A “guerra fria” entre Estados Unidos e Cuba passou por Portugal. Primeiro pela Guiné-Bissau, em 1969, com a prisão de um militar cubano. Depois por Lisboa, em 1974, onde a revolução estava na rua e até o The New York Times noticiava as manif’s a pedir “Liberdade para o capitão Peralta.” Apaixonou-se por uma enfermeira portuguesa, que o acompanhou no regresso a Havana. Fidel Castro, ele próprio, elogiou, num congresso do PC cubano, em 1975, as “virtudes de comunista” do capitão Pedro Rodriguez Peralta, militar, jovem e galã
(Fotografia do Expresso, proibida pela Censura)
O militar, jovem, era cubano. Na madrugada do 25 de Abril, estava preso em Lisboa pelo regime fascista há cinco anos. Chamava-se Pedro Rodríguez Peralta.
Em novembro de 1969, os militares portugueses tinham organizado a “Operação Jove”. O objetivo era capturar Nino Vieira, mítico comandante do PAIGC na “frente sul”. Nino não vinha na coluna rebelde, mas os soldados capturaram um capitão das forças armadas cubanas que estava a dar formação aos homens do PAIGC. Fizeram-se tiros, alguns dos rebeldes foram feridos, Pedro Peralta atingido. Primeiro, foi transferido para Bissau e depois para a capital, onde esteve na prisão de Caxias e, já em 1970, no Hospital Militar, na Estrela, em Lisboa. Foi julgado e condenado.
(Revista FLAMA, n.º 1.409, de 07 de março de 1975)
Nesta história de espiões nem faltou a tentativa de trocar Peralta por um norte-americano, espião, Lawrence Lunt. Mas sem sucesso. O Vaticano foi o mediador.
A pressão dos Estados Unidos para a troca de prisioneiros é enorme. Henry Kissinger assina vários telegramas para a embaixada em Lisboa, dá ordens ao embaixador Scott a pedir audiências a António de Spínola, presidente da Junta de Salvação Nacional após o 25 de Abril, para tratar do assunto.
Aconteceu logo no dia seguinte ao golpe, a 26 de abril de 1974, em que o Departamento de Estado questionava se, após a mudança de governo, se mantinha válida a hipótese de troca de Peralta por Lunt.
A seguir, pode ver-se o exemplo de um desses telegramas:
CONFIDENTIALPAGE 01 STATE 08586760ORIGIN SS-30INFO OCT-01 ISO-00 SSO-00 CCO-00 /031 RDRAFTED BY EUR/IB:EMRABENOLD:MSAPPROVED BY D – MR. RUSHEUR – MR. STABLERARA – MR. LITTLES/S – MR. LUERS——————— 079323Z 262016Z APR 74 ZFF4FM SECSTATE WASHDCTO AMEMBASSY LISBON FLASHC O N F I D E N T I A L STATE 085867EXDISE.O. 11652: GDSTAGS: PINS, POSUBJECT: CAPTAIN PERALTAREF: LISBON 1620RAISE SUBJECT INFORMALLY WITH FREITAS CRUZ IF HE IS STILLAROUND AND ASK HIM IF HE CAN CONTACT JUNTA WITH VIEW TOEXCHANGING PERALTA FOR LUNT RELEASE FROM CUBAN JAIL. KISSINGERCONFIDENTIALNNN
Três dias depois, novo telegrama. Agora, Scott, o embaixador, tinha contactado o embaixador Freitas da Cruz, no Palácio das Necessidades. O embaixador português pedia paciência. A JSN estava a ponderar o caso.
CONFIDENTIALPAGE 01 LISBON 01647 291042Z53ACTION SS-30INFO OCT-01 ISO-00 /031 W——————— 096931R 291023Z APR 74FM AMEMBASSY LISBONTO SECSTATE WASHDC 9483C O N F I D E N T I A L LISBON 1647EXDISE.O. 11652: GDSTAGS: PINS POSUBJ: CAPTAIN PERALTAREF: LISBON 1639; STATE 085867DCM TALKED WITH CALVET DE MAGALHAES AGAIN ON EVENINGAPRIL 28 ON SUBJECT. CALVET SAID THAT HE COULD CONFIRMTHAT PERALTA IS IN MILITARY CUSTODY AND THEJUNTA IS STUDYING THE MATTER AND ASKS FOR OURPATIENCE.SCOTTCONFIDENTIALNNN
A verdade é que, dentro do Governo, havia várias sensibilidades e as prioridades eram outras. Galvão de Melo, membro da JSN, admitia o cenário, segundo um telegrama norte-americano, da troca de prisioneiros exigida por Washington. O embaixador Scott pedia paciência. As semanas sucediam-se. E nada.
As instruções sucedem-se a partir de Washington para um país que vivia ainda a festa do fim da ditadura. A 01 de maio, quando milhões de pessoas saíram à rua para celebrar o Dia do Trabalhador em liberdade, chegava mais um telegrama. Desta vez, seguia, para o pessoal da embaixada dos EUA em Lisboa, o texto que havia sido proposto por Cuba e que a Santa Sé, em 1971, tentou negociar com as partes envolvidas.
