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Está tudo mais calmo desde que a estalagem fechou, diz-nos Camané, que tem um restaurante com o seu nome. Se esta viagem deve começar em Alcoutim, então que se vá de véspera e se comece por aqui, com um belo ensopado de enguia, com poejo e pão frito em azeite. Também poderia ser javali estufado, perdiz à algarvia ou coelho frito. Os veados e javalis atravessam o rio, muitas vezes para um desfecho fatal. “A caça tem tido muita procura. Dizem que aqui há a melhor perdiz vermelha” – e Camané é um dos que gosta de lhes apontar a espingarda.
Avistámos uma de manhã, quando nos pusemos a caminho, logo no início da Via Algarviana.
São 8h30 quando começamos esta espécie de peregrinação, sem Deus nem promessa: trezentos quilómetros a pé, de Alcoutim ao Cabo de São Vicente, atravessando as serras do Caldeirão, Espinhaço de Cão e Monchique, numa linha quase sempre paralela ao mar. Trezentos quilómetros de sossego, vistas amplas, ar puro nos pulmões. Percorrem-se em 14 dias (só tínhamos 12, por isso saltámos duas etapas) por caminhos estreitos, às vezes íngremes, outras vezes (poucas) em asfalto, sem guia nem grupo organizado, apenas seguindo todas as indicações que estão em postes, pedras ou muros.
Foi por isso uma sorte ter quase sempre a companhia da Anabela Santos, coordenadora da Almargem, associação de defesa do património ambiental do Algarve, responsável pela Via Algarviana (que foi inaugurada em 2009, tentando seguir o caminho da peregrinação de São Vicente; não se sabe quantas pessoas a fazem porque qualquer pessoa pode fazê-la autonomamente, mas o milhão e meio de euros investido já foi superado pela dinamização económica local, diz a bióloga). Sem ela mal daríamos pelas preciosas orquídeas selvagens que nos surpreendem pelo caminho, ou pelas pútegas escondidas entre as folhas.
Comecemos então a caminhada, um pouco antes do ponto em que avistamos a tal perdiz. Saímos de Alcoutim com o rio à nossa direita, subindo vagarosamente, sem falta de fôlego. Do lado andaluz, um castelo velho pintado de novo, todo branco. Do lado algarvio, amendoeiras abandonadas ainda com os frutos do Outono, porque ninguém se dá ao trabalho de os apanhar – não compensa o preço, sobretudo pela concorrência da amêndoa californiana. Com as oliveiras é diferente: ainda há muita gente a fazer o seu próprio azeite.
Por entre o grauvaque, que é abundante, despontam os sargaços em flor, os cardos, usados para fazer coagular o queijo fresco de cabra, as marioilas, cujas folhas felpudas eram antigamente usadas para lavar a loiça (sobretudo os alguidares da matança do porco), um serapião (orquídea selvagem quase grená, rara aqui, mas mais comum na última parte da rota).
Isabel Ferreira faz brincos, ganchos e taças inspiradas nas flores das estevas. Difícil era não fazer, porque a serra está cheia delas, e nesta altura do ano estão bem floridas. Salpicam os campos de branco, como se fossem flocos de neve. De perto são pequenos ovos estrelados. Mas o melhor nem é isso, que já não é nada pouco. O melhor é o cheiro que libertam e que se cola ao nariz, enquanto atravessamos barrancos e linhas de água.
Este ano choveu pouco. As ribeiras estão pouco fartas. Saltam-se de um salto. Mas a serra ainda está verde. Mais uns meses e toda esta paisagem mudará de cor. Mais uns meses e o calor tornará esta peregrinação um acto de sacrifício e dor. Os caminhantes que agora se vêem muito de vez em quando terão desaparecido quase por completo.
Em Afonso Vicente há agora seis habitantes. Já chegou a haver 400. Em frente à associação recreativa estão António Silvestre e José André. Dois dedos de conversa à espera que se abra a porta, o sol a bater quentinho na cara. Balurcos, aldeia com mais movimento, fica a 12km. Mas há 30 anos que António Silvestre não vai lá. Passa a maior parte do seu tempo aqui, onde a pessoa mais nova tem 62 anos e onde há 40 não nasce ninguém (informações recolhidas nesta varanda, à espera de um café que não vem nem virá).
Não repetimos as mesmas perguntas em Corte Tabelião, uma aldeia que parece um pátio, toda virada para um larguinho, com um forno comunitário onde talvez ainda se coza o pão em ocasiões especiais. Mas o cenário é o mesmo: casas totalmente fechadas, ninguém na rua, excepto um ou dois velhotes a apanhar sol.
Será sempre um pouco assim, às vezes, muito assim. Aldeias abandonadas, brancas e silenciosas, com um ou outro cão a ladrar do lado de dentro dos quintais, pouco habituados à passagem de estranhos. Aldeias a cheirar intensamente a flor de laranjeira. Atravessamos pomares de que já ninguém cuida e até tiramos um ou dois frutos das árvores para matar a fome e a sede de uma só vez. Atravessamos hortas ladeadas por valados, que aqui há muita pedra. Diz-se bom dia ou boa tarde a quem quer que se cruze no caminho.
Ribeira da Foupana: deixamo-nos estar nas pedras a ouvir a água a correr. Come-se fruta e sanduíches preparadas por António Faustino, do turismo rural de Balurcos, onde ficámos na noite anterior. Os pássaros que cantem e façam a agitação que quiserem, que na próxima meia hora ninguém nos tira daqui. Quem quer molha os pés, quem quer dorme em cima das pedras, quem quer fica a observar o que nos espera do outro lado da ribeira: uma subida íngreme, com o verde-escuro a acalmar o verde mais claro das colinas, umas atrás das outras.
Olívia não é da família mas quase, porque faz na Casa do Lavrador tudo o que é preciso: limpezas, jantares, pequenos-almoços… Não sai de Furnazinhas há anos, nem sabe dizer quantos. Os dois filhos é que a vêm visitar. Um deles é chef no hotel de Altura onde estudou, mas dizem que ela cozinha ainda melhor que ele. Comida da serra, claro.
Quando precisa de alguma coisa que não encontre cá, o marido vai a Castro Marim, na carrinha que todas as terças-feiras vem buscar quem lá queira ir. Não há posto de saúde, mas qualquer problema aparece o INEM, e mensalmente vem uma médica que mede a tensão, receita medicamentos, faz um acompanhamento geral. E há também a carrinha que traz pão, peixe, carne e alguns artigos de mercearia.
Na aldeia ainda há casas em grauvaque, a que chamam pedras vivas, ou xisto, também chamado de piçarra. Mas Joaquim, marido de Olívia, pedreiro, diz que há uns 40 anos que não se fazem assim. “Dá muito trabalho. Agora é só cal.”
A casa onde António Gomes Peres trabalha é em pedra. É cesteiro desde os 11 anos, leva 60 de profissão. Tem umas canas a um canto, um pedaço quadrado de cabedal em cima da perna para não se cortar com o vime, uma cadeira baixinha onde se senta. “Não há pontas à vista”, mostra com orgulho o cesto que está a fazer. Cada cesto leva quatro canas, cada cana leva uma hora a preparar. Um cesto com tampa, destes que está a fazer agora, é um dia e meio de trabalho. Recebe até encomendas do Japão, através do projecto TASA, que recupera o artesanato tradicional com ajuda de novos designers. Mostra um papel onde estão os exemplos de cestos que a clientela nipónica pretende. “Aquele era para ir para lá mas ficou muito barrigudinho e não passou no teste.”
Mais sorte teve Manuel Henriques, 58 anos, que tem uma melaria umas casas adiante, onde trabalha com os seus dois filhos, David e Tiago, que depois de tirarem cursos de apicultura se dedicaram ao negócio. “Agora está na altura de tirar o pólen”, diz.
A “bonança, a força das flores, já chegou, vem de leste para oeste”, explicam os homens da aldeia. E as colmeias da zona, dispersas entre os campos de rosmaninho, entram em grande actividade.
Entre Furnazinhas e Vaqueiros os pinheiros mansos (“projectos”, como lhes chamam por aqui, por terem sido plantados com financiamento comunitário) rivalizam com os sobreiros. O guia da Almargem indica que esta zona é sobrevoada por dezenas de espécies de aves: a toutinegra do mato, a águia d’asa redonda, o papa figos, o abelharuco... Mas não venham dizer a Cristina Lourenço, de 49 anos, como é tão bom ouvir o seu chilrear. “Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir gente.”
Vaqueiros é uma animação perto de tantas outras aldeias à volta (é a mais povoada da freguesia). Mas não chega a ter 60 habitantes. O número está constantemente desactualizado, porque os funerais são uma rotina. Cristina Lourenço não tem esperanças de que a situação se altere muito. “Acho muito difícil haver fixação aqui. Como não há postos de trabalho, também não há um supermercado, uma sapataria… Está mesmo tudo desertificado. Toda a gente tem família fora.”
Ela também chegou a ir. Faro, Lisboa. Depois voltou porque era aqui que o marido queria viver e havia financiamento para a agricultura. “Viemos um bocado iludidos.”
Na Casa de Pasto Teixeira, a dona Rita garante um ponto de encontro à aldeia. Fala com os estrangeiros por gestos e todos se entendem. “Não deixo ninguém ir embora sem comer nem dormir.” Toma conta do alojamento da filha, que só vem aos fins-de-semana, como muitos dos que saíram. E faz as refeições para quem pernoita. Conta que a maior parte dos habitantes emigraram para França ou Alemanha (como foi o caso dela, que viveu dez anos perto de Dusseldorf). Quando voltam, vêm com a reforma e constroem uma casita. “Se for ver, a aldeia tem muita casinha nova e prédios bonitos.” Mas “velhotes para contar histórias já há poucos”. “Têm morrido todos.”
