Traições, crimes, coragem, covardia, tragédia, talento, política, arte, bom gosto, kitsch, despojamento, romantismo desenfrEREeado, religião, poesia, misticismo, esoterismo, sexo, drogas e rock’n’roll. Nenhum outro lugar reservado aos mortos evoca com tanta força e grandeza as paixões, manias, glórias e misérias dos vivos quando o cemitério do Père-Lachaise, em Paris, França – e, por isso mesmo, um cemitério que não tem igual no mundo.
Para começar, ele mais parece uma cidade. Uma verdadeira cidade, com nomes de avenidas, ruas, caminhos, placas de trânsito e até bichos. Muitos bichos, como esquilos, porcos-espinhos, abelhas (que formam verdadeiras colmeias dentro de algumas estátuas) e uma grande população de gatos, que têm até defensores de carteirinha: a Associação de Proteção dos Gatos Errantes do Père-Lachaise.
O cemitério ocupa um espaço enorme, a maior área verde de Paris, com 44 hectares com 97 divisões e seis mil árvores, onde três milhões de visitantes por ano promovem uma procissão interminável entre as suas 115 mil de sepulturas, e mais de um milhão de pessoas enterradas. Para quem gosta de comparações: a Torre Eiffel ou o Museu do Louvre, verdadeiros símbolos e glória de Paris, recebem cinco milhões de visitantes – apenas dois milhões a mais que o maior cemitério francês.
Segundo histórias que correm, o Père-Lachaise é ainda mais animado à noite do que de dia. Missas negras, rituais satânicos, sacrifícios humanos, bacanais de todo tipo seriam realizados por confrarias misteriosas que entram no cemitério por passagens secretas, ultrapassando os altos muros por meio de escadas ou simplesmente se deixando trancar entre os túmulos. Em 1995, a administração criou uma polícia especial motorizada que patrulha o local dia e noite. No entanto, parece simples ficar por ali quando os portões se fecham. Até mesmo contra a vontade, como acontece com frequência, já que a área é enorme, as saídas são poucas e é facílimo se perder. Quando isso acontece, porém, basta procurar um guarda que ele devolve o visitante extraviado à Paris dos vivos.
Na eternidade os critérios não são os mesmos que regem a nossa pobre existência. Segundo os exemplos do Père-Lachaise, mais vale, por exemplo, ser artista do que presidente da república. Vários presidentes estão enterrados naquele cemitério, em sepulturas grandiosas – uma delas maior que a capela principal. Mas nada se compara e devoção que recebem Fréderic Chopin ou uma certa Madame Lambrouskas, mais conhecida como Edith Piaf. No coração do público, um poeta maldito como o irlandês Oscar Wilde merece muito mais respeito que todos os generais com seus galões e imponentes estátuas equestres.
Quando o Père-Lachaise foi criado por Napoleão Bonaparte, em 1803, o que se pretendia era acabar com o hábito de enterrar os mortos perto das igrejas. Paris, naquela época, já estava com problemas de espaço. Com a Revolução Francesa, em 1789, seguida pelos anos do terror, quando a guilhotina funcionou à toda, o problema piorou, agravando um outro drama: o das epidemias. Muitas vezes os mortos, na falta de um lugar melhor, eram empilhados em capelas, até que se encontrasse a moradia definitiva.
Napoleão deu a incumbência de planejar o cemitério ao arquiteto Théodore Brongniart, o mesmo que projetou e construiu a Bolsa de Valores de Paris. Ele desenhou uma necrópole modelo, com túmulos absolutamente iguais. O arquiteto morre em 1813, mas seu projeto continuou sendo executado. Em 1814, a região é invadida por tropas russas, em guerra com a França, e usam as árvores do cemitério como lenha. O lugar onde está o cemitério é utilizado desde a Idade Média e de propriedade do Bispo de Paris e conhecido como Champ l’évêque (campo do bispo) e explorado pelos moradores da região com plantações de uvas, cereais e legumes. O lugar também era chamado Mont-aux-vignes ( Monte das vinhas).
No começo, foi um fracasso. Ninguém que fosse vivo queria ser enterrado naquele então fim do mundo, fora do centro de Paris. Para convencer os reticentes parisienses, Napoleão deu início a uma esperta campanha publicitária. Primeiro anunciou que o Père-Lachaise seria sua última morada, bem como a de todos os seus generais mortos dali em diante. Depois, começou a transferir para a nova necrópole os restos mortais de pessoas famosas, para dar prestígio ao local. Molière, La Fontaine (celebridades do século 17) e os amantes eternos, Abelardo e Heloísa(casal que separado pelo tio da moça, vão viver uma vida religiosa até a morte) foram os protagonistas involuntários dessa batalha napoleônica pela conquista da simpatia dos moribundos. Estava criado, dessa forma, o marketing funerário.
