Os distúrbios de domingo, com centenas de turistas britânicos, colocaram Albufeira no mapa. Os problemas, dizem os empresários, não são novos. Reportagem na rua dos bares, onde não se fala português.
É uma espécie de Las Vegas meets Disneylândia, não sem antes passar pelo Carnaval de Torres Vedras — para bêbedos. A quantidade de néons a piscar é imprópria para epiléticos, há réplicas da estátua da liberdade, várias referências à route 66, ecrãs gigantes estilo engodo, a mostrar para fora o que se passa dentro dos sítios, um touro mecânico, jogos de força (paga 10 euros, ganha 100, só tem de ficar 110 segundos pendurado neste varão), e uma quantidade incomensurável de adultos mascarados — ou quase nus, como o inglês quarentão que se passeia de fralda e coleira sadomaso ao pescoço, ou um outro, também inglês, aparentemente mais novo, que escolheu sair de casa de boxers de lycra brancos bem justos e top a condizer, dez tamanhos abaixo do seu, e nada mais.
O número de bares a funcionar nos escassos 550 metros que perfazem a rua, dividida a meio por um cruzamento que leva ao Libertos Club, onde no passado domingo começaram os desacatos com centenas de turistas ingleses de que resultaram pelo menos dois feridos e uma série de balas de borracha disparadas para o ar, podia ser forte concorrente ao recorde do Guinness na categoria, se a houvesse. Não existindo, ajuda pelo menos a que, com os preços baixos e as borlas que oferecem a maior parte dos estabelecimentos (um shot grátis com a primeira bebida é o normal), muita gente se “divirta” ali demais.
São 22h15. Na rua a que se convencionou chamar da Oura, em Albufeira, porque é perto da praia com o mesmo nome (mas que na toponímia do concelho vem inscrita como Avenida Doutor Francisco Sá Carneiro), ainda há muitos turistas a jantar, a comer gelados ou a passar revista às lojas de artesanato, chinelos e biquínis. Há casais, sobretudo de portugueses, a passear com os filhos pequenos, em carrinhos de bebé ou pela mão. Até a perfumaria está aberta e em pleno funcionamento, com uma manicura sósia da fadista Marisa a atender uma cliente no respetivo corner de nails.
Mesmo ao lado, na esplanada de um restaurante de kebabs, um homem louro, bem vestido, de jeans, camisa azul e ténis adidas, luta sozinho para se levantar do chão e ficar pelo menos de joelhos. Não consegue fixar o olhar, tomba uma e outra vez, acaba por desistir, perdido, deitado no chão de barriga para cima e de olhos fechados. Os donos do estabelecimento, impávidos, continuam a conversar, pessoas param para ver, com as crianças ao lado: “Que horror, este já está bêbedo”.
É o normal, “andam todos assim”, desabafará a seguir a artista que pinta quadros de paisagens no passeio, e que por pouco não levou com o homem em cima, quando finalmente se conseguiu levantar e, cambaleante, tentou seguir caminho apenas para cair meio metro à frente e bater violentamente com a nuca na calçada.
Serão 22h30 quando chamamos o 112 e pedimos ajuda. William — conseguirá dizer o nome –, 23 anos (ou 24 ou 25, nunca responde o mesmo), foi deixado sozinho pelos amigos. Não tem carteira nem telemóvel nem forma de voltar para casa, a “20 minutos de distância”. Inglês, mas a viver no Algarve com os pais, fala português: “O que é que bebi? Tudo”. Não quer nem ouvir a palavra hospital, mas quando a ambulância do INEM chega, ao mesmo tempo que um dos amigos que afinal só tinha ido buscar a carteira perdida no bar anterior, ainda diz que quer ir com os bombeiros. “Deixaste-me aqui! Não queres saber!”
