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Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
3. O emocionante e terrível colapso do dólar … outra vez (1ª parte)
Por Michael Pettis
Publicado originalmente em Blog.mpettis.com e republicado por em 9 de maio de 2016
As percepções que externamente se têm sobre a economia chinesa são muito mais voláteis que a própria economia, e estão disseminadas por uma fantástica variedade de prognósticos. Num extremo ainda existem muitos que defendem a posição que, esmagadoramente, dominou o consenso apenas há quarto ou cinco anos, com o livro de Martin Jacques, Quando a China Dominar o Mundo, emocionando ou aterrorizando muita gente, com um subtítulo que prometia o fim do mundo Ocidental e o nascimento de uma nova ordem mundial. Embora poucos deste campo de opinião ainda acreditem nas suas previsões iniciais de um crescimento de 8% a 9 % ao ano durante mais uma ou duas décadas, muitos deles ainda pensam que a China conseguirá duplicar o seu PIB em dez ou doze anos.
No outro extremo estão aqueles que prevêem que a economia colapse bem antes do final da década. Embora ele próprio não preveja um colapso económico, mas antes um colapso político, David Shambaugh da Universidade George Washington encontra-se entre os mais profundamente pessimistas, tendo publicado no ano passado um artigo no Wall Street Journal acerca de “A Vinda da Crise Chinesa”. O seu artigo despoletou um aceso debate entre os observadores da China, debate esse que ainda continua e que, na verdade, se tornou mais intenso devido a uma série de medidas tomadas recentemente que pareciam destinar-se a limitar a discussão e análise económicas.
Shambaugh alerta para o facto de que as políticas de Pequim, visando prevenir um colapso político iminente, estão, em vez disso, a “aproximá-la mais de um ponto de ruptura.” Isto parecia marcar uma acentuada alteração em relação às suas opiniões anteriores, tanto mais de assinalar quanto as suas credenciais como um conhecedor e empático observador da China foram reforçadas dois meses antes, quando a prestigiada universidade China Foreign Affairs, “a única instituição de ensino superior sob a direção do Ministério dos Negócios Estrangeiros”, segundo a sua página web, o nomeou o segundo mais influente especialista sobre a China nos Estados Unidos.
Embora os sussurros políticos e os mexericos sobre a instabilidade política tenham, sem dúvida, disparado durante o último ano, eu próprio não estou habilitado a julgar a complexa luta de poder na China e as suas misteriosas manobras políticas. Ninguém que eu conheça, mesmo os meus amigos e antigos alunos mais ligados a esta matéria, parece ter grande ideia quanto à direção política em que vamos, e a única coisa em que todos estão de acordo é que estão todos muito menos seguros do que costumavam estar quanto a isso.
Em minha opinião, contudo, não há dúvida de que os dias de crescimento rápido, que alimentaram o inexorável crescimento económico, no qual Jacques baseia o futuro descrito no seu livro, estão verdadeiramente terminados. Não é possível que o crescimento não caia para menos de 2-3% bem antes do final desta década, ainda que, se o ajustamento for bem gerido e não se protele muito mais tempo a montagem de um dispositivo inteligente para solucionar o peso da sua dívida, Pequim poderia evitar que o crescimento anual dos rendimentos das famílias caísse muito abaixo de 5% durante este período.
Isto não significa que pense que seja provável que a China passe por uma crise económica ou financeira, quanto mais um colapso político, embora os precedentes históricos deixem muito claro que à medida que as contas nacionais de um país se tornam cada vez mais frágeis, não será necessário senão um pequeno choque adverso para detonar um desmoronamento financeiro. Mesmo assim, não tenho dúvidas de que a taxa de crescimento do seu PIB continuará a cair drasticamente – seja uns 1 ou 2 pontos percentuais ao ano, seja de uma forma muito mais abrupta após dois ou três anos em que se mantenham taxas de crescimento acima de 6 por cento.