Por isso, a maior parte das albardas que Manuel Vicente faz (só durante a manhã, que é preciso descansar) são para decoração. Ainda há “quem venha de longe” fazer-lhe encomendas: São Brás de Alportel, Loulé, Portimão. “Aqui não gastam.” As carneiras vêm de São Brás, em cima é pele de porco ou de javali, que antigamente lhe vendiam nos talhos. Fazia muitos molins para os cavalos da GNR, todos decorados, com espelhinhos e flores bordadas, como alguns que ainda aqui tem. Os tosquiadores ainda lhe vendem a rabada dos cavalos para terminar em beleza, com os pêlos apontados para o ar.
É ele e a mulher, Cátia, ambos de 36 anos, quem tomam conta do hotel e restaurante, mesmo à beira da estrada. A filha, Serena, está a tentar concentrar-se nos trabalhos de casa, feitos ao balcão. Não encontra a borracha, quer uma pastilha, perdeu o afia... Uns seis anos irrequietos, como os seis anos normalmente são. Damo-nos conta das poucas crianças que encontrámos até aqui.
É Cátia quem conta que o hotel começou por ser um abrigo de montanha, com dois quartos e o único telefone das redondezas. Barranco do Velho é um local de passagem da EN2, que liga Faro a Chaves ao longo de 738 quilómetros, e durante a sua construção não havia muito mais onde ficar por estas bandas. “Este era o único ponto de paragem no meio do nada. Até ao Alentejo não voltava a haver nada assim.” Dizem que a tia Bia, que mais tarde se ocupou do hotel e lhe deu nome, tinha muitos “amigos” entre os camionistas que aqui pernoitavam ou paravam para comer, conta Cátia a rir. “As pessoas de 80 anos ainda choram quando falam dela.” Era uma mulher simpática, com personalidade forte.
Nuno é de Barranco e quando, aos 17 anos, veio ajudar a servir à mesa ficou com a certeza que o seu futuro passava pelo lugar onde estava o seu passado. “Fui ganhar conhecimentos para o litoral, sempre com o encanto da serra”, conta. “No ano passado os donos cansaram-se disto e foi a minha oportunidade.” Cátia, de Loulé, já estava encantada também, não teve sequer que a convencer. Ela era chefe de sala na Quinta do Lago, ele chef de cozinha. A dupla funciona na perfeição. De resto, os negócios da região são frequentemente familiares. “Decidimos subir, com armas, bagagens e uma filha.”
Aqui ainda se respeita o professor, a tradição, valoriza-se a boa educação, conta Cátia, enquanto o marido vai para a cozinha preparar o jantar. “Roupas novas? Não se sente necessidade de as comprar. Mas não prescindo da minha manicure em Salir!” Ganha-se menos dinheiro, sim, mas também se gasta menos e aproveita-se melhor o tempo.
Mas nem sempre é fácil a vida na serra, comenta. “Há pouca dinâmica porque há pouca juventude. Os políticos falam na desertificação mas nada foi feito para que os jovens, que são quem tem novos projectos, voltassem à terra. Os de idade querem é estar sossegados. Há as casas do medronho, do pão, dos frutos secos, da cortiça, o moinho – estão construídos, têm tudo para se trabalhar, mas não há lá ninguém.” Ela tem ideias sobre formas de dar a volta à questão: dinamizar as produções biológicas, aproximar as crianças “do que temos de melhor, porque a maior parte do Algarve é serrano”. “Havia um preconceito das pessoas do litoral em relação às da serra, mas não há nada de mais genuíno.”
O casal quer “pôr Barranco do Velho no mapa”. “Em qualquer sítio da serra é complicado para os turistas saberem o que se passa à volta porque ninguém fala inglês. Aqui já podem conversar um pouco mais.” E a prova disso é a forma como serve animadamente o grupo de caminhantes estrangeiros que agora se senta para jantar.
Robert Keukens é um ex-advogado holandês de 76 anos. Todas as primaveras e outonos põe-se a andar para algum lugar. Já foi de Sevilha a Santiago, de Oviedo a Santiago, e outros percursos em Espanha, França, Itália. “Caminhar é uma forma de vida”, diz. “Comecei a andar por viver numa zona linda, e ao fim de umas horas de passeio pensava 'que pena ter de voltar. Era bom continuar, um dia após o outro'.” Ganha-se sossego e cabeça limpa. “Temos tempo de pensar quando se caminha assim. Não precisamos de nos preocupar com nada a não ser em ir de um sítio ao outro, comer, dormir. Não há mais problemas.”
Os 300 km da Via Algarviana não o assustam, nem à sua mulher Elizabeth. Está em condições de dizer: “A natureza é linda, as pessoas muito simpáticas, mas estou chocado com a pobreza. As aldeias são ruínas. Porque não há agricultura? As laranjas são muito melhores do que as da Holanda. Porque não exportam para lá? Eu sei que há aqui um problema de escala, mas parece que quem fica não tem iniciativa.”
Já passou tempo suficiente em Portugal para conseguir trocar algumas palavras em português e ler o jornal (dias depois iremos encontrá-lo em Messines à mesa de um café com o Diário de Notícias na mão). E também para comentar: “Gosto da forma portuguesa de ser educado. É incrível. No caminho não nos vêem até que chamemos por eles. E aí desfazem-se em atenções – mudam, como uma flor a desabrochar.”
E para caminhar basta um corpo, espaço e tempo. “Caminhar não é um desporto”, é a primeira frase do livro. Não se fala em resultados, nem em números, nem em pontuações: “O caminhante dirá que caminho tomou, em que direcção se encontra a paisagem mais bela, a vista que se tem de certo promontório.” Não precisamos de estar totalmente sozinhos, mas precisamos de silêncio. Num grupo de três ou quatro pessoas “ainda é possível andar sem falar (...) Mais do que quatro, é uma colónia, um exército em marcha (…) Mais do que cinco, é impossível partilhar a solidão”. “Caminhar não é um desporto, mas uma vez que se começa, já não se consegue ficar parado.”
O Algarve não é aqui. Isto é, para os habitantes serranos, o Algarve é o que é para quase toda a gente: o litoral e as suas praias. A serra é outra coisa. Aqui diz-se “lá no Algarve”. Mesmo quando é uma questão de apenas vinte quilómetros. Há vários pontos do caminho de onde se avista ao longe o mar, de onde se avista “o Algarve”. Como por exemplo entre Barranco do Velho e Salir, uma zona de transição para o barrocal – a chamada beira-serra. A terra já é avermelhada e barrenta.
Graciete Valério também não consegue ficar parada. Aos 81 anos continua a tomar conta da Casa da Mãe, um alojamento em Salir, – nasceu aqui, nesta mesma casa, que era da sua avó. É ela quem faz as compotas servidas ao pequeno-almoço, as rendas à volta dos guardanapos, as toalhas com bordados, de mesa e de mãos, os licores, os quadros com flores que tem na parede... Ainda tem tempo para responder a emails e navegar pelo Facebook, no iPad ou no iPhone.
Não viveu sempre em Salir. Aos vinte anos, quando chamaram o marido para ajudar a construir o metropolitano de Lisboa, lá foram os dois. Ficaram 11 anos, até que a mãe lhe falou dos vizinhos que estavam todos a emigrar para França. “Aquilo entrou-me bem na ideia”, conta no espaço onde tem o seu escritório, sentada numa cadeira preta de rodas, girando de um lado para o outro. “O meu marido foi primeiro, com uma carta de chamada. Quando veio cá nas férias, eu insisti que queria ir com ele.” E ninguém a deteve. Dividiram um quarto com outro casal, separados por uma cortina. “Em Lisboa já era diferente [de Salir], mas aquilo em Paris dava-me uma admiração: os moços aos beijinhos na rua. O meu marido dizia 'não olhes'!”
A amiga trabalhava para a mulher de um ministro, que pôs um anúncio no jornal para lhe arranjar trabalho. “Nem queira saber os telegramas que recebi. Fiquei a trabalhar com a neta da Nina Ricci [a da casa de moda], a cuidar dos meninos dela.” Tem a fotografia do mais novo, Adrien, ao lado das da sua família. “O miúdo dava ares a mim, ia na rua e pensavam que era meu filho.” Acompanhava a família Ricci para onde quer que fosse – “Se eles iam para a Suíça eu ia, se iam para Itália, eu ia, se iam para Inglaterra, eu ia.” A casa ficava no Quai Voltaire, em frente ao Louvre. O ex-Presidente Jacques Chirac foi lá algumas vezes jantar – “a polícia fechava a rua”. E no terceiro andar morava Rudolf Nureyev, um dos maiores bailarinos do século XX. “Às vezes, quando ele vinha da Opera, à meia-noite, dava ceias e eu ia ajudar a servir.”
Voltou de Paris para Salir quando uma das suas filhas engravidou. A vila continuava sem gente nem trabalho. Um francês sugeriu-lhe abrir o turismo. “Entrou-me aquilo bem na ideia, 'olha não está mal'.” Dá dormida a 25 pessoas – muitas delas, caminhantes da Via Algarviana. “Não havia nada em Salir mas agora toda a gente aluga. Viram e invejaram-se.”
Queijarias ilegais “há muitas, cada vez mais”, mas com tudo certinho só a sua, garante. Tem 150 cabras, mas isso não chega para a produção e ainda compra leite aos pastores – “mil litros por dia, quando é altura de haver muito”, como agora na Primavera.