Na verdade, muita gente duvida de que os restos enterrados sejam realmente dessas celebridades, mas a campanha funcionou: com o enterro de uma menina de cinco anos, filha de um humilde tocador de sino, o Père-Lachaise foi finalmente inaugurado. Ironia do destino – ou prova maior de que tudo não passou de uma jogada publicitária -, Napoleão acabou não sendo enterrado ali, mas sob uma cúpula de ouro nos Invalides, o museu militar de Paris. Em compensação, pelo menos sete das amantes do famoso general e imperador francês repousam no Père-Lachaise.
Quem mais contribuiu para a glória do cemitério, porém, foi o escritor Honoré de Balzac, que no auge de sua fama enterrava no Lachaise todos os personagens de seus romances que viessem a falecer. Até hoje tem gente que procura o túmulo de uma ou outra celebridade que só existiu nos livros do escritor – que, é claro, está enterrado ali de verdade.
O Père-Lachaise, que deu o nome à necrópole, foi o padre confessor de Luís XIV, que morava no local muito antes de Napoleão pensar em fazer um cemitério por ali. Embora leve o nome desse religioso católico, o cemitério sempre foi laico, acolhendo de ateus a pessoas de todas as confissões imagináveis. Existem túmulos budistas, muçulmanos, israelitas e até zoroastrianos – os adeptos da religião mais antiga do mundo, o masdeísmo, que celebrava Mazda, o deus do Bem, na Pérsia antiga, e que ainda é praticada na Índia.
Em 1854, o Império Otomano, aliado da França, pede a construção de um cemitério muçulmano, que é feito numa parte separada no Père-Lachaise, assim como uma mesquita, a primeira da França. No lugar já havia uma parte reservada para os judeus e uma capela para os cristãos. O primeiro túmulo dessa área foi da rainha Malka Kachwar, que morreu em 1858, quando fazia escala em Paris depois de uma viagem a Londres onde tinha ido reclamar em vão contra a anexação do seu reino, Oude na Índia, pelos ingleses.
Ela também foi a primeira indiana a ser enterrada no cemitério. Já em 1871, durante a Comuna de Paris, o Père-Lachaise foi palco de episódio sangrentos e dramáticos. Os 147 últimos defensores da Comuna se refugiaram no cemitério e foram fuzilados lá mesmo pela repressão, junto a um muro, o Mur des Federés, que até hoje é objeto de peregrinação de gente vinda do mundo inteiro. A obra atual, uma homenagem foi reconstruída no lugar onde foram enterradas as vítimas. Já os restos do muro original foram utilizados para a construção de um monumento, dedicado aos mortos das revoluções. Em 1881 uma lei acaba com as distinções religiosas aparentes, e o muro que separava a parte judaica e muçulmana e dos cristãos foram derrubados. A mesquita se deteriora e é demolida em 1914. Em 1887, uma lei volta a autorizar a cremação, abolida desde 1815 por causa da Igreja Católica.
Hoje, as sepulturas mais visitadas são, pela ordem, as de Allan Kardec, Jim Morrison, o cantor também falecido da banda americana The Doors, Edith Piaf e Chopin. Um túmulo também muito visitado é o do jovem jornalista francês Victor Noir que tem uma delirante história pode ser lida aqui. Contudo, ao contrário do que se imagina, não é o cemitério mais caro de Paris. Repousar para sempre em Montparnasse ou em Passy custa em torno de 9 mil euros (cerca de 40 mil reais) pela concessão perpétua. No Père-Lachaise sai por 6.700 euros, ou 28 mil reais. E ainda existem concessões disponíveis, mas para ser enterrado lá é preciso morar (ou morrer) em Paris.
A sepultura do escritor irlandês Oscar Wilde é frequentada pelos seus admiradores desde sua morte, em 1900, e virou ponto de encontro de homossexuais, já que Wilde também o era. Nos quatros lados são encontradas inscrições e marcas de batom. Consta que os testículos da estátua foram quebrados por senhoras pudibundas e durante muito tempo, serviram de peso de papel na mesa do diretor do cemitério.