Mas a emoção e o terror continuam sob várias formas. Para muitos analistas que não compreendem porquê a continuação de um rápido abrandamento é inevitável e porquê, então, faz todo o sentido moderar alguma da sua retórica, as recentes declarações feitas por Zhou Xiaochuan, Governador do Banco Popular da China (PBoC), desencadearam alguns, bem altos, sinais de alarme. No encontro do Comité Internacional Monetário e Financeiro do FMI, de 16 de abril em Washington D.C., o chefe do banco central da China concluiu a sua declaração com duas frases que atraíram a atenção de muitos analistas:
A partir do corrente mês de abril, a China divulgará, expressos em SDR [1], os dados sobre as suas reservas de divisas, adicionalmente aos dados que são expressos em dólares dos EUA. Estamos também a estudar emitir obrigações expressas em SDR para o mercado interno.
Em paralelo, uma comunicação do banco central da China na sua página web enfatizava a primeira daquelas duas frases: “com início em abril de 2016, o Banco Popular da China está a divulgar, expressos em SDR, os dados respeitantes às suas reservas em divisas, para além da medida em dólares dos EUA atualmente utilizada.”
Impõe-se aqui contextualizar a questão. Todos os meses o PBoC divulga o valor das suas reservas de divisas em renminbi [2] e em dólares dos EUA. Com início em abril, tenciona divulgar também o valor das reservas do PBoC’s expresso em Direitos Especiais de Saque (SDRs).
O PBoC, corretamente, salienta que, porque os SDR são forçosamente menos voláteis que qualquer das moedas que constituem o cesto que representa o seu valor – dólar dos EUA, euro, yen japonês, libra esterlina, e, em outubro deste ano, o renminbi – utilizar os SDR “ajudaria a reduzir alterações de valor causadas por frequentes e voláteis flutuações das principais moedas.” Pudemos ver como isto funciona, num artigo do passado Domingo no South China Morning Post, que abria assim:
As reservas em divisas da China aumentaram, ainda que marginalmente, pelo segundo mês consecutivo em abril, assinalando uma flexibilização das saídas de capitais, segundo os dados divulgados pelo Banco Popular da China no Sábado. O aumento das reservas em 7,1 mil milhões de dólares dos EUA superou o prognóstico feito pelas previsões do mercado de uma queda, e conduziu a umas espetaculares reservas em divisas de 3,22 milhões de milhões de dólares EUA no final do mês passado. Em março, as reservas subiram 10,2 mil milhões, terminando um período de cinco meses de declínio.
No final do artigo, o SCMP dá-nos os valores em SDR divulgados pelo PBoC:
Em termos de SDR, as reservas em divisas do país eram de 2,27 milhões de milhões no final do mês passado, abaixo dos 2,28 milhões de milhões do final de março.
Um aumento de 7,1 mil milhões nas reservas quando expressas em dólares dos EUA transformaram-se num decréscimo de 0,1 mil milhões quando expressas em SDRs. O dólar desvalorizou em relação à maioria das principais moedas em abril e este enfraquecimento apareceu sob a forma de um aumento nas reservas de divisas, outras que não o dólar, quando expressas em dólares. Porque a quota-parte dos dólares EUA nas reservas do PBoC é de cerca de 1,5 vezes em relação à sua quota-parte em SDR, esta mesma fraqueza apareceu sob a forma de uma redução do valor expresso em SDRs.
Além da redução da volatilidade, o PBoC sustenta também que utilizar os SDR para informar sobre os valores das reservas em divisas ajudará a “fornecer uma medida mais objetiva do valor total das reservas”. Neste ponto o PBoC engana-se; não existe mais informação com os novos valores. Na verdade, qualquer um que queira seguir o valor em SDRs das reservas do PBoC pode fazê-lo a todo o tempo, muito simplesmente convertendo, cada mês, dólares EUA em SDRs – ou euros, yen, libras esterlinas, ou qualquer outra moeda, já agora – às taxas de câmbio então em vigor. Não existe nenhum truque especial nisto.
Minando a hegemonia do dólar
Mas foi a última frase no comunicado do PBoC que suscitou espanto entre muitos analistas, e é aqui que entram a emoção e o terror. Relatar o valor das reservas de divisas em SDRs, segundo aquele comunicado, “ajudaria também a fortalecer o papel dos SDR enquanto unidade de conta.”