Acaba por se deixar examinar mas, convencido pelo amigo, que entretanto o esbofeteou umas vezes, na tentativa de o pôr sóbrio, lá decide que vai ficar na Oura. Soletra o primeiro e o último nome para que a prestação de socorro fique registada, faz uns gatafunhos numa folha oficial à laia de assinatura. “Não podemos levar ninguém contra vontade, ele está consciente, respondeu às nossas perguntas, não podemos fazer mais nada. Ainda havemos de voltar para o vir buscar. Infelizmente é o turismo que temos”, justifica um dos bombeiros. “Passamos as noites nisto, quando não é álcool é um que se cortou, outro que se magoou…”
O que aconteceu no passado domingo no Libertos, com uma rixa a estalar dentro do bar onde decorria uma White Party para várias centenas de turistas britânicos em Albufeira, num programa de 7 dias com tudo incluído por 677 euros (“Portugal Invasion” era o nome do pacote), não é habitual.
Quem o garante ao Observador é o próprio Liberto Mealha: “Estamos aqui há mais de 30 anos, isto aconteceu uma vez. Estou sempre atento, temos porteiro à porta, bêbedos ou todos nus não entram. Estava tudo a correr bem, a festa estava cheia de gente gira e bem vestida, agora basta virem três ou quatro maus e está tudo estragado. Há coisas que é difícil controlar, quando a confusão começou eu parecia uma bola de pingue pongue no meio deles”.
“Deviam ser 2h30 quando começou, um tipo estava com duas garrafas de Moet & Chandon, uma em cada mão, e começou a agitar aquilo e a molhar toda gente. Houve um que não gostou e deu-lhe logo um murro, a partir daí começou tudo à pancada”, descreve o proprietário de outro bar, na Rua da Oura. “Depois veio o corpo de intervenção da GNR e começou a bater em toda a gente, empurrou as pessoas para a rua, que fugiram para a parte de cima da rua. Houve uma série de disparos de balas de borracha. Nos dias a seguir estavam aí com cavalos e cães, obrigaram alguns bares a fechar mais cedo, as pessoas mais velhas, mais conscienciosas, foram-se embora. Isto está a ser mau para o negócio”, lamenta o empresário da noite.
Apesar da raridade dos distúrbios de domingo, só comparáveis ao que aconteceu em junho de 2004, durante o Euro, em que pelo menos 8 pessoas ficaram feridas e 33 cidadãos britânicos (e um holandês) foram detidos, depois de duas noites de confrontos com a GNR, quase todos os proprietários da rua concordam que a zona tem problemas — e não é de agora.
Vítor Barão, desde 1986 à frente do único café tipicamente português que ainda ali resiste, diz que as chatices começaram há cerca de dez anos e que na base estará o tipo de turismo que Albufeira atrai: “Era como se mandássemos 300 tipos dos piores bairros de Portugal passar férias a Inglaterra. Estamos a ficar com muito má imagem. À sexta e ao sábado anda para aí tudo nu, já os vi a eles sem roupa, só com uma corda à volta da cintura, e elas todas contentes a puxarem-nos, como se fosse uma trela. Se fizéssemos como em Espanha, em que quem é apanhado nu na rua paga 600 euros, agora aqui não lhes acontece nada…”.
O proprietário de outro bar aponta um outro problema: o preço reduzido das bebidas (há pints de cerveja a 3 euros e doses de gin, vodca, whisky e bacardi a 2,5) e a oferta cada vez maior de pacotes tudo incluído — tanto a Região de Turismo do Algarve como a AHETA, maior associação hoteleira da região, já solicitaram a subida dos preços praticados na zona, numa tentativa de redução da quota de turistas problemáticos.
“Por um lado, as bebidas são baratas e as doses demasiado bem servidas, que as pessoas que trabalham aí nos bares não têm experiência nenhuma e carregam no álcool. Por outro, há aí uma série de hotéis que fazem o tudo incluído, quando eles saem de lá já vêm bêbedos. Depois há outra coisa: nós não recebemos aqui os ingleses de Londres que têm dinheiro, esses vão para Ibiza, recebemos os montanheiros, que estão habituados a ir para o pub e a embebedarem-se até às 23h00, que depois fecha. E é isso que eles fazem aqui, a essa hora já querem estar todos bêbedos”, contextualiza o empresário.
Já passa dessa hora quando outra ambulância chega à Oura, mais uma vez para acorrer a um caso de embriaguez extