Os cinco mil passageiros que diariamente viajam de ferry entre o Terreiro do Paço e o Montijo passam-lhe rente. As selfies que os turistas tiram nas Portas do Sol, um dos mais emblemáticos miradouros da cidade, têm vista direta para ele. 



Rio Arauca está ancorado ao largo do Terreiro do Trigo, em águas não muito distantes da margem. Num triângulo em que uma ponta fosse a varanda do Lux e a outra o Cais das Colunas, a embarcação estaria no vértice.


Deu entrada no Porto de Lisboa às 09.43 do dia 24 de julho de 2017. Trazia os tanques de petróleo vazios, iria em teoria permanecer uns dias em doca seca à espera de carga. Mas nunca chegou a atracar na margem. O Tribunal Marítimo de Lisboa decretou-lhe ordem de arresto - uma penhora por dívidas, em linguagem corrente E, coisa rara, assim permanece há mais de um ano, sem que ninguém aposte numa de data de saída do mar da Palha.


A bordo do Rio Arauca vive hoje uma tripulação mínima de segurança, homens que têm de ficar permanentemente a bordo e durante meses não podem pôr os pés em terra. Se o cabo de âncora partir, por exemplo, são eles que impedem que o navio embata contra um pilar da ponte. Os oficiais são rendidos a cada quatro meses, mas há tripulantes rasos que ali estão há mais de um ano.


"Quando chegámos éramos 26, agora ficaram lá 16", diz Thant Sin, um dos quatro cidadãos da Birmânia, ou Myanmar, que desembarcaram do Rio Arauca na passada sexta-feira. "É o número mínimo." Falar com estes homens, note-se, é a única maneira de perceber o que se passa a bordo. As autoridades portuárias e o armador não permitem que ninguém suba ao convés do petroleiro.


Sin, no entanto, é uma boa fonte: tem 29 anos e passou os dois últimos neste navio - tirando três meses de férias, entre outubro e dezembro de 2017. É marinheiro de convés, estava no Rio Arauca quando ele foi arrestado. "Viemos da Venezuela, estivemos em Setúbal uns dias e quando entrámos em Lisboa não pudemos atracar. Saí da embarcação em outubro mas assinei contrato para uma nova comissão de nove meses. Nunca pensei que os passasse todos no meio de um rio."
Os nove meses, afinal, não foram só nove meses. "Entrei no dia 6 de dezembro de 2017 e acabei por passar aqui onze meses e dez dias a ver Lisboa ao longe, já não aguentava mais", suspira. Mostra fotografias desse inverno, ele no convés com um cabelo curto que entretanto cresceu. Desde terça-feira que tinha a mala preparada para sair de vez, era essa a data que o comandante lhe prometera para a rendição.


"E depois a saída foi adiada para sexta, o que foi verdadeiramente duro, mais duro se calhar do que os meses todos que aqui passei." Há mais gente a queixar-se dessa dureza? 

"Não está lá ninguém da tripulação original que chegou a Lisboa, mas há homens que já lá estavam quando cheguei em dezembro e ficaram." Também são do Myanmar, como ele.


Ao DN, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras deu conta de 46 desembarques e 40 embarques no Rio Arauca ao longo de um ano e quatro meses. Mas não especificou se a rotatividade se aplica a todos os cargos. Sin encolhe os ombros, admite que há uma parte da tripulação que é revezada constantemente, sim. Mas há outra que fica presa a bordo mais tempo do que o contratado.


Uma semana antes da saída dos quatro cidadãos do Myanmar, Knudsen, o responsável pelos abastecimentos à tripulação do Rio Arauca , punha as coisas em perspetiva. "Está certo que quem viaja na Marinha Mercante está habituado a passar muitos dias num navio", dizia. "Mas estes homens não têm nada para fazer, não têm nenhum objetivo para cumprir, não podemos sequer levar-lhes bebida." Estão à espera e a espera nunca mais termina


A primeira coisa que Sin fez na tarde de sexta-feira, quando pôs os pés em terra, foi correr para um supermercado e comprar uma água-de-colónia. É como se aquele perfume lhe restaurasse uma certa humanidade. "No mundo dos barcos costumamos dizer que há três tipos de homens: os mortos, os vivos e os marinheiros, que não são uma coisa nem outra." Sábado de manhã embarcou finalmente para Rangoon. "E agora pronto, vou para casa a cheirar a gente."