Porque está o PBoC tão preocupado em fortalecer o papel dos SDR, um “ativo de reserva internacional” que até agora tinha tido pouca utilidade prática e no qual o renminbi tinha entrado recentemente? Logo após a comunicação, um artigo no South China Morning Post fornecia uma possível resposta. Advertia que a utilização dos SDR pelo PBoC tinha por finalidade atingir “o objetivo estratégico de longa data de destronar o dólar dos EUA no sistema monetário internacional.” Segundo este artigo “a paixão renovada de Pequim por esta desajeitada formulação destes ativos de reservas faz tudo parte da sua meta estratégica – conduzida pelo veterano governador do banco central Zhou Xiaochuan – para acabar com a hegemonia do dólar dos EUA; a segunda maior economia do mundo quer criar uma nova ordem financeira mundial.”
Num artigo para o MarketWatch, David Marsh, director-geral de uma empresa de pesquisa sediada em Londres, chamada Official Monetary and Financial Institutions Forum, explicava em grande, embora ligeiramente bajulador, detalhe porquê este último movimento é tudo parte de uma mais vasta, e cuidadosamente ponderada, estratégia:
As declarações da China ao longo dos anos sobre os direitos especiais de saque do Fundo Monetário [Internacional] confirmam a reputação das autoridades de Pequim em terem um pensamento de longo prazo, bem como a sua capacidade de criarem enigmas sobre o que verdadeiramente são os seus objetivos. O mistério começa a parecer um pouco menos obscuro. A segunda maior economia mundial está a avançar, pragmática mas consistentemente, em direção à consagração de um sistema multi-moeda de reserva no coração da ordem financeira mundial.
Embora aceite que terão de passar muitos anos antes que o dólar possa ser destronado do seu papel de número um, Pequim é a favor de um sistema “4 mais 1”: o euro, a libra esterlina, o yen, e o yuan, coexistindo com o dólar. Estes são os cinco componentes dos SDRs, aos quais o yuan se juntará formalmente em outubro, no seguimento de uma decisão do FMI de novembro apoiada pelo Tesouro dos EUA. No contexto desta reflexão, a China há alguns anos tem vindo a mostrar menos interesse em adquirir obrigações emitidas pelo Tesouro dos EUA — uma tendência que está muito provavelmente para continuar.
Pequim melhorou o papel da unidade de moeda compósita do FMI ao começar a publicar o valor das suas reservas de divisas (as maiores do mundo) em SDRs, adicionalmente à prática de longa data de divulgar esse valor em dólares.
Marsh, tal como muitos outros analistas que têm repetido a popular, mas confusa, história sobre a ascensão do renminbi e o declínio do dólar dos EUA, provavelmente compreendeu mal a forma como as moedas de reserva funcionam na balança de pagamentos mundial. O que quer que algumas pessoas em Pequim possam pensar quanto à consagração de um sistema de reserva multi-moeda, na verdade as políticas económicas de Pequim nas duas últimas décadas fizeram o oposto.
Essas políticas reforçaram, sistematicamente, o papel de moeda de reserva do dólar dos EUA. Se Pequim tivesse agido de forma diferente, ou teria minado o desenvolvimento económico da China, ou teria criado, de modo significativo, mais elevadas pressões políticas internas nas passadas duas décadas.
Isto é mais verdadeiro agora do que nunca. Independentemente das intenções manifestadas por determinadas personalidades políticas, o ajustamento económico da China requer que Pequim continue a apoiar o papel de moeda de reserva do dólar. Uma redução do papel desempenhado pelo dólar dos EUA tornaria, de facto, mais caro que nunca o já difícil reequilíbrio económico da China.
Em aparte, não há dúvida, claro, de que os dólares dos EUA constituem as reservas da maioria dos bancos centrais, e isto durante sete décadas, apesar dos períodos ocasionais em que muitos pensaram que o seu papel se reduziria significativamente à medida que outras moedas aumentaram em muito a sua presença – por exemplo o marco alemão foi visto como um potencial rival nos anos de 1970 e 1980, o yen nos anos de 1980 e inícios dos anos de 1990, e no início da última década o yen, que se esperava, amplamente, que suplantaria completamente o dólar, e até o rublo nos anos de 1950.
O diretor-geral de Nomura [multinacional asiática de prestação de serviços financeiros], Stuart Oakley, explicou há três anos atrás a actual quebra:
Segundo os dados do FMI existem neste momento aproximadamente 11 milhões de milhões de dólares EUA em reservas de divisas nos cofres dos bancos centrais de todo o mundo. Destes, 6 milhões de milhões estão mencionados como “reservas alocadas” nas quais a sua composição por moeda é conhecida. A maior parte dos restantes 4-5 milhões de milhões de “reservas não alocadas” é detida pela China que optou por não divulgar a sua composição por moeda.
Sabemos que sensivelmente 62 por cento das “reservas alocadas” são detidas em dólares EUA, 23 por cento em euros, 4 por cento em yen, 4 por cento em libras esterlinas, com os francos suíços e os dólares australianos e canadienses constituindo o pequeno saldo remanescente.
Voltarei a este ponto mais adiante, mas agora pretendo seguir um dos outros aspetos que Marsh assinalou no seu texto. Afirmou ele que não era nenhuma coincidência que, apenas alguns dias antes das suas declarações em Washington, Zhou Xiaochuan tenha estado em Paris: “O capital francês é a plataforma tradicional para a elaboração de planos (geralmente infrutíferos) para apear o dólar. Estes planos remontam às manobras de Jacques Rueff, o legendário economista francês pré-Segunda Guerra Mundial, e à infortunada rebelião dos anos 1960 contra o exorbitante privilégio das notas de dólar.”
De facto, toda a teoria do exorbitante privilégio – inicialmente articulada por Valery Giscard D’Estaing, mais tarde presidente de França, e referindo-se aos tremendos benefícios económicos que os EUA tinham, supostamente, com a primazia do dólar EUA entre as moedas de reserva – resultou de circunstâncias muito particulares do pós-guerra. Nos finais dos anos de 1940, à medida que os EUA geriam excedentes comerciais resultantes da devastação da Guerra na Europa, as instituições de Bretton Woods não conseguiam reciclar dólares em quantidade suficiente para a Europa para permitir o seu uso em consumo bem como para financiar a necessária reconstrução das infra estruturas e das indústrias transformadoras.
A notória “escassez de dólares” foi de tal modo grave que ameaçou fazer cair por terra qualquer esperança de recuperação económica da Europa e do Japão.
As elevadas doações de dólares por parte dos EUA sob o Plano Marshall resolveram em parte o problema, mas mesmo assim não foi suficiente. Pelos anos de 1950, à medida que subiam as tensões da Guerra Fria, os EUA, a fim de serem reconstruídas as economias europeias, permitiram políticas protecionistas na Europa sem com isso adotarem retaliações, de modo que os seus aliados puderam reduzir os seus défices das balanças de transações correntes e eventualmente convertê-los em excedentes [3]. Isto viria a permitir que o emprego na Europa crescesse suficientemente rápido de modo que o concomitante aumento das poupanças pôde financiar o aumento do investimento interno.
Acabou-se a escassez de dólares
Por outras palavras, o exorbitante privilégio parecia ser um privilégio somente quando a escassez mundial de dólares implicou que o investimento europeu estivesse restringido pela sua incapacidade para financiar investimentos com uma moeda de reserva credível. Embora esses dias estejam já muito longe, não trouxeram uma equivalente alteração na percepção do assunto. A maioria dos europeus ainda se opõem a permitir os benefícios que os EUA presumivelmente obtêm do seu exorbitante privilégio.
O que torna a obtusidade intelectual europeia tão extraordinária é que enquanto os políticos Americanos criticaram de viva voz o comportamento comercial predatório dos chineses durante anos, a política europeia tem sido muito mais predatória, e é tão somente o “exorbitante privilégio” dos EUA que possibilitou que as recentes políticas europeias, principalmente na Alemanha, se situassem de entre as mais irresponsáveis da história moderna.
A história nesta altura é bem conhecida.
Depois de, em primeiro lugar, devastar a Europa da periferia, a política alemã de salários, que provocou uma drástica contração na procura interna alemã, conduziu a balança de pagamentos da Europa de uma situação aproximada de equilíbrio há alguns anos atrás para o maior excedente alguma vez registado. Os EUA têm sido notavelmente polidos quanto às políticas europeias, pelo menos em público, e não foi senão no último mês que o Tesouro dos EUA colocou, formalmente, a Alemanha, juntamente com a China e o Japão, numa nova lista de vigilância de moedas. Colocar a Alemanha nesta lista foi uma ação descrita como “provocadora” pelo Financial Times, e em contraste o Tesouro dos EUA dá uma “leitura de elogio prudente para as autoridades chinesas” – com toda a razão, na minha opinião.