CONFIDENTIALPAGE 01 STATE 08986862ORIGIN SS-30INFO OCT-01 ISO-00 /031 RDRAFTED BY ARA/CCA:HVSIMON:MBAPPROVED BY ARA:HWSHLAUDEMANARA/CCA:ESLITTLEEUR/WE:CKJOHNSON(PHONE)EUR/IB:EMRABENOLD (DRAFT)S/S:WHLUERS——————— 001928R 012356Z MAY 74FM SECSTATE WASHDCTO AMEMBASSY LISBONC O N F I D E N T I A L STATE 089868EXDISE.O. 11652: GDSTAGS: PINS, PO, CUSUBJECT: CUBAN EXCHANGE OFFER: LUNT-PERALTAREF: STATE 88767THE FOLLOWING IS TRANSMITTED AS BACKGROUND FOR YOUR USESHOULD THE SITUATION REGARDING THE RELEASE OF PERALTADEVELOP TO THE POINT WHERE THERE IS SOME QUESTION AS TOTHE NATURE OF THE CUBAN OFFER. OPERATIVE PORTIONS FROMTHE CUBAN AIDE-MEMOIRE OF MARCH 30, 1971 GIVEN TO THEVATICAN’S REPRESENTATIVE IN HAVANA: QUOTE (THE AUTHORITIES)WOULD BE WILLING TO RELEASE THE PRISONER (LUNT) ANDDELIVER HIM TO THE NUNCIATURE OR TO WHOMEVER IT MIGHTINDICATE, PROVIDED FREEDOM AND DELIVERY TO CUBAN AUTHORITIES,AT WHATEVER PLACE THEY MIGHT INDICATE, WERE GRANTEDAT THE SAME TIME TO PEDRO RODRIGUEZ PERALTA…END QUOTE.RUSHCONFIDENTIALNNN
Se as autoridades cubanas aceitassem a libertação de Lunt, ao mesmo tempo Peralta seria também libertado. Faltava convencer as novas autoridades de Portugal, saídas do golpe do Movimento das Forças Armadas (MFA) mais preocupadas com outras questões, como a formação do Governo, a descolonização ou o destino a dar aos antigos governantes e aos dirigentes da PIDE.
As manifestações também se sucederam alguns dias frente ao Hospital da Estrela. “O povo português libertará o capitão Peralta”, escrevia o MRPP num comunicado em que pedia “Todos à Estrela”, a 26 de maio de 1974. Todos não, mas foram muitos. No estrangeiro, houve noticias destas manifestações, no ABC e no The New York Times.
A tensão sobe. As forças armadas são chamadas a intervir e dispersam os manifestantes.
Quem comandava as tropas era Jaime Neves, capitão de Abril e mais tarde polémico comandante dos “comandos”, que conta o que aconteceu numa entrevista ao Sol, a 15 de maio de 2009.
“Costa Gomes (da JSN) disse-me para eu ir buscar um cubano, o célebre capitão Peralta, que estava no hospital da Estrela e que os gajos da extrema-esquerda queriam tomar o quartel para o tirarem de lá. Perguntei-lhe se podia usar de todos os meios. Só ao fim de meia hora é que escreveu a meu pedido uma ordem, mas frisando que só em caso extremo podia usar as armas. Lá fui e, pela primeira vez na minha vida, assustei-me e vi-me aflito. (…) Quando eu dou a volta no Largo da Estrela vejo um mar de gente, e os malandros de repente atiram-se todos ao chão e não me deixam andar Eu vou devagarinho e vi os gajos a minha frente a fazerem amor…Tive que andar a levantá-los um a um e lá consegui encostar os carros todos ao fim de duas horas.”
O que aconteceu para a libertação, a 16 de setembro de 1974? Há várias versões. Em 1996, num debate sobre a descolonização de Angola, surge o tema Peralta e Spínola. O debate era entre o embaixador Nunes Barata, adjunto de Spínola em Belém, em 1974, e António Ramos, ajudante de campo de Spínola na Guiné. Hoje, a transcrição dessa discussão está no Arquivo de História Social do Instituto de Ciências Sociais.
O diálogo é elucidativo.
Nunes Barata: Perguntei-lhe [a Spínola] o que se tinha passado em Conacri. Quer dizer, a ideia com que fiquei de Conacri é que era uma operação destinada a derrubar o Sekou Touré. Era destinada a pôr no poder em Conacri um governo que fosse menos anti-português. A ideia era essa: auxiliar a oposição a Sekou Touré e tomar conta do poder. E libertar os portugueses que lá estavam.Ainda a propósito da descolonização da Guiné há o caso Peralta de que se falou muito depois do 25 de Abril – a libertação imediata do capitão cubano Peralta, que o Spínola não queria fazer sem ter a garantia de que também seriam libertados os militares portugueses que estavam presos pelo PAIGC. E foi uma das razões [que levou a que] um dia [tivesse uma] conversa com o Fabião, porque o Fabião mandou libertar uma série de prisioneiros nossos que eram membros do PAIGC sem ter obtido a garantia de que o PAIGC atuaria da mesma maneira, que libertaria os portugueses que lá estavam. Portugueses e Guinéus que trabalhavam nas Forças Armadas portuguesas. O caso Peralta foi esse: [o Spínola] opôs-se à libertação sem haver essa garantia. Disse: “O Peralta é um prisioneiro como outro qualquer, é um capitão cubano que estava com o PAIGC, nós prendemo-lo, se nós o libertamos eles também têm que libertar oficiais e soldados nossos que estão presos.” Mas também aí acabou por ceder às pressões e o Peralta foi libertado […].António Ramos: Disseram-lhe que estavam a entregar presos portugueses em Aldeia Formosa, ele pega no telefone e manda libertar o Peralta e, passado uma hora, desmentem-lhe a libertação dos presos em Aldeia Formosa. Não estavam a entregar coisa nenhuma… Isso aí é uma daquelas golpadas em que nós portugueses temos culpa.
Pedro Rodriguez Peralta, que se enamorou por uma enfermeira portuguesa no Hospital da Estrela, partiu finalmente para Cuba a 16 de setembro.
O jornal ABC noticiou a passagem do cubano por Madrid. O capitão Rodriguez Peralta tornou-se conhecido em Cuba. Fidel Castro elogiou-lhe o heroísmo. Da enfermeira portuguesa, de pouco (ou nada) reza a história.
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