Na fábrica, os dois depósitos de refrigeração (dois cilindros enormes em inox) estão cheios de leite. Depois vai a cozer durante três horas e meia, até aos 90ºC, em banho-maria. Passa para panelas, para arrefecer. “Quando chega aos 50º juntamos o cardo, para coalhar. Depois, partimos a coalhada e tiramos o soro. Utilizamos uma parte para alimentar as porcas – tem muita proteína.” De seguida enchem-se os moldes, um a um. “O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maiores.” Mas não foi imediatamente que conseguiu que os seus queijos de cabra ficassem perfeitos. “A minha avó fazia o de ovelha mas as temperaturas são diferentes. Fomos falando com as outras pessoas mais velhotas para aprender.”
O licor feito por Albertina Madeira
Quem entrar na queijaria não reconheceria um dos grandes problemas da zona: há entre 60 e 70 óbitos por ano para entre 10 e 15 nascimentos. Ontem houve dois funerais, anteontem outros dois… Salir é uma das maiores freguesias do país em termos de área – tem 185 km quadrados, mas apenas 2765 habitantes. Aqui “somos quatro trabalhadores, só malta jovem”.
Abre as portas do estábulo e lá estão as cabritas, castanhas e brancas, a comer. São floridas sevillanas porque produzem quatro vezes mais que as algarvias e são mais dóceis, explica. “As algarvias são mais stressadas.” Quando saímos, elas parecem querer despedir-se, começam a balir alto e bom som. Idálio abre-lhes a porta e elas correm para o exterior. “É mais difícil aturar pessoas do que aturar animais.”
Retoma-se o caminho que mais adiante se torna num largo rio de brita, porque o presidente da junta quis alargar a estrada. Anabela Santos está inconformada. Nas obras, retiraram as indicações da rota, e o percurso está descaracterizado. A Via Algarviana envolve 11 concelhos e 21 freguesias. Não foi fácil pôr todos de acordo sobre o investimento que teria de ser feito, nem é fácil garantir que todos cumprem aquilo com que se comprometeram – apesar do movimento que a Via trouxe a esta parte do Algarve –, explica a coordenadora da Almargem.
Depois da descida, uma zona de floresta. Atravessa-se um barranco, depois outro. A terra já é vermelha. Passa-se a Estrada 124 e estamos dentro no barrocal. Pomares de sequeiro, com as suas oliveiras, figueiras, amendoeiras. As alfarrobeiras são centenárias, vê-se pela grossura dos troncos, com formas contorcidas. Em Cerro de Cima, Maria Guerreira está a tirar ervas das pedras junto a uma alfarrobeira que diz ter mil anos. “É do princípio do mundo.” Tem 83 anos, toda curvada para o chão. Nos quintais há cabaças penduradas a secar. À beira da estrada, pequeninas flores azuis: “A borragem dá coragem”, diz-se. Podemos comê-las.
Os valados em calcário estão bem conservados, ainda que nunca se veja ninguém a fazer a despedrega (tirar a pedra da terra para fazer os muros). Dividem os terrenos pelos montes acima, umas linhas cinzentas, como veias.
De onde vem este nome, Alte? Quem conta é Albertina Madeira. “Havia uma senhora morgada, dona Antónia, que vivia na Quinta do Freixo. E todos os domingos ela ia ouvir missa a Santa Margarida, uma aldeia aqui da freguesia. Havia ali uma igreja, que agora está em ruínas. Ela ajudava o padre, e ele não dizia missa sem a senhora chegar. Mas num domingo, a senhora atrasou-se imenso e o padre disse a missa. E quando ela chegou aqui a altura de Alte viu muitas pessoas virem de Santa Margarida e perguntou-lhes: 'Então, de onde vêm?', 'Ah, fomos ouvir missa. Como a senhora demorasse, o padre disse a missa'. Então ela volta-se para os criados e diz: 'Alte aqui. Aqui vai ficar uma igreja e ela será sempre de uma freguesia.' Era 'alto aqui', mas com o passar dos tempos foi deturpado e agora só se diz Alte.”
Albertina Madeira é directora do jornal Ecos da Serra, “mas sem cultura nenhuma para isso”, ressalva. Assina os seus artigos como Serranita. O jornal, com uma tiragem de mais de mil exemplares, segue para assinantes espalhados na Europa, África, América, Austrália. Há uns cinco anos, Albertina partiu o braço, não podia fazer nada, e começou a recordar as coisas de quando era pequenina. Ou seja, as coisas de há 93 anos. “Vou escrever as minhas recordações. O que existia nesta rua, as pessoas, o que faziam, essas coisas. E agora estou nas tradições de Alte: o que se fazia no Carnaval, nas Janeiras, no 1.º de Maio.”
Sai-se de Alte com o cheiro da flor de laranjeira. O céu está negro mas dizem que hoje não chove. Pássaros a cantar, galos a cantar, uma moto a passar ao longe.
Depois de as vinhas serem abandonadas, na década de 1990, muitas cooperativas fecharam. E quando a vinha voltou a ser plantada apostou-se nas castas internacionais, “nobres”, “que se deram bem por aqui”, contam. Agora, está a voltar-se às origens. “Fomos pioneiros nisso de pegar na Negra Mole.” Foi uma aposta com retorno pouco seguro: “Nos primeiros anos, vindimámos e eu nem sabia onde pôr o vinho. Em 2012 decidiu-se meter em barrica e ficou lá esquecido, ia sendo empurrado para o lado. Dois anos depois, fomos provar: parecia Pinot Noir!” Ainda antes de chegar ao mercado, parte do vinho já estava vendido. “O senhor Cabrita alugou uma vinha só de Negra Mole. Agora é deixá-lo fazer-se sozinho, intervir o mínimo e o vinho vai-se revelando.”
A maior parte das vendas dos Cabrita são para a região, entre 10% e 15% para exportar e 3% ou 4% para Lisboa. No ano passado, saíram daqui 20 mil garrafas de branco, 15 mil de rosé e 23 mil de tinto.
Um dos restaurantes onde os podemos encontrar é A Charrete, em Monchique. O dono, José Pedro, fez de uma antiga mercearia um dos pontos obrigatórios num possível roteiro gastronómico da serra. Foi com 11 anos trabalhar para a loja – “nem dormi nessa noite com a excitação de ir trabalhar para a vila!”. Em 1974, conseguiu comprá-la com o dinheiro que tinha juntado para levar para a tropa. Quatro anos depois, a mercearia passou a bar, pastelaria, restaurante, “era tudo”. “Mas fui puxando para o lado da restauração”. Sempre com a preocupação de oferecer comida local: cozido de couve, feijão com arroz e castanhas, milhos com feijão, tudo a acompanhar carnes de porco e enchidos; bolo do tacho (acompanha com medronho e melosa). Só o pão, assado por uma vizinha em forno de lenha, servido com cenouras em azeite e alho, ou lombo de porco curado em banha vermelha, já justifica uma visita.
Este é o celeiro do Algarve, diz-se. O vento molda tudo em volta: a vegetação rasteira, as árvores todas inclinadas na mesma direcção, as pernas a quererem voar. As searas ondulam, são um imenso mar verde.
De noite, Alcoutim é só silêncio. As ruelas brancas, de casario baixo, afluem para o rio e não se ouve uma porta, uma televisão, raramente um carro. Até que, chegados à margem do Guadiana, lá vêm os sons de um jantar em família, as vozes bem altas e animadas. E de onde vêm elas? De uma casa qualquer em Espanha. Se podemos ouvi-las com toda a distinção é porque do lado de cá não se passa nada. Ou quase nada.
Está tudo mais calmo desde que a estalagem fechou, diz-nos Camané, que tem um restaurante com o seu nome. Se esta viagem deve começar em Alcoutim, então que se vá de véspera e se comece por aqui, com um belo ensopado de enguia, com poejo e pão frito em azeite. Também poderia ser javali estufado, perdiz à algarvia ou coelho frito. Os veados e javalis atravessam o rio, muitas vezes para um desfecho fatal. “A caça tem tido muita procura. Dizem que aqui há a melhor perdiz vermelha” – e Camané é um dos que gosta de lhes apontar a espingarda.
Avistámos uma de manhã, quando nos pusemos a caminho, logo no início da Via Algarviana.
São 8h30 quando começamos esta espécie de peregrinação, sem Deus nem promessa: trezentos quilómetros a pé, de Alcoutim ao Cabo de São Vicente, atravessando as serras do Caldeirão, Espinhaço de Cão e Monchique, numa linha quase sempre paralela ao mar. Trezentos quilómetros de sossego, vistas amplas, ar puro nos pulmões. Percorrem-se em 14 dias (só tínhamos 12, por isso saltámos duas etapas) por caminhos estreitos, às vezes íngremes, outras vezes (poucas) em asfalto, sem guia nem grupo organizado, apenas seguindo todas as indicações que estão em postes, pedras ou muros.
Foi por isso uma sorte ter quase sempre a companhia da Anabela Santos, coordenadora da Almargem, associação de defesa do património ambiental do Algarve, responsável pela Via Algarviana (que foi inaugurada em 2009, tentando seguir o caminho da peregrinação de São Vicente; não se sabe quantas pessoas a fazem porque qualquer pessoa pode fazê-la autonomamente, mas o milhão e meio de euros investido já foi superado pela dinamização económica local, diz a bióloga). Sem ela mal daríamos pelas preciosas orquídeas selvagens que nos surpreendem pelo caminho, ou pelas pútegas escondidas entre as folhas.
Cada etapa termina numa vila, aldeia ou monte onde se encontra alojamento, come-se, arranja-se lanche e forças para o dia seguinte.
Comecemos então a caminhada, um pouco antes do ponto em que avistamos a tal perdiz. Saímos de Alcoutim com o rio à nossa direita, subindo vagarosamente, sem falta de fôlego. Do lado andaluz, um castelo velho pintado de novo, todo branco. Do lado algarvio, amendoeiras abandonadas ainda com os frutos do Outono, porque ninguém se dá ao trabalho de os apanhar – não compensa o preço, sobretudo pela concorrência da amêndoa californiana. Com as oliveiras é diferente: ainda há muita gente a fazer o seu próprio azeite.
Por entre o grauvaque, que é abundante, despontam os sargaços em flor, os cardos, usados para fazer coagular o queijo fresco de cabra, as marioilas, cujas folhas felpudas eram antigamente usadas para lavar a loiça (sobretudo os alguidares da matança do porco), um serapião (orquídea selvagem quase grená, rara aqui, mas mais comum na última parte da rota).
Não se chega depressa a lugar nenhum, porque essa palavra não existe quando se percorre um caminho assim. Mas ainda é de manhã quando entramos em Corte Pereiras, uma pequena aldeia onde todos têm um pequeno quintal. Cabrinhas cercadas por arame, piteiras, sobreiros. Um café à beira da estrada e pouco mais.
A casa de Isabel Ferreira tem galinhas à porta para nos receber e um alpendre com um banco corrido de pedra, outro de madeira, hera a subir pelas paredes.
A ceramista, de 55 anos, veio de Lisboa para aqui há 18. Não foi um feliz acaso, esta era a casa dos avós do seu marido. Apesar da tranquilidade da aldeia, “aqui também há stress, um stress interior”. Anula-o todo com os bichos e flores que cria, e que vende sobretudo a estrangeiros. “Nos últimos quatro anos desapareceu toda a gente. Agora estão a voltar aos poucos”, diz.
A ceramista, de 55 anos, veio de Lisboa para aqui há 18. Não foi um feliz acaso, esta era a casa dos avós do seu marido. Apesar da tranquilidade da aldeia, “aqui também há stress, um stress interior”. Anula-o todo com os bichos e flores que cria, e que vende sobretudo a estrangeiros. “Nos últimos quatro anos desapareceu toda a gente. Agora estão a voltar aos poucos”, diz.
A pequena porta que dá para o seu atelier tem mais de 100 anos. Lá dentro, o forno está ligado. Imaginamos o calor que fará no Verão: “Cinquenta e tal graus, às vezes. Não se consegue aqui estar.”
Isabel Ferreira faz brincos, ganchos e taças inspiradas nas flores das estevas. Difícil era não fazer, porque a serra está cheia delas, e nesta altura do ano estão bem floridas. Salpicam os campos de branco, como se fossem flocos de neve. De perto são pequenos ovos estrelados. Mas o melhor nem é isso, que já não é nada pouco. O melhor é o cheiro que libertam e que se cola ao nariz, enquanto atravessamos barrancos e linhas de água.
Este ano choveu pouco. As ribeiras estão pouco fartas. Saltam-se de um salto. Mas a serra ainda está verde. Mais uns meses e toda esta paisagem mudará de cor. Mais uns meses e o calor tornará esta peregrinação um acto de sacrifício e dor. Os caminhantes que agora se vêem muito de vez em quando terão desaparecido quase por completo.
Aldeias brancas
Em tudo me parece que há emigração! Já reparaste? Os homens válidos, a rapaziada, estão na França, na Austrália, na Venezuela, no Canadá. Emigraram. Abandonaram as alfarrobeiras, as amendoeiras, as oliveiras, a sua terra (…) O sargaço, o tojo, o alecrim, o carrasco, o carapeto, o aro, todo o nosso mato se desenvolve e cresce, parecendo querer mandar dizer aos lobos que voltem…"
(in Conversando a vida toda, José Cavaco Vieira: Dezembro de 1967)
(in Conversando a vida toda, José Cavaco Vieira: Dezembro de 1967)
Em Afonso Vicente há agora seis habitantes. Já chegou a haver 400. Em frente à associação recreativa estão António Silvestre e José André. Dois dedos de conversa à espera que se abra a porta, o sol a bater quentinho na cara. Balurcos, aldeia com mais movimento, fica a 12km. Mas há 30 anos que António Silvestre não vai lá. Passa a maior parte do seu tempo aqui, onde a pessoa mais nova tem 62 anos e onde há 40 não nasce ninguém (informações recolhidas nesta varanda, à espera de um café que não vem nem virá).
Não repetimos as mesmas perguntas em Corte Tabelião, uma aldeia que parece um pátio, toda virada para um larguinho, com um forno comunitário onde talvez ainda se coza o pão em ocasiões especiais. Mas o cenário é o mesmo: casas totalmente fechadas, ninguém na rua, excepto um ou dois velhotes a apanhar sol.
Será sempre um pouco assim, às vezes, muito assim. Aldeias abandonadas, brancas e silenciosas, com um ou outro cão a ladrar do lado de dentro dos quintais, pouco habituados à passagem de estranhos. Aldeias a cheirar intensamente a flor de laranjeira. Atravessamos pomares de que já ninguém cuida e até tiramos um ou dois frutos das árvores para matar a fome e a sede de uma só vez. Atravessamos hortas ladeadas por valados, que aqui há muita pedra. Diz-se bom dia ou boa tarde a quem quer que se cruze no caminho.
Ribeira da Foupana: deixamo-nos estar nas pedras a ouvir a água a correr. Come-se fruta e sanduíches preparadas por António Faustino, do turismo rural de Balurcos, onde ficámos na noite anterior. Os pássaros que cantem e façam a agitação que quiserem, que na próxima meia hora ninguém nos tira daqui. Quem quer molha os pés, quem quer dorme em cima das pedras, quem quer fica a observar o que nos espera do outro lado da ribeira: uma subida íngreme, com o verde-escuro a acalmar o verde mais claro das colinas, umas atrás das outras.
Entra-se nas Furnazinhas por cima, com a aldeia aos pés. Aldeia não, monte. O senhor Manel aparece na Casa do Lavrador, de João Henriques, trazendo na mão um ramo de marioilas, que fazem também um bom chá. “Seca-se e dá para o ano inteiro.” Depois vai buscar ramos generosos de hortelã-limão e poejo. Aqui tudo se dá.
João Henriques diz que em finais dos anos 1960 toda a gente emigrou para a Alemanha, França, Suíça. O seu alojamento depende praticamente só dos caminhantes da Via Algarviana: holandeses, alemães e austríacos, sobretudo, também alguns portugueses. No ano passado terá recebido umas 200 pessoas.
Fez tropa em Lourenço Marques, e lá conheceu a sua mulher. Depois foi para Angola, mas decidiu partir mesmo nas vésperas da independência, “já aquilo estava a fogo em Luanda”. Trabalhou em Faro, como técnico agrícola. “Agora voltei às raízes.” A sala onde jantamos frango guisado era onde o avô tinha os animais; na zona onde é agora a cozinha guardavam-se as rações. O alojamento tem quatro quartos e tornou-se num negócio de família.
Olívia não é da família mas quase, porque faz na Casa do Lavrador tudo o que é preciso: limpezas, jantares, pequenos-almoços… Não sai de Furnazinhas há anos, nem sabe dizer quantos. Os dois filhos é que a vêm visitar. Um deles é chef no hotel de Altura onde estudou, mas dizem que ela cozinha ainda melhor que ele. Comida da serra, claro.
Quando precisa de alguma coisa que não encontre cá, o marido vai a Castro Marim, na carrinha que todas as terças-feiras vem buscar quem lá queira ir. Não há posto de saúde, mas qualquer problema aparece o INEM, e mensalmente vem uma médica que mede a tensão, receita medicamentos, faz um acompanhamento geral. E há também a carrinha que traz pão, peixe, carne e alguns artigos de mercearia.
Na aldeia ainda há casas em grauvaque, a que chamam pedras vivas, ou xisto, também chamado de piçarra. Mas Joaquim, marido de Olívia, pedreiro, diz que há uns 40 anos que não se fazem assim. “Dá muito trabalho. Agora é só cal.”
A casa onde António Gomes Peres trabalha é em pedra. É cesteiro desde os 11 anos, leva 60 de profissão. Tem umas canas a um canto, um pedaço quadrado de cabedal em cima da perna para não se cortar com o vime, uma cadeira baixinha onde se senta. “Não há pontas à vista”, mostra com orgulho o cesto que está a fazer. Cada cesto leva quatro canas, cada cana leva uma hora a preparar. Um cesto com tampa, destes que está a fazer agora, é um dia e meio de trabalho. Recebe até encomendas do Japão, através do projecto TASA, que recupera o artesanato tradicional com ajuda de novos designers. Mostra um papel onde estão os exemplos de cestos que a clientela nipónica pretende. “Aquele era para ir para lá mas ficou muito barrigudinho e não passou no teste.”
António Gomes Peres saiu da aldeia para fazer a tropa em Moçambique. “Quando voltei nunca mais saí daqui.” Quem quiser que venha ter com ele. Deu um ano de aulas em Castro Marim, mas não fez discípulos. “Aprenderam, faziam bem feito, mas ninguém continuou”.
Mais sorte teve Manuel Henriques, 58 anos, que tem uma melaria umas casas adiante, onde trabalha com os seus dois filhos, David e Tiago, que depois de tirarem cursos de apicultura se dedicaram ao negócio. “Agora está na altura de tirar o pólen”, diz.
A “bonança, a força das flores, já chegou, vem de leste para oeste”, explicam os homens da aldeia. E as colmeias da zona, dispersas entre os campos de rosmaninho, entram em grande actividade.
Manuel Henriques tem 250 colmeias. No ano passado produziu mais de três mil quilos de mel. “Temos o melhor mel do mundo, não tenho problemas nenhuns em dizê-lo.” Mostra os favos recheados, que podem ser mastigados directamente. Mas o seu tesouro é outro. Numa das salas da melaria está uma mesa comprida com um enorme tabuleiro cheio de pólen, retirado das estevas, e tão amarelo como o centro das flores. Outros 13 estão numa máquina feita especialmente para a secagem. “Este ano o tempo não tem ajudado: se tirar 120 quilos de pólen já é muito.” Vende cada quilo a 12 euros. “Isto é o meu ouro”, diz orgulhoso.
Entre Furnazinhas e Vaqueiros os pinheiros mansos (“projectos”, como lhes chamam por aqui, por terem sido plantados com financiamento comunitário) rivalizam com os sobreiros. O guia da Almargem indica que esta zona é sobrevoada por dezenas de espécies de aves: a toutinegra do mato, a águia d’asa redonda, o papa figos, o abelharuco... Mas não venham dizer a Cristina Lourenço, de 49 anos, como é tão bom ouvir o seu chilrear. “Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir gente.”
Trabalha no centro paroquial de Vaqueiros, que ocupa os idosos durante o dia, dá-lhes refeições, ajuda-os na higiene. “Para esta geração, o pão para a semana dá; para a minha, já não serve. Sinto necessidade de ter pessoas da minha idade com quem falar, de ir ao cinema.” De vez em quando vai a Faro e a Tavira para mudar de ares e ver a movimentação.
Vaqueiros é uma animação perto de tantas outras aldeias à volta (é a mais povoada da freguesia). Mas não chega a ter 60 habitantes. O número está constantemente desactualizado, porque os funerais são uma rotina. Cristina Lourenço não tem esperanças de que a situação se altere muito. “Acho muito difícil haver fixação aqui. Como não há postos de trabalho, também não há um supermercado, uma sapataria… Está mesmo tudo desertificado. Toda a gente tem família fora.”
Ela também chegou a ir. Faro, Lisboa. Depois voltou porque era aqui que o marido queria viver e havia financiamento para a agricultura. “Viemos um bocado iludidos.”
Na Casa de Pasto Teixeira, a dona Rita garante um ponto de encontro à aldeia. Fala com os estrangeiros por gestos e todos se entendem. “Não deixo ninguém ir embora sem comer nem dormir.” Toma conta do alojamento da filha, que só vem aos fins-de-semana, como muitos dos que saíram. E faz as refeições para quem pernoita. Conta que a maior parte dos habitantes emigraram para França ou Alemanha (como foi o caso dela, que viveu dez anos perto de Dusseldorf). Quando voltam, vêm com a reforma e constroem uma casita. “Se for ver, a aldeia tem muita casinha nova e prédios bonitos.” Mas “velhotes para contar histórias já há poucos”. “Têm morrido todos.”
Manuel José, 83 anos, também foi dos que regressou à terra. Foi em 1965 para a Alemanha com contrato e ordenado. Esteve lá quase 30 anos. Não veio rico. “Só tenho os caminhos e o corpo.” Ou seja, não tem terra. Todas as manhãs anda duas horas por esses montes fora e é numa dessas caminhadas que o encontramos, com sobreiros a perder de vista. E diz quem sabe: “Este mês é o mais bonito, com as estevas e as tremocilhas amarelinhas todas em flor.” O mês em que encontramos “a indizível verdura das folhas novas e tenras”, como no poema de Sophia de Mello Breyner.
Burros há muitos
Quando entramos num café no Cachopo encontramos Manuel Vicente sentado ao balcão. Perguntamos-lhe se é ele o albardeiro. Diz que sim, mas que “burros agora não há muitos”. “Só os de duas patas.” Mais tarde passaremos pela sua oficina: uma única divisão com uma janela para a rua, albardas e molins a um canto, uma pequena motorizada a outro. Nunca quis passar a sua arte a ninguém e agora que tem 89 anos também não vai ser diferente. “A malta nova já sabe ler. Quer é ter empregos. Eu não sei ler e o culpado fui eu.” Em vez de ir para a escola, foi tomar conta dos porcos.
Ele queria ser pedreiro, “mas o pedreiro ensinou” o primo mas não a ele. Aprendeu o ofício de albardeiro em Tavira. Bastou-lhe um mês para dominar com alguma mestria a técnica, e não era difícil arranjar clientes. “Ia pelos montes trabalhando.” Mostra um molho de palha de centeio, com que se forram os molins: “É a mais resistente. Mas agora já ninguém semeia nada.” Também já poucos burros há para dar uso às albardas. “Bestas havia por aí todos os dias. Agora há por aí alguma?” Haver até há, mas são as tais de duas patas.
Por isso, a maior parte das albardas que Manuel Vicente faz (só durante a manhã, que é preciso descansar) são para decoração. Ainda há “quem venha de longe” fazer-lhe encomendas: São Brás de Alportel, Loulé, Portimão. “Aqui não gastam.” As carneiras vêm de São Brás, em cima é pele de porco ou de javali, que antigamente lhe vendiam nos talhos. Fazia muitos molins para os cavalos da GNR, todos decorados, com espelhinhos e flores bordadas, como alguns que ainda aqui tem. Os tosquiadores ainda lhe vendem a rabada dos cavalos para terminar em beleza, com os pêlos apontados para o ar.
Se tivéssemos sido rigorosos, teríamos deixado o Cachopo em direcção a Barranco do Velho, quase 30 quilómetros e oito horas de subidas e descidas em plena serra do Mú, ou do Caldeirão, como se preferir, com vales e linhas de água, com sobreiros e medronheiros, com vistas esplêndidas. Mas vamos de um salto para o Hotel Tia Bia, também ao encontro da serra, mas nos pratos que Nuno nos serve: croquetes de cabeça de javali, sopa de legumes com coentros e cogumelos, javali guisado com hortelã e funcho, com legumes assados, tarte de amêndoa. Um medronho a fechar.
É ele e a mulher, Cátia, ambos de 36 anos, quem tomam conta do hotel e restaurante, mesmo à beira da estrada. A filha, Serena, está a tentar concentrar-se nos trabalhos de casa, feitos ao balcão. Não encontra a borracha, quer uma pastilha, perdeu o afia... Uns seis anos irrequietos, como os seis anos normalmente são. Damo-nos conta das poucas crianças que encontrámos até aqui.
É Cátia quem conta que o hotel começou por ser um abrigo de montanha, com dois quartos e o único telefone das redondezas. Barranco do Velho é um local de passagem da EN2, que liga Faro a Chaves ao longo de 738 quilómetros, e durante a sua construção não havia muito mais onde ficar por estas bandas. “Este era o único ponto de paragem no meio do nada. Até ao Alentejo não voltava a haver nada assim.” Dizem que a tia Bia, que mais tarde se ocupou do hotel e lhe deu nome, tinha muitos “amigos” entre os camionistas que aqui pernoitavam ou paravam para comer, conta Cátia a rir. “As pessoas de 80 anos ainda choram quando falam dela.” Era uma mulher simpática, com personalidade forte.
Nuno é de Barranco e quando, aos 17 anos, veio ajudar a servir à mesa ficou com a certeza que o seu futuro passava pelo lugar onde estava o seu passado. “Fui ganhar conhecimentos para o litoral, sempre com o encanto da serra”, conta. “No ano passado os donos cansaram-se disto e foi a minha oportunidade.” Cátia, de Loulé, já estava encantada também, não teve sequer que a convencer. Ela era chefe de sala na Quinta do Lago, ele chef de cozinha. A dupla funciona na perfeição. De resto, os negócios da região são frequentemente familiares. “Decidimos subir, com armas, bagagens e uma filha.”
Aqui ainda se respeita o professor, a tradição, valoriza-se a boa educação, conta Cátia, enquanto o marido vai para a cozinha preparar o jantar. “Roupas novas? Não se sente necessidade de as comprar. Mas não prescindo da minha manicure em Salir!” Ganha-se menos dinheiro, sim, mas também se gasta menos e aproveita-se melhor o tempo.
Mas nem sempre é fácil a vida na serra, comenta. “Há pouca dinâmica porque há pouca juventude. Os políticos falam na desertificação mas nada foi feito para que os jovens, que são quem tem novos projectos, voltassem à terra. Os de idade querem é estar sossegados. Há as casas do medronho, do pão, dos frutos secos, da cortiça, o moinho – estão construídos, têm tudo para se trabalhar, mas não há lá ninguém.” Ela tem ideias sobre formas de dar a volta à questão: dinamizar as produções biológicas, aproximar as crianças “do que temos de melhor, porque a maior parte do Algarve é serrano”. “Havia um preconceito das pessoas do litoral em relação às da serra, mas não há nada de mais genuíno.”
O casal quer “pôr Barranco do Velho no mapa”. “Em qualquer sítio da serra é complicado para os turistas saberem o que se passa à volta porque ninguém fala inglês. Aqui já podem conversar um pouco mais.” E a prova disso é a forma como serve animadamente o grupo de caminhantes estrangeiros que agora se senta para jantar.