Os teóricos da conspiração têm a certeza de que há algum nefasto benefício que os EUA obtêm, juntamente com o prestígio de controlarem a moeda de reserva mundial, apesar do que deveriam ser óbvias provas em contrário. Enquanto todos percebemos os motivos porque os países se envolvem na guerra de moedas, não somos capazes de compreender que a guerra de moedas não é nada mais do que ações de um determinado país para reduzir a sua quota-parte do “exorbitante privilégio”, e passá-lo para o resto do mundo, o que, na prática, normalmente significa os EUA. No final, a confusão quanto ao exorbitante privilégio é simplesmente parte da confusão mais ampla que, entre outras coisas, conduz a maquinações continentais contra a hegemonia financeira do dólar e “anglo-saxónica”.
Por exemplo, os franceses e outros europeus de direita opositores ao euro, como os membros da Frente Nacional de França, criticam com vigor os EUA e opõem-se abertamente ao apoio americano à União Europeia e ao euro, que consideram como parte de uma estratégia de longo prazo dos EUA para debilitar a Europa.
Os apoiantes do euro, todavia, não são menos persistentes quanto a que os seus atuais fracassos são largamente causados pela aberta oposição anglo-saxónica, provocada pelo receio de que uma Europa unida seja uma ameaça ao poder dos EUA, ou que o sucesso do euro possa minar o papel de moeda de reserva do dólar.
Esta confusão é tão profunda que os participantes no World Credit Rating Forum no ano passado, uma conferência organizada pela agência chinesa de rating Dagong Credit, puderam testemunhar um impressionante discurso de Dominique de Villepin, antigo Primeiro-Ministro de França, que, na sua intervenção de abertura, propôs uma aliança entre a França e a China que em conjunto formariam uma parceria que anularia o domínio financeiro dos EUA e da Grã-Bretanha e a hegemonia do dólar.
Mais do que o exacerbado apelo à guerra que possa ter planeado, o seu discurso soou como incrivelmente paternalista, pelo menos para alguns dos mais jovens participantes chineses. Mais tarde nessa semana, dois dos meus estudantes que tinham participado na conferência, sabendo que sou meio francês e aproveitando o muito informal ambiente que tento manter no meu seminário, provocativamente relataram o discurso de Villepin aos seus colegas após o que, virando-se para mim, expressaram com uma atitude sorridente a sua apreciação de que a França estava determinada a levar a China a grandes feitos.
Mas, isso aparte, será o estatuto de moeda de reserva do dólar dos EUA uma parte da hegemonia financeira dos EUA, e será do interesse da China substituí-lo com os SDR, ou mesmo com o renminbi? Aqui é onde a confusão fica mais profunda. O estatuto de moeda de reserva do dólar dos EUA era e é necessário ao crescimento da China e, na verdade, a actuação da China nas três últimas décadas fez mais para o consagrar do que tudo o que os EUA possam ter feito. De facto, os EUA tentaram, sem sucesso, minar o seu exorbitante privilégio.
Na realidade o dólar recebeu, presumivelmente, um rude golpe há oito anos, proferido uma vez mais pelo governador Zhou, mas após o qual a sua quota-parte no total das reservas, na verdade, parece ter subido. Após a primeira etapa, americana, da crise mundial de 2008, Zhou escreveu um famoso texto em março de 2009 para a página web do PBoC, no qual perguntava “que tipo de moeda internacional de reserva necessitamos para assegurar a estabilidade financeira mundial e facilitar o crescimento económico mundial?”
A sua resposta à questão que ele próprio colocou foi suficientemente cuidadosa para satisfazer os requisitos quer da diplomacia quer da obscuridade do banco central, mas foi generalizadamente interpretada, apesar da recusa de Zhou de cair na armadilha, como um feroz assalto à hegemonia do dólar dos EUA, uma vez que anunciava o rápido fim do “exorbitante privilégio” americano. As implicações da pergunta de Zhou pareceram óbvias para muitos.
Eles acreditaram que a economia dos EUA tinha sido abatida pela crise financeira como um golpe de KO, que seria simplesmente o primeiro passo de um inexorável declínio dos EUA, que brevemente se veria o eclipse dos velhos centros financeiros como Nova Iorque e Londres em troca das mais vibrantes bolsas de valores de Xangai, São Paulo e Moscovo. Pensaram também que o estado da economia europeia era essencialmente saudável e que conseguiria navegar através da crise, com um cada vez mais sólido euro. Como o indigno presidente de um dos maiores bancos espanhóis declarou asperamente em algum momento no final de 2008, os bancos europeus tinham tido um comportamento conservador, prudente e sensato, apesar do desprezo espalhado sobre eles pelos bancos americanos e britânicos, e era por isso que os bancos espanhóis estavam em tão boa forma, e que o sistema financeiro europeu se manteria amplamente não afetado por aquilo que era inteiramente uma crise americana.
Que pode a história ensinar-nos?
Como parte deste consenso muito poucos analistas na China ou no estrangeiro previam que o crescimento do PIB chinês caísse abaixo dos 9 por cento, pelo menos até ao final da década, e era generalizadamente aceite que o crescimento do PIB não cairia abaixo de 8 por cento porque esse era considerado o mínimo necessário para estabilizar o desemprego. Pequim nunca permitiria, diziam estes analistas, que o crescimento caísse abaixo desse valor. Entre os analistas estrangeiros – embora muito menos entre os chineses – as aptidões dos decisores políticos chineses eram tidas em tão espantosa alta estima que parecia desnecessário distinguir entre o que Pequim queria que acontecesse e aquilo que na realidade aconteceria.
O mesmo optimismo era aplicado ao declarado desejo de muitos na China de que o renminbi ocupe o seu lugar como uma das principais moedas mundiais. Os dados que mostravam o rápido aumento da quota-parte do comércio mundial expresso em renminbi nada diziam aos optimistas quanto ao patamar muito baixo em relação ao qual o crescimento era medido, ou sobre o óbvio interesse especulativo em deter uma moeda em apreciação, e diziam tudo sobre o seu inexorável aumento, que apontava indiretamente mas poderosamente, dizia o consenso, para o igualmente inexorável declínio do dólar dos EUA para um estatuto secundário.
Todavia, nem todos concordavam com o consenso, e na verdade parece que a maioria dos economistas com formação em história económica e financeira na verdade discordavam fortemente. Nas minhas aulas na Universidade de Pequim (PKU) insisti sempre na importância de colocar no seu contexto histórico os acontecimentos económicos e financeiros e de compreender a estrutura das contas nacionais e os incentivos ao setor financeiro na análise da evolução dos mercados financeiros e das economias. Desde 2008 até 2010 os extremamente brilhantes estudantes que frequentaram o meu seminário sobre o banco central utilizaram ambos estes aspetos para predizerem a inevitabilidade do reajustamento económico.
Também por esta altura publiquei um artigo onde defendia que uma vez que as crises financeiras mundiais tendem sempre a fazer subir o prémio de liquidez e a tornar mais valiosa a vantagem de liquidez que os centros financeiros mundiais têm sobre os mercados de ações locais, contrariamente ao consenso existente eu estava à espera que Nova Iorque e Londres ganhassem quota de mercado aos mercados de ações locais. Alguns meses mais tarde, noutro artigo, defendi que não só o dólar EUA não desapareceria como moeda de reserva, mas que também, por razões similares, deveríamos esperar uma utilização “na verdade crescente, não um declínio, à medida que os investidores e os exportadores se movimentavam cada vez mais das moedas com menos liquidez para as moedas com maior liquidez.”[4]
Em retrospetiva, a história parece ter sido um melhor guia do que o consenso. Se bem que seja muito cedo ainda para se ter a certeza disso, as bolsas de Xangai, São Paulo e Moscovo não parece que tenham ganho quota de mercado aos velhos centros financeiros mundiais e, na verdade, parece mais provável que a tenham perdido à medida que os mercados locais paralisaram e, nalguns casos, obrigaram mesmo a significativas intervenções governamentais.
Além disso, em vez de ver diminuído rapidamente o seu papel, como generalizadamente se esperava em 2008-09, a quota-parte do dólar no total das moedas de reserva aumentou, segundo o FMI, em mais de 3 pontos percentuais desde então, atingindo mais de 64%.