Um problema no meio do Tejo

Rio Arauca é um petroleiro relativamente recente. Foi construído em 2011 nos estaleiros da Samsung, na Coreia do Sul, e batizado de Melodia pelo armador grego que operou o navio durante os dois primeiros anos, a Horizon Tankers. Mede 274 metros de comprido por 48 de largo, o que faz dele um Suezmax - os maiores navios a poderem atravessar o canal de Suez. Tem capacidade de transportar um milhão de barris de crude. Quando chegou a Lisboa, como já se viu, não trazia qualquer carga.


Em 2013 a embarcação foi adquirida em regime de leasing pela PVDSA, a petrolífera estatal venezuelana. O dono do navio, rebatizado nesta altura, é a sucursal cipriota da BSM, gigante alemão da Marinha Mercante. É a esta empresa que Caracas aluga o navio e a tripulação. Isso explica porque é que, apesar de haver uma dívida venezuelana em Lisboa, não haja salários em atraso a bordo do Rio Arauca: os trabalhadores continuam a ser pagos pelo Chipre.


Mas as leis de trabalho a que obedecem são as das ilhas Marshall, país onde o navio tem a sua bandeira oficial. "É um dos estados com as leis laborais mais flexíveis do mundo", explica Vasco Becker-Weinberg, especialista em direito marítimo e professor na Universidade Nova de Lisboa. "Daí haver tantas embarcações a pedir-lhe pavilhão."


Durante quatro anos, o Rio Arauca cumpriu a rota do Oriente, abastecendo de petróleo portos no Dubai, na China e no Japão. Caracas celebrou vários acordos de fornecimento com estes países, mas em 2017 uma série de greves estancou a saída de crude e o país falhou alguns contratos no Médio Oriente. O DN apurou junto das autoridades que foi uma destas dívidas que determinou o primeiro arresto ao navio no dia 24 de julho do ano passado.


"Em outubro de 2017 essa dívida foi paga e o navio teve autorização para sair de Lisboa, mas não o fez", diz a Administração do Porto de Lisboa (APL). "Provavelmente por falta de fundos da Venezuela, que não tinha crude nem dinheiro para pôr o navio em marcha." Então o Rio Arauca ficou estacionado no Tejo, o que lhe criou um segundo problema. E um segundo arresto.


Por cada dia de estadia em porto os navios têm de pagar uma taxa, que no caso de um Suezmax é superior a 20 mil euros. A dívida do Rio Arauca ao Porto de Lisboa ultrapassa neste momento um milhão de euros - e agrava-se a cada dia. 

A APL recorreu por isso ao Tribunal Marítimo, o navio voltou a ser arrestado e o processo está em segredo de justiça. O DN contactou o embaixador venezuelano em Lisboa, Lucas Rincón Romero, e o representante legal do navio, o advogado Tiago Dias Carlos, para perceber se havia alguma perspetiva da saída do navio do meio do Tejo. Nenhum deles respondeu.
No dia em que entrou pela primeira vez no porto, o agente de navegação do navio - a Navex - demitiu-se do cargo. Oficialmente, o Rio Arauca não tem agente oficial que trate da rendição dos homens, dos abastecimentos ou dos processos de desembarque com o SEF. A APL diz que uma outra empresa, a Orey Shipping, assumiu estes encargos por uma questão humanitária e contratou a Knudsen para que a tripulação do petroleiro não se veja isolada.


"Este é um caso muito raro e nunca tinha ouvido falar de uma coisa assim", diz Vasco Becker-Weinberg. O especialista em direito marítimo diz que, se a dívida não for saldada, o tribunal deverá determinar a entrega do navio à APL, para que este depois o venda. 

A APL responde que "não é nossa vocação o negócio de venda de barcos, essa solução está longe de ser a ideal". 

Seja como for, garante o professor da Universidade Nova, um processo assim pode demorar anos até estar resolvido.Quanto mais tempo ficará o Rio Arauca no mar da Palha, com 16 tripulantes a bordo, à espera de coisa nenhuma?


Um ano parados no meio do Tejo: ″É como estarmos numa prisão. Já ninguém aguenta mais″



A noite de Ano Novo é capaz de ser uma das mais duras da vida de Thant Sin. Ao início da tarde do último dia de 2017 a mãe tinha-lhe ligado de Rangoon, antiga capital da Birmânia e hoje a segunda cidade do Myanmar, onde o homem nasceu há 29 anos. 

Lá era meia-noite, em Lisboa menos seis horas e meia. "Vais celebrar, filho?", e ele respondeu que sim, para a descansar.


Depois do jantar subiu ao convés do Rio Arauca, o petroleiro que desde 24 de julho do ano passado está arrestado por dívidas no meio do Tejo. Estava frio, mas deixou-se ficar ali sozinho a ver as luzes de Lisboa ao fundo. À meia-noite em ponto, mesmo ao seu lado, o céu explodiu.


Nos quase dez minutos que durou o fogo-de-artifício, Sin foi-se abaixo. "Foi a primeira vez que entrei num novo ano sem a minha mãe ao lado." Tradicionalmente, no seu país, segue-se o calendário budista - é em abril que muda o calendário.

 Mas a sua família era uma das poucas a cumprir a festa ocidental, culpa de um tio-avô que emigrara para a Austrália e trouxera a novidade no regresso."Custa-me muito falhar o 31 de dezembro."
Ao mesmo tempo que o céu explodia, ele chorava. Na véspera tinham-lhe dito que tão cedo não abandonaria as águas do mar da Palha e, se ao menos pudesse andar em mar aberto, tinha o que fazer e tinha com que distrair-se. Mas naquela noite, primeiro a ver o fogo e depois a ouvir a alegria da cidade que entrava em 2018, sentiu-se terrivelmente sozinho. "Foi quando percebi que tinha ido parar à prisão sem culpa formada. Não foi isso, afinal de contas, que nos aconteceu?"



Uma comissão sem fim

Quando chegou a Lisboa, há um ano e quatro meses, o Rio Arauca trazia 26 homens a bordo. Sin era um deles, atravessara todo o Atlântico desde a Venezuela até Setúbal, e daí até à capital portuguesa, onde o petroleiro foi arrestado. "Sou marinheiro de convés há quatro anos, estou habituado a fazer comissões de nove meses no mar e três em terra. Foi a vida que escolhi e não me queixo."


O que lamenta, na verdade, foi o que lhe aconteceu depois da chegada a Lisboa. O navio sofreu em julho o primeiro arresto por dívidas a países do Médio Oriente, a quem Caracas tinha assinado contrato de fornecimento de crude. Em outubro as compensações foram repostas e nessa altura Sin pôde sair da embarcação. Passou quase três meses na Birmânia, ou Myanmar, e voltou a embarcar no Tejo a 6 de dezembro de 2017.


"Fizeram-me um contrato de nove meses" - coisa que só acontece porque o petroleiro tem pavilhão nas ilhas Marshall, um dos países que garante menos direitos aos trabalhadores marítimos - "e, como já não havia arrasto, pensei que os ia passar no mar, como de costume". Está habituado à ondulação, aos dias em que o horizonte é da cor do céu. Insuportável não é passar muito tempo dentro de um navio, antes de um navio que não pode ir a lado nenhum.


Na véspera de ano novo os homens foram avisados de que o Tribunal Marítimo de Lisboa tinha dado uma segunda ordem de penhora ao Rio Arauca, desta vez por dívidas ao porto da capital portuguesa. E foi nessa altura que perceberam que estavam ali presos. "Acabei por ficar onze meses e dez dias e já não aguentava mais", disse ao DN na noite de sexta-feira, quando finalmente desembarcou. "Já ninguém aguenta mais. Há homens que estão lá dentro há um ano, sem nada para fazer." À espera de coisa nenhuma. É esse o seu desespero.

Quem são os tripulantes?

Em outubro, findo o primeiro arresto, toda a tripulação do navio foi rendida, 26 homens substituídos por outros tantos. Mas o SEF garantiu que houve mais desembarques - 20, aos quais se somam os quatro que saíram na última sexta-feira. De quatro em quatro, ou de seis em seis meses, os oficiais a bordo continuam a ser substituídos. A tripulação, essa, está praticamente toda há um ano a bordo.


O primeiro comandante era canadiano, hoje é russo. 

Os primeiros tripulantes eram essencialmente venezuelanos, hoje são todos birmaneses. Na semana passada, como já se viu, desembarcaram quatro: Thant Sin, o marinheiro de convés de 29 anos, Chan Aung, que tem 24 e é empregado de câmara, Thura Lwin, mecânico de 46, e Myint Tun, chefe cozinheiro de 47. 

Os dois primeiros dão a cara pelo ano que passaram a bordo, os dois segundos apenas o nome e a idade - têm muita família no mar e temem represálias.


"Passava os dias ao computador, ligava tantas vezes de Skype à minha família que um dia foram eles próprios a pedir-me para não o fazer tantas vezes."


Aung, o miúdo, diz-se um bocado traumatizado. "Foi a minha primeira comissão. Eu vinha com sede de aventura e o que vivi foi um teste, sim, mas contra o tédio." O dinheiro que ganha é bom, dá-lhe para ajudar a família, e por isso não nega outra comissão. "Mas nunca mais quero estar um ano num navio fundeado ao lado de uma cidade, porque isso lembra-me todos os dias a vida que estou a perder."


Cada homem tinha o seu quarto, mas Aung decidiu tapar a vigia do seu - melhor a escuridão do que uma visão torturante. "Passava os dias ao computador, ligava tantas vezes de Skype à minha família que um dia foram eles próprios a pedir-me para não o fazer tantas vezes." Na Birmânia, afinal, a vida seguia. A sua é que tinha sido interrompida.


"Neste caso, não há nenhuma lei que tenha sido violada", diz ao DN Vasco Becker-Weinberg, especialista em direito marítimo e professor na Universidade Nova de Lisboa. "Mas isso não quer dizer que esta situação não seja eticamente reprovável. Passar um ano dentro de um navio sem poder sair, à vista de uma cidade, é desumano."

Dia após dia, após dia

De dois em dois meses, a Knudsen Suplliers transporta para bordo do Rio Arauca os abastecimentos necessários. "Fome não passam, levamos-lhes um cabaz com produtos iguais ao que qualquer família portuguesa gasta em casa", disse Paul Knudsen, que comanda essas operações. "Tabaco e bebida é que não entram, e é mais difícil uma tripulação não ter acesso a isso quando não há nada para fazer."


Tun, o chefe cozinheiro, nunca se empenhou tanto atrás dos tachos como nesta comissão. "A hora das refeições era a única distração, por isso eu tinha de aprumar-me. Cheguei a assar leitões, todos os fins de semana fazia um bolo, recheava os bifes de frango e fazia risotos em vez de fazer só arroz simples. E assim as coisas acalmavam."

Todos os sábados, o comandante do Rio Arauca organiza um exercício de simulação de incêndio a bordo, para que os homens tenham o que fazer. "Verificamos as máquinas diariamente, o que às tantas se torna também aborrecido", diz Lwin, o mecânico. "Nada parece fazer sentido, mas o que é que faz sentido quando se passa um ano a bordo de um navio que não se mexe?"

Lwin tem uma teoria. Só há dois motivos para ainda não ter havido um motim a bordo. "O primeiro é que os salários continuam a ser pagos." E isso acontece porque, apesar de a frota petroleira da Venezuela estar em falência, apesar de haver cada vez mais poços, barris de crude e navios abandonados, a tripulação é contratada por um armador cipriota a quem Caracas aluga as embarcações em regime de leasing.

Mas o principal motivo, diz ele, é cultural. "Se cá tivesse ficado uma tripulação venezuelana, como a que chegou originalmente a Lisboa, tinha havido protestos e revolta." São latinos, explica, e os latinos fervem em pouca água. "Nós somos budistas, estamos habituados a ouvir o arroz crescer." 

A paciência birmanesa está a aguentar um petroleiro no mar da Palha, que ninguém sabe quando irá sair.


Como uma crise a 6500km desaguou no meio do Tejo



No mesmo dia em que o petroleiro Rio Arauca entrou na barra do Tejo, um homem tornava-se famoso em Caracas. Era um violinista chamado Wuilly Arteaga, que depois de tocar o hino nacional diante de um cordão policial acabaria detido pelas autoridades. Aconteceu a 24 de julho de 2017.


O violinista Wuilly Arteaga durante um protesto contra o presidente Maduro em Caracas, em 2017.
Foto Andrés Ma


O presidente Nicolás Maduro ouviu nesse dia o hino do seu país, sim, mas não o que Arteaga tocou no centro dos protestos na capital venezuelana. Antes estava no Panteão Nacional, onde o governo celebrava o dia do 234.º aniversário do herói nacional e fundador da pátria, Simón Bolívar. Era feriado em todo o país.
O violinista diria mais tarde que fora torturado no curso dos 19 dias em que esteve preso. E que Bolívar ficaria envergonhado com a crise que viera sem convite à sua festa de aniversário. Em Caracas os protestos seguiram até às eleições, no fim desse mês. Houve mortos e feridos, milhares de detidos.
Ao sair da prisão, o músico tornado símbolo dos protestos fez um anúncio: manter-se-ia firme e lutaria o tempo que fosse preciso até a normalidade ser reposta. No final de julho, com a opinião pública mundial focada nos sangrentos confrontos que tomavam conta do país, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) anunciava uma verdadeira hecatombe na produção de petróleo no país: muito por culpa das greves, a queda era superior a 20% em relação ao mês anterior. E as reservas disponíveis eram então as mais baixas em três décadas.
Em maio deste ano, Arteaga não aguentou mais e fugiu para Nova Iorque, hoje toca o seu violino nas estações de metro de Manhattan. A crise do petróleo no seu país tinha trazido um drama maior do que a falta de liberdade contra a qual protestou. Trouxe fome, falta de medicamentos, crime e desespero.
A 6500 quilómetros de Caracas, o navio que entrou na barra do Tejo no mesmo dia em que ele se tornou um famoso violinista que prometeu esperar o tempo que fosse necessário continua à espera de que a crise se resolva do outro lado do mundo. Mesmo diante de Lisboa, está um dos grandes problemas do mundo.

Passageiros frequentes

Até 2013, a PDVSA, petrolífera estatal venezuelana, dispunha de 31 petroleiros, que estavam longe de chegar para as encomendas. Até essa altura, o país produzia perto de três milhões de barris de crude por dia, o que obrigou a empresa a alugar mais duas dezenas de navios em regime de leasing. O Rio Arauca, estacionado no Tejo, chegou à Venezuela nesse ano e nessa condição. O proprietário é a delegação cipriota de uma empresa alemã da marinha mercante.
Ainda que a embarcação cumprisse habitualmente a rota nascente, descarregando petróleo no Médio Oriente, Índia, China e Japão, estava longe de ser um desconhecido em águas portuguesas. Sines é paragem frequente para os petroleiros da PDVSA e os estaleiros de Setúbal são lugar habitual para as reparações da frota. Era aliás essa a procedência do Rio Arauca quando entrou em Lisboa e foi detido.


Em 2014, depois da expulsão de Caracas de três diplomatas norte-americanos, Washington impôs uma série de sanções à Venezuela. Apesar de não incluírem os produtos petrolíferos, foram anúncio de uma crise económica sem precedentes. A inflação começou a disparar e os salários não conseguiam acompanhar a subida dos preços dos produtos básicos. O país mergulhou numa série de greves e protestos, que se foram intensificando nos meses seguintes e tiveram um impacto tremendo na PDVSA.
A Venezuela tem a maior reserva de crude do planeta, mas também tem um problema de falta de diversidade económica: mais de 95 por cento das exportações do país estão centradas neste setor. Quando se tenta perceber a vaga de imigração portuguesa para aquele país nos anos 1960 e 1970, a explicação é só uma: foram os anos do boom petrolífero, a república era o novo eldorado sul-americano.
Em 2017, com o preço do barril de petróleo a atingir mínimos históricos, a Venezuela implodiu. As ruas encheram-se de protestos, a criminalidade e a fome dispararam, as eleições do final de julho ficaram marcadas por sangue e desespero. Segundo a ONG suíça Codevida, nos dois últimos anos dois milhões de pessoas fugiram do país e cada venezuelano perdeu em média 11 quilos. Na origem de toda essa crise estava o ouro negro.

O fim da linha

site de investigação jornalística venezuelano La Patilla diz que 52% dos funcionários da PVDSA abandonaram os seus empregos. Ou seja, desde meados de 2017 não há homens para retirar o crude do mar das Caraíbas, para carregá-los nos portos ou para compor as tripulações dos navios. Caracas está hoje a produzir 1,678 milhões de barris de petróleo, quase metade do que há cinco anos.


Os acordos de abastecimento que o país tinha firmado com uma série de nações ruíram, a PDVSA pura e simplesmente não consegue entregar os barris de petróleo que prometeu. Então, em portos de todo o mundo, há hoje uma dezena de petroleiros venezuelanos arrestados por dívidas. A diferença do Rio Arauca é a legislação portuguesa: o navio tem de ser ancorado ao largo, no mar da Palha. E tem de ter uma tripulação mínima de segurança, que não pode vir a terra.
Para todos os efeitos, as dívidas do petroleiro que está há um ano e quatro meses no meio do Tejo são de responsabilidade venezuelana. Mas, como o armador é cipriota, a tripulação tem recebido os seus salários. E a rendição dos oficiais tem ocorrido sem problemas de maior. O grande problema é a tripulação, os marinheiros rasos.
Os que chegaram a Lisboa em julho eram essencialmente venezuelanos, mas saíram em outubro. A partir daí os cargos a bordo têm sido ocupados por cidadãos da Birmânia, hoje Myanmar. Apesar de ter um dono cipriota, exploração venezuelana e estar em águas portuguesas, o navio tem bandeira das ilhas Marshall. Dentro do Rio Arauca, vigora a lei de um pequeno país do Pacífico Central.


Só isso explica que haja homens há mais de um ano no meio do Tejo sem poderem sair. Na sexta-feira desembarcaram quatro, que tinham assinado um contrato de nove meses e afinal passaram 11 meses e dez dias. Disseram que havia outros que ali permaneciam há muito mais tempo.


Para um dos que saíram, um rapaz de 24 anos chamado Aung, foi a primeira comissão de sempre. Desembarcou de olhos vazios e quis falar do desespero dos seus dias. Segundo a Seafarers Right International, uma espécie de sindicato mundial que defende os direitos dos trabalhadores da marinha mercante, o suicídio a bordo é a causa de 15% das mortes na classe profissional.


Há um ano e quatro meses que há um petroleiro no Tejo onde ninguém entra. Os que saem falam da agonia, mas quem está na margem de Lisboa esquece-se de que ele sequer existe. Ali, no navio invisível à vista de toda a gente, pode bem caber a história de toda a desumanidade que há no mundo.

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