Robert Keukens é um ex-advogado holandês de 76 anos. Todas as primaveras e outonos põe-se a andar para algum lugar. Já foi de Sevilha a Santiago, de Oviedo a Santiago, e outros percursos em Espanha, França, Itália. “Caminhar é uma forma de vida”, diz. “Comecei a andar por viver numa zona linda, e ao fim de umas horas de passeio pensava 'que pena ter de voltar. Era bom continuar, um dia após o outro'.” Ganha-se sossego e cabeça limpa. “Temos tempo de pensar quando se caminha assim. Não precisamos de nos preocupar com nada a não ser em ir de um sítio ao outro, comer, dormir. Não há mais problemas.”
Os 300 km da Via Algarviana não o assustam, nem à sua mulher Elizabeth. Está em condições de dizer: “A natureza é linda, as pessoas muito simpáticas, mas estou chocado com a pobreza. As aldeias são ruínas. Porque não há agricultura? As laranjas são muito melhores do que as da Holanda. Porque não exportam para lá? Eu sei que há aqui um problema de escala, mas parece que quem fica não tem iniciativa.”
Já passou tempo suficiente em Portugal para conseguir trocar algumas palavras em português e ler o jornal (dias depois iremos encontrá-lo em Messines à mesa de um café com o Diário de Notícias na mão). E também para comentar: “Gosto da forma portuguesa de ser educado. É incrível. No caminho não nos vêem até que chamemos por eles. E aí desfazem-se em atenções – mudam, como uma flor a desabrochar.”
Os segredos de caminhar
Quase metade do caminho de Salir para Alte faz-se com a Rocha da Pena à direita. Não nos deixemos enganar pela palavra “Rocha” – é na verdade uma montanha com 479 metros de altura e centenas de espécies de plantas, incluindo orquídeas que não há em mais lado nenhum. Andamos e andamos e a Rocha da Pena sempre ali, imponente.
“É um dos segredos de caminhar: uma aproximação lenta às paisagens que progressivamente se tornam familiares. É como o convívio regular que faz crescer a amizade... Quando andamos, nada se move, só imperceptivelmente as colinas se aproximam, a paisagem se transforma. Se formos de carro ou comboio, vemos a montanha a vir ter connosco. O olhar é rápido, vivo, crê ter compreendido tudo.
Quando andamos, nada se desloca verdadeiramente: a presença instala-se lentamente no corpo.” Fédéric Gros, no seu livro Marcher, une philosophie (Caminhar, uma filosofia) escreve que “a lentidão do caminhante não é exactamente o oposto da velocidade. É antes a extrema regularidade dos passos, a sua uniformidade.”
Quando andamos, nada se desloca verdadeiramente: a presença instala-se lentamente no corpo.” Fédéric Gros, no seu livro Marcher, une philosophie (Caminhar, uma filosofia) escreve que “a lentidão do caminhante não é exactamente o oposto da velocidade. É antes a extrema regularidade dos passos, a sua uniformidade.”
E para caminhar basta um corpo, espaço e tempo. “Caminhar não é um desporto”, é a primeira frase do livro. Não se fala em resultados, nem em números, nem em pontuações: “O caminhante dirá que caminho tomou, em que direcção se encontra a paisagem mais bela, a vista que se tem de certo promontório.” Não precisamos de estar totalmente sozinhos, mas precisamos de silêncio. Num grupo de três ou quatro pessoas “ainda é possível andar sem falar (...) Mais do que quatro, é uma colónia, um exército em marcha (…) Mais do que cinco, é impossível partilhar a solidão”. “Caminhar não é um desporto, mas uma vez que se começa, já não se consegue ficar parado.”
O Algarve não é aqui. Isto é, para os habitantes serranos, o Algarve é o que é para quase toda a gente: o litoral e as suas praias. A serra é outra coisa. Aqui diz-se “lá no Algarve”. Mesmo quando é uma questão de apenas vinte quilómetros. Há vários pontos do caminho de onde se avista ao longe o mar, de onde se avista “o Algarve”. Como por exemplo entre Barranco do Velho e Salir, uma zona de transição para o barrocal – a chamada beira-serra. A terra já é avermelhada e barrenta.
Graciete Valério também não consegue ficar parada. Aos 81 anos continua a tomar conta da Casa da Mãe, um alojamento em Salir, – nasceu aqui, nesta mesma casa, que era da sua avó. É ela quem faz as compotas servidas ao pequeno-almoço, as rendas à volta dos guardanapos, as toalhas com bordados, de mesa e de mãos, os licores, os quadros com flores que tem na parede... Ainda tem tempo para responder a emails e navegar pelo Facebook, no iPad ou no iPhone.
Não viveu sempre em Salir. Aos vinte anos, quando chamaram o marido para ajudar a construir o metropolitano de Lisboa, lá foram os dois. Ficaram 11 anos, até que a mãe lhe falou dos vizinhos que estavam todos a emigrar para França. “Aquilo entrou-me bem na ideia”, conta no espaço onde tem o seu escritório, sentada numa cadeira preta de rodas, girando de um lado para o outro. “O meu marido foi primeiro, com uma carta de chamada. Quando veio cá nas férias, eu insisti que queria ir com ele.” E ninguém a deteve. Dividiram um quarto com outro casal, separados por uma cortina. “Em Lisboa já era diferente [de Salir], mas aquilo em Paris dava-me uma admiração: os moços aos beijinhos na rua. O meu marido dizia 'não olhes'!”
A amiga trabalhava para a mulher de um ministro, que pôs um anúncio no jornal para lhe arranjar trabalho. “Nem queira saber os telegramas que recebi. Fiquei a trabalhar com a neta da Nina Ricci [a da casa de moda], a cuidar dos meninos dela.” Tem a fotografia do mais novo, Adrien, ao lado das da sua família. “O miúdo dava ares a mim, ia na rua e pensavam que era meu filho.” Acompanhava a família Ricci para onde quer que fosse – “Se eles iam para a Suíça eu ia, se iam para Itália, eu ia, se iam para Inglaterra, eu ia.” A casa ficava no Quai Voltaire, em frente ao Louvre. O ex-Presidente Jacques Chirac foi lá algumas vezes jantar – “a polícia fechava a rua”. E no terceiro andar morava Rudolf Nureyev, um dos maiores bailarinos do século XX. “Às vezes, quando ele vinha da Opera, à meia-noite, dava ceias e eu ia ajudar a servir.”
Voltou de Paris para Salir quando uma das suas filhas engravidou. A vila continuava sem gente nem trabalho. Um francês sugeriu-lhe abrir o turismo. “Entrou-me aquilo bem na ideia, 'olha não está mal'.” Dá dormida a 25 pessoas – muitas delas, caminhantes da Via Algarviana. “Não havia nada em Salir mas agora toda a gente aluga. Viram e invejaram-se.”
Negócios da serra
A saída de Salir é feita por hortas e pomares, uns abandonados, outros arranjados. Caminhamos sobre o maior aquífero do Algarve: Querença-Silves, 320 quilómetros quadrados de água debaixo do solo. Por isso tantas noras, poços, fontes, fontanários. Está tudo parado, esqueletos de uma época que já não voltará, mas podemos imaginar a actividade que já passou por estas bandas.
Fazemos um pequeno desvio para Portela da Nave e visitamos o Idálio Ramos, da Queijaria Martins. Tem 34 anos e foi ele quem fez nascer o negócio. “Aos 13 anos comprei duas cabrinhas com o dinheiro que me davam… Vou trabalhando e vou construindo uma coisa que é minha, pouco a pouco. Todos os dias a gente faz coisas novas.”
Queijarias ilegais “há muitas, cada vez mais”, mas com tudo certinho só a sua, garante. Tem 150 cabras, mas isso não chega para a produção e ainda compra leite aos pastores – “mil litros por dia, quando é altura de haver muito”, como agora na Primavera.
Na fábrica, os dois depósitos de refrigeração (dois cilindros enormes em inox) estão cheios de leite. Depois vai a cozer durante três horas e meia, até aos 90ºC, em banho-maria. Passa para panelas, para arrefecer. “Quando chega aos 50º juntamos o cardo, para coalhar. Depois, partimos a coalhada e tiramos o soro. Utilizamos uma parte para alimentar as porcas – tem muita proteína.” De seguida enchem-se os moldes, um a um. “O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maiores.” Mas não foi imediatamente que conseguiu que os seus queijos de cabra ficassem perfeitos. “A minha avó fazia o de ovelha mas as temperaturas são diferentes. Fomos falando com as outras pessoas mais velhotas para aprender.”
O licor feito por Albertina Madeira
Quem entrar na queijaria não reconheceria um dos grandes problemas da zona: há entre 60 e 70 óbitos por ano para entre 10 e 15 nascimentos. Ontem houve dois funerais, anteontem outros dois… Salir é uma das maiores freguesias do país em termos de área – tem 185 km quadrados, mas apenas 2765 habitantes. Aqui “somos quatro trabalhadores, só malta jovem”.
Abre as portas do estábulo e lá estão as cabritas, castanhas e brancas, a comer. São floridas sevillanas porque produzem quatro vezes mais que as algarvias e são mais dóceis, explica. “As algarvias são mais stressadas.” Quando saímos, elas parecem querer despedir-se, começam a balir alto e bom som. Idálio abre-lhes a porta e elas correm para o exterior. “É mais difícil aturar pessoas do que aturar animais.”
Retoma-se o caminho que mais adiante se torna num largo rio de brita, porque o presidente da junta quis alargar a estrada. Anabela Santos está inconformada. Nas obras, retiraram as indicações da rota, e o percurso está descaracterizado. A Via Algarviana envolve 11 concelhos e 21 freguesias. Não foi fácil pôr todos de acordo sobre o investimento que teria de ser feito, nem é fácil garantir que todos cumprem aquilo com que se comprometeram – apesar do movimento que a Via trouxe a esta parte do Algarve –, explica a coordenadora da Almargem.