O meu seminário na PKU foi, também, sempre muito céptico quanto às afirmações de que os mercados emergentes se tinham separado do Ocidente e se teriam tornado motores de crescimento auto-sustentados. Realmente, pareceu claro que a crise do sub-prime foi simplesmente o acionador de um ajustamento mundial disruptivo após anos de políticas monetárias erróneas e de distorções nas balanças de pagamentos. Excessos de liquidez foram criadas por todos os principais bancos centrais, e isso sustentou os desequilíbrios que conduziram àquilo que tinha que ser, inevitavelmente, uma crise mundial.
A crise do sub-prime, por outras palavras, não foi o problema. Foi simplesmente o detonador de uma crise mundial causada por um feroz crescimento da liquidez dos bancos centrais, que forçou ou acomodou significativas distorções na balança mundial de pagamentos que apenas temporariamente podiam ser resolvidas através de uma dívida crescente.
É por isso que os meus estudantes e eu próprio estávamos convencidos, quase desde o início, que a crise financeira mundial decorreria em três etapas. A primeira etapa foi a crise americana, que seria brutal mas da qual os EUA recuperariam relativamente depressa. A segunda etapa seria a crise na Europa com base nas fundações insustentáveis do euro, e provavelmente prosseguiria até que as dívidas soberanas fossem perdoadas e as estruturas criadas pelo euro fossem corrigidas.
A terceira etapa seria a dos mercados emergentes, desencadeada pelo colapso dos preços das matérias primas à medida que abranda a economia da China. Nos inícios de 2012 escrevi num dos meus boletins informativos que os preços das indústrias metalúrgicas cairiam em mais de 50% no prazo de três anos e o ferro, então a transacionar-se acima de 190 dólares por tonelada, brevemente experimentaria o valor de 50 dólares – à medida que a China fosse obrigada a reequilibrar-se. Isto parece-me praticamente inevitável como parte do necessário ajustamento chinês.
Voltando às declarações do governador Zhou feitas em abril no FMI, tal como a sua dissertação em 2009: será que a nova política do PBoC de divulgar o valor das suas reservas em divisas em SDRs, juntamente com o valor em dólar EUA, aumentará a visibilidade e a viabilidade dos SDRs? E em caso afirmativo, isso minaria de algum modo a utilização do dólar EUA como moeda de reserva dominante à medida que seria lentamente substituída pelos SDRs ou o renminbi?
A resposta é que embora possa aumentar a visibilidade dos SDRs, de modo nenhum aumentará a sua viabilidade. Mais importante ainda, não minará o dólar como moeda de reserva mundial nem irá ajudar a valorizar o renminbi.
(continua)
Notas
[1] N.T. Special Drawing Rights – Direitos Especiais de Saque (DES) – Segundo o FMI, o valor dos DES é determinado pela soma dos valores, em Dólares norte-americanos, com base nas taxas de câmbio do mercado, de um cesto das mais importantes moedas (EUA dólar, Euro, yen Japonês e Libra Esterlina).
[2] N.T. Moeda oficial da República Popular da China.
[3] Numa das viagens de avião que realizei no ano passado pude ver um documentário sobre as cassetes do presidente Nixon. Numa das conversas, um dos seus assistentes mostra-se preocupado com as medidas protecionistas europeias que estavam a prejudicar as empresas norte-americanas, e analisa possíveis retaliações para pressionar a Europa a retirar essas medidas. Outro assistente interrompe a conversa e avisa que retaliações minariam o apoio europeu a determinadas posições sobre a Guerra Fria, após o que Nixon pôs fim imediato a qualquer conversa quanto a pressões sobre a Europa para remover as suas políticas protecionistas. Este foi um frequente estribilho desde os anos de 1950 em diante, e ainda hoje continua a enformar a política seguida – o TPP (Acordo de Comércio do Trans-Pacífico assinado em 4 de Fevereiro de 2016] por exemplo.
[4] Ambos os artigos saíram no South China Morning Post, o primeiro “Improvável que os capitais financeiros percam o seu poder”, 3 de novembro de 2008, e o segundo “As moedas de reserva raramente mudam,” 25 de Maio de 2009.
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