Já o roqueiro Jim Morrinson, cujo nome verdadeiro era James Douglas, conseguiu a proeza de “aprontar” tanto vivo quanto morto. Desde o início, a sepultura de Morrinson foi palco de animados happenings. Sobravam garrafas, velas, restos de comida, instrumentos musicais, fumo e até seringas espalhadas num raio de vários metros ao seu redor. Jovens vinham do mundo inteiro para se deixar trancafiar e passar a noite com o ídolo. Há quem garanta que os melhores concertos de rock de Paris aconteceram mesmo nas madrugadas do Père-Lachaise. Os familiares dos mortos próximos não sabiam mais o que fazer e a administração do cemitério não aguentava mais limpar tudo. Depois disso, decidiram colocar o túmulo sob vigia 24 horas por dia e os guardas não deixam nem sentar no chão por perto.
Indiferentes as discussões que juntam vivos e mortos, todos os dias passeiam pelas avenidas do Père-Lachaise, mães com carrinhos de bebê, estudantes, namorados e principalmente, aposentados. Eles constituem uma população especial no cemitério, a mais simpática e bem informada. Aliás, a melhor maneira de visitar o cemitério, praticar francês e fazer amigos é dar uma de perdido. Basta parar no meio do caminho, abrir um mapa, olhar para um lado e para o outro. Logo aparece um aposentado perguntando se você precisa de ajuda. Eles acabam mostrando tudo, chegando rapidamente onde qualquer pessoa levaria um tempão e contando mil histórias que só os frequentadores assíduos conhecem.
Como de uma moça de vinte anos que adorava os gatos do Père-Lachaise e vinha diariamente alimentar os bichanos. Mas um dia ela morreu no banheiro de sua casa, num acidente com o aquecedor. Durante muito tempo, os gatos iam dormir no túmulo da jovem, principalmente um que parecia inconsolável. Até que um dia, ele também desapareceu.
Lendas também não faltam. Uma delas afirma que Cleópatra, a última grande rainha do Egito, está enterrada no Père-Lachaise. A múmia daquela que foi a mais bela mulher do seu tempo teria sido trazida por Napoleão na campanha do Egito, assim como o obelisco que está na Place de la Concorde. O problema é que os especialistas da época não sabiam como conservar tal preciosidade. O sistema de mumificação foi concebido para o clima extremamente seco do deserto egípcio. Trazida para o inverno de Paris, a múmia teria mofado e começado a apodrecer. Envergonhados, os egiptólogos não sabiam o que fazer para dissimular a gafe. Cleópatra, então, no maior segredo, da Biblioteca Nacional para o Père-Lachaise e enterrada às pressas numa sepultura anônima.
Mesmo os desconhecidos do Père-Lachaise intrigam, emocionam ou fazem sonhar. Quem seria a madame chinesa Chyi, retratada no auge de sua beleza, e que tumultos da história e da vida fizeram com que ela atravessasse o mundo para, finalmente, repousar para aqui? Ou, quem era e o que aconteceu com aquele jovem Valério, para quem a família construiu uma sepultura em degraus de mármore branco, com a inscrição: “Ele amava Stendhal, Pavarotti, Pink Floyd. Mas um dia, aos 29 anos…” São histórias que a imaginação pode completar, e que se juntam a outros tantos mistérios – cuja chave o Père-Lachaise mantém enterrada bem fundo.
ROMARIA DE FÉ
No cemitério Père-Lachaise, existem preferências nacionais e públicos específicos para cada uma das celebridades. É só se aproximar de um guarda e dizer: “Eu sou brasileiro…” Provavelmente, ele nem vai dar tempo para que você faça a pergunta. Vai logo informando: “Allan Kardec é por ali“. Seguindo na direção indicada, em certos dias é possível localizar a sepultura apenas pela intensidade do perfume – é de longe a mais florida do cemitério. Curiosamente, o francês médio não tem a menor ideia de quem seja esse tal de Kardec e fica impressionadíssimo quando alguém conta que no Brasil existem milhões de kardecistas, uma religião da qual ela nunca ouviu falar, muito menos tinha conhecimento de que seu fundador é um francês. Allan Kardec, cujo verdadeiro nome é Léon Hippolyte Denizard Rivail, está enterrado sob um dólmen de granito.
O nome pelo qual ele ficou conhecido e a forma da sepultura foram escolhidos porque ele teria sido um druida em outra encarnação. No alto, uma inscrição em vermelho: “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sempre, essa é a lei“. O pai do espiritismo, nasceu em Lyon, na França, e morreu em Paris. Todos os dias, centenas de pessoas vêm trazer flores e rezar em sua sepultura, com a mão apoiada no busto de bronze da estátua, para captar a energia positiva. Muita gente leva um objeto, uma carta, foto ou roupa de uma pessoa querida para magnetizar na estátua de Kardec. Outros preferem tocar a pedra do túmulo ou as correntes de ferro. E, da abertura ao fechamento do cemitério, o túmulo mais visitado do Père-Lachaise nunca fica sozinho.
Mapa de Père-Lachaise
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