Os medronheiros pelo caminho são uma das razões por que aqui se rivaliza o medronho com Monchique. Urze, giesta, tudo é mais rasteiro deste ponto alto, onde a vista se perde na serra e faz mais frio. Por isso as plantas não crescem tanto. Atentemos à flora: orquídea testículo de cão, bufa de sogra (um fungo enorme), tremocilha (bom para dar azoto ao terreno), flor dos macaquinhos dependurados...
Depois da descida, uma zona de floresta. Atravessa-se um barranco, depois outro. A terra já é vermelha. Passa-se a Estrada 124 e estamos dentro no barrocal. Pomares de sequeiro, com as suas oliveiras, figueiras, amendoeiras. As alfarrobeiras são centenárias, vê-se pela grossura dos troncos, com formas contorcidas. Em Cerro de Cima, Maria Guerreira está a tirar ervas das pedras junto a uma alfarrobeira que diz ter mil anos. “É do princípio do mundo.” Tem 83 anos, toda curvada para o chão. Nos quintais há cabaças penduradas a secar. À beira da estrada, pequeninas flores azuis: “A borragem dá coragem”, diz-se. Podemos comê-las.
Os valados em calcário estão bem conservados, ainda que nunca se veja ninguém a fazer a despedrega (tirar a pedra da terra para fazer os muros). Dividem os terrenos pelos montes acima, umas linhas cinzentas, como veias.
Na esplanada de um café em Benafim come-se uma bifana e metemo-nos na conversa dos agricultores na mesa ao lado, que explicam: “Com a lua nova não se pode semear. Certas coisas aguilhotam [espigam]. Cebolas: chegam a um certo ponto, aquilo espiga tudo. [A melhor lua] é o minguante. Isto são os ditados antigos.” Outro acrescenta: “A batata pode ser semeada com a lua nova, a batata pode. Mas não pode ser colhida com a lua nova porque apodrece. ‘Tá a ver?”
Alte aí!
Para entrar em Alte é preciso passar pelas Fontes Grande e Pequena, por onde agora passeiam turistas estrangeiros já com idade avançada. Escuta-se o correr da água e imagina-se a agitação que não deve ser no Verão, com as crianças e os piqueniques.
Alte é quase uma metrópole no meio da serra, com lojas, igrejas, cafés (vale a pena uma paragem na bela varanda do Água Mel, onde o dono, José Canelas tenta recuperar receitas antigas – “se as pessoas não as comerem aqui, onde é que as comem?”, diz).
De onde vem este nome, Alte? Quem conta é Albertina Madeira. “Havia uma senhora morgada, dona Antónia, que vivia na Quinta do Freixo. E todos os domingos ela ia ouvir missa a Santa Margarida, uma aldeia aqui da freguesia. Havia ali uma igreja, que agora está em ruínas. Ela ajudava o padre, e ele não dizia missa sem a senhora chegar. Mas num domingo, a senhora atrasou-se imenso e o padre disse a missa. E quando ela chegou aqui a altura de Alte viu muitas pessoas virem de Santa Margarida e perguntou-lhes: 'Então, de onde vêm?', 'Ah, fomos ouvir missa. Como a senhora demorasse, o padre disse a missa'. Então ela volta-se para os criados e diz: 'Alte aqui. Aqui vai ficar uma igreja e ela será sempre de uma freguesia.' Era 'alto aqui', mas com o passar dos tempos foi deturpado e agora só se diz Alte.”
Albertina Madeira é directora do jornal Ecos da Serra, “mas sem cultura nenhuma para isso”, ressalva. Assina os seus artigos como Serranita. O jornal, com uma tiragem de mais de mil exemplares, segue para assinantes espalhados na Europa, África, América, Austrália. Há uns cinco anos, Albertina partiu o braço, não podia fazer nada, e começou a recordar as coisas de quando era pequenina. Ou seja, as coisas de há 93 anos. “Vou escrever as minhas recordações. O que existia nesta rua, as pessoas, o que faziam, essas coisas. E agora estou nas tradições de Alte: o que se fazia no Carnaval, nas Janeiras, no 1.º de Maio.”
E o que se fazia no Carnaval? “Os moços andavam à espreita das raparigas namoradeiras para as enfarinhar. Punham farinha na boca, nos cabelos, elas viam-se aflitas. Gritavam mas no fim gostavam. Eu nunca fui enfarinhada. Às vezes queimavam pimentos e punham à porta das pessoas. Entrava uma fumarada, começava-se a tossir. 'Mas quem foi, quem não foi?' As pessoas ficavam todas marafadas, e os que estavam à esquina da rua fartavam-se de rir.”
E no 1.º de Maio? “Juntavam-se as pessoas amigas e a família e iam à Fonte Grande, passavam lá o dia. Punham as toalhas no chão e os seus bolos, a galinha cerejada, o arroz tostado – que já está cozidinho, põe-se a gema por cima, pedacinhos de linguiça e vai ao forno para ficar tostadinho por cima, é tão bom.
Havia as carrasquinhas, as cavacas, o pão-de-ló, e os bolos folhados que ninguém mais sabe fazer. Em São Bartolomeu de Messines fazem mas não se compara. São trabalhosos porque faz-se a massa, em dobradinhas, depois estende-se, põe-se manteiga e banha e com um pauzinho vai-se enrolando, enrolando, enrolando e tira-se [o pau] e fica um rolo compridinho. Depois com um fio – não pode ser com a faca – vai-se cortando aos pedacinhos. Põe-se no tabuleiro, vai ao forno e são passados por açúcar com um bocadinho de água. Ai, são tão bons. Quase todas as pessoas aqui de Alte faziam. Agora, só duas sabem fazer. Só em dias de festa.”
E no 1.º de Maio? “Juntavam-se as pessoas amigas e a família e iam à Fonte Grande, passavam lá o dia. Punham as toalhas no chão e os seus bolos, a galinha cerejada, o arroz tostado – que já está cozidinho, põe-se a gema por cima, pedacinhos de linguiça e vai ao forno para ficar tostadinho por cima, é tão bom.
Havia as carrasquinhas, as cavacas, o pão-de-ló, e os bolos folhados que ninguém mais sabe fazer. Em São Bartolomeu de Messines fazem mas não se compara. São trabalhosos porque faz-se a massa, em dobradinhas, depois estende-se, põe-se manteiga e banha e com um pauzinho vai-se enrolando, enrolando, enrolando e tira-se [o pau] e fica um rolo compridinho. Depois com um fio – não pode ser com a faca – vai-se cortando aos pedacinhos. Põe-se no tabuleiro, vai ao forno e são passados por açúcar com um bocadinho de água. Ai, são tão bons. Quase todas as pessoas aqui de Alte faziam. Agora, só duas sabem fazer. Só em dias de festa.”
Lê o artigo que está a preparar para o Ecos sobre o 1.º de Maio: “Namorava-se, dançava-se, cantava-se e se fosse necessário dar de corpo (sabe o que é dar de corpo? É ir verter águas, ao quarto de banho), bastava subir-se ao serro da Galvana e por detrás de alguma moita ou arbusto fazia-se de retrete. Quem não fosse prevenido com um pedaço de papel ou jornal, uma pedrinha ou folha também podia fazer das vezes de papel higiénico'. Mesmo quando era proibido comemorar o 1.ºde Maio, aqui fez-se sempre e nunca ninguém nos disse nada. Passámos ilesos.”
Sai-se de Alte com o cheiro da flor de laranjeira. O céu está negro mas dizem que hoje não chove. Pássaros a cantar, galos a cantar, uma moto a passar ao longe.
Algumas casas têm sapos de loiça à porta e já sabemos o que isso quer dizer – nem sempre os forasteiros são bem-vindos, sobretudo se forem de etnia cigana. Caminha-se um pouco com a auto-estrada à direita, mais adiante pela estrada fora, com carros a passar depressa. Compensa a entrada na floresta com a ribeira Meirinho ao lado. Parece Sintra, com musgo e tudo.
Com a proximidade de Messines começa a aparecer o grés, que contrasta com as paredes brancas ou por caiar. A Igreja Matriz tem a sua imponência, com a sua fachada barroca e as colunas em toros torcidos.
A vinha da quinta
A caminhada continua. Havendo calor, será que se resiste a um mergulho na barragem do Funcho? Um espelho de água que nos traz o céu para a terra. Colinas de pinheiros mansos, rosmaninho roxo e verde nas bermas, a esteva por florir, o medronho já a enfeitar as árvores, mas à espera do Outono para ficar maduro.
Na Quinta da Vinha, no concelho de Silves, não é medronho que se produz, mas vinho. José Manuel Cabrita seguiu as pisadas do pai, talvez a filha, Andreia, siga as suas, se o acordeão não lhe tocar mais alto.
É ela quem nos acompanha na visita. Conta que o pai quis recuperar uma casta algarvia que estava em desuso, a Negra Mole, mas usam também a Castelão, igualmente algarvia, entre outras. A vinha da quinta tem 6,6 hectares mas como isso não é suficiente para a produção – para além da marca Cabrita também sai daqui vinho de outros produtores – arrendam uma área igual de vinhas próximas.
É ela quem nos acompanha na visita. Conta que o pai quis recuperar uma casta algarvia que estava em desuso, a Negra Mole, mas usam também a Castelão, igualmente algarvia, entre outras. A vinha da quinta tem 6,6 hectares mas como isso não é suficiente para a produção – para além da marca Cabrita também sai daqui vinho de outros produtores – arrendam uma área igual de vinhas próximas.
Quando entramos no “laboratório”, Joana Maçanita está a fazer testes. Conta que o lote de brancos de 2015, 100% Arinto, está em estágio em barrica – “é uma coisa única”. “Decidimos não misturar [com outra casta] porque tem muita componente atlântica. É um vinho muito giro.” Ou seja, “não é entediante”. “De vez em quando aparecem estes vinhos assim.”
Aqui o clima é mais fresco do que em várias outras quintas do Algarve, e por isso fazem a colheita em Outubro, explica a enóloga. E as uvas resultam em vinhos com uma “concentração com elegância”. Os Negra Mole “são vinhos sem cor – há uvas brancas, tintas e rosadas no mesmo cacho”. Tem altos níveis de acidez e altos níveis de álcool, com textura, mas não demasiada, explica Joana Maçanita e o também enólogo Dinis Gonçalves.
Depois de as vinhas serem abandonadas, na década de 1990, muitas cooperativas fecharam. E quando a vinha voltou a ser plantada apostou-se nas castas internacionais, “nobres”, “que se deram bem por aqui”, contam. Agora, está a voltar-se às origens. “Fomos pioneiros nisso de pegar na Negra Mole.” Foi uma aposta com retorno pouco seguro: “Nos primeiros anos, vindimámos e eu nem sabia onde pôr o vinho. Em 2012 decidiu-se meter em barrica e ficou lá esquecido, ia sendo empurrado para o lado. Dois anos depois, fomos provar: parecia Pinot Noir!” Ainda antes de chegar ao mercado, parte do vinho já estava vendido. “O senhor Cabrita alugou uma vinha só de Negra Mole. Agora é deixá-lo fazer-se sozinho, intervir o mínimo e o vinho vai-se revelando.”
A maior parte das vendas dos Cabrita são para a região, entre 10% e 15% para exportar e 3% ou 4% para Lisboa. No ano passado, saíram daqui 20 mil garrafas de branco, 15 mil de rosé e 23 mil de tinto.
Um dos restaurantes onde os podemos encontrar é A Charrete, em Monchique. O dono, José Pedro, fez de uma antiga mercearia um dos pontos obrigatórios num possível roteiro gastronómico da serra. Foi com 11 anos trabalhar para a loja – “nem dormi nessa noite com a excitação de ir trabalhar para a vila!”. Em 1974, conseguiu comprá-la com o dinheiro que tinha juntado para levar para a tropa. Quatro anos depois, a mercearia passou a bar, pastelaria, restaurante, “era tudo”. “Mas fui puxando para o lado da restauração”. Sempre com a preocupação de oferecer comida local: cozido de couve, feijão com arroz e castanhas, milhos com feijão, tudo a acompanhar carnes de porco e enchidos; bolo do tacho (acompanha com medronho e melosa). Só o pão, assado por uma vizinha em forno de lenha, servido com cenouras em azeite e alho, ou lombo de porco curado em banha vermelha, já justifica uma visita.
A cozinheira, Graciete, está cá desde o primeiro dia. “Antigamente as papas de milho serviam para acompanhar tudo: figos, sardinhas, água mel, torresmos, toucinho, peixe frito”, conta José Pedro. “E à noite, o cozido de couves. Ou calatroia, com feijão e toucinho, e tudo o que se tivesse à mão.” O porco era rei, mas nem sempre havia. Ainda hoje, contam-se as luas para fazer a matança: “Não pode apanhar a transição, senão estraga a carne. ‘Com lua cheia é boa matação’”. Era a verdadeira festa de família: “Umas trinta e tal pessoas para comer. No Natal ninguém fazia nada, ninguém ligava nenhuma.”
O anfitrião fala de outras tradições da mesa, como as “batatas de cu para o ar: cozidas, com azeite, alho, orégãos e sal, tudo a servir-se directamente do tacho [e daí o nome]. As papas de milho aqui são duras e antigamente todos comiam da plengana [malga que vai à mesa]. Quando se punha pratos comentava-se que era para controlar o que as pessoas comiam.” Não caía bem, portanto.
A saída de Monchique é quase impiedosa. Faz-se a subir, primeiro pela vila, depois por meio de sobreiros, quatro quilómetros sempre em esforço. A família que habita o Convento do Desterro convida sempre a entrar para pedir moeda no final. Está tudo em ruínas, uma desolação.
Monchique é mais fresco que o resto do Algarve e aqui a Primavera chega mais tarde. Há ciprestes e sobreiros mas também muitos eucaliptos – às vezes vêem-se as feridas nas colinas provocadas pelo seu abate.
“Tem que ter sofrimento”
É devagar que se chega à Fóia para termos todo o Algarve debaixo de olho: o da serra e o da costa. Com bom tempo vê-se até Sagres. Mas mais bonito ainda é o que vem depois. O som da água a correr (há minas por toda a parte), rosas albardeiras com fartura, de um rosa exuberante, e, de repente, parece até que estamos no Douro. São os socalcos da Moita, um espaço fora do tempo. Já houve famílias aqui, agora só ruínas: de casas, da escola, de estábulos. Imaginamos crianças a correr onde agora há vacas e cabras a pastar. Imaginamos homens e mulheres montados em burros, com frutas e legumes. Imaginamos os habitantes a imaginar o que se passaria para lá das montanhas.
As longas descidas também não facilitam a vida do caminhante – mas antes para baixo do que para cima. É preciso cuidado com as pedras que fazem escorregar. Na história desta Via Algarviana já houve de tudo: pés partidos, desmaios, pés em bolha, divórcios, amigos para a vida.
Chegamos a Marmelete e estão dois homens a carregar uma carrinha de caixa aberta. A mercadoria cheira-se à distância. São sacas de limões luminosos. Dos quintais saem limoeiros, todos enfeitados de amarelo vivo.
Há quem faça este caminho em BTT, como José Galego, 37 anos, carteiro, sentado agora à mesa do restaurante da Paula, onde nos foi servida canja de galinha e galo de cebolada, e melosa para ajudar a digestão. José Galego veio com mais cinco amigos, um de Aveiro, outro da Amadora, os outros de Moura como ele. A primeira tentativa de o percorrer foi no ano passado, mas aconteceu um imprevisto: “Sou dador de medula óssea, e na primeira manhã do primeiro dia ligaram-me do IPO a dizer que tinha compatibilidade total com um bebé. Só atendi o telefone porque um colega ficou com a bicicleta avariada e teve de parar. No dia seguinte, a bicicleta avariou outra vez e eu decidi mesmo que ia embora.” Meses depois, a sua mulher, que estava grávida, perdeu o filho. Agora, está grávida novamente. “Foi fazer um exame e ligou hoje a dizer que está tudo bem.”
A etapa entre Silves e Marmelete foi a mais dura. “Nunca pensei demorar tanto a fazer 45 quilómetros – mais de sete horas e meia. Já fiz 120 em menos tempo. Mas isto é uma questão de superação pessoal. Se não for duro não tem piada. Tem que ter sofrimento.”
A saída de Marmelete é marcada por um vasto eucaliptal. Muitas árvores foram arrancadas e há restos de troncos, ramos e folhas no chão. É lixo sem ser lixo. Abrem-se bem os pulmões para deixar entrar o ar purificado pelo eucalipto. Ao menos isso. Aqui a esteva tem o tamanho de homens altos.
Ao longo da ribeira da Vagarosa o caminho continua fresco, apesar de a manhã estar a virar tarde. O sol não está tão generoso como na véspera. E os quilómetros vão passando quase sem darmos por eles. O vale está radioso, com os seus sobreiros de porte imperial, e a passarada parece concordar porque a sinfonia é constante. É a verdadeira música ambiente. Devem estar a chamar as fêmeas para acasalar e esforçam-se ao máximo para as convencer com o seu canto.
A barragem da Bravura serve para um piquenique, com as fel da terra, umas flores cor-de-rosa, a pontilhar o caminho.
O mar chega à mesa
À volta de Bensafrim a vegetação torna-se mais baixa, com aroeiras e carrascos. Mais ainda à medida que nos aproximamos de Vila do Bispo. Os sobreiros parecem não ter tido vontade de crescer. O solo começa a ficar arenoso, o mar vai aparecendo ao fundo.
É bom chegar a tempo de jantar. No restaurante Mexelhão tudo sai das mãos treinadas da dona Teresa, mas a filha já está a aprender também. Somos servidos de percebes, xerém de lingueirão, cataplana de tamboril e torta de batata-doce. Falta muito pouco para chegarmos à costa, e a costa já veio ter connosco.
Este é o celeiro do Algarve, diz-se. O vento molda tudo em volta: a vegetação rasteira, as árvores todas inclinadas na mesma direcção, as pernas a quererem voar. As searas ondulam, são um imenso mar verde.
As colinas ficaram para trás, agora é só planície. E de repente uma longa linha recta em direcção ao mar. O horizonte fica no fim desta estrada. Uma curva no final e lá está o farol. Mas não vamos seguir pelo asfalto. Vamos fazer uma inflexão e entrar pelas dunas. Agora, junto a uma escarpa, o mar está a um salto. Tomilho de Sagres, esteva de Sagres, tudo é “de Sagres” por ser tão rente ao chão. Uma cegonha está no seu ninho num rochedo em frente. Um bando de gaivotas levanta voo. E num instante o farol está aqui. Mais um passo. Mais outro. E até poderia ser mais um quilómetro ou dois. Mas não é preciso. Já está. Ou como se diz na serra que não é Algarve, “tem avondo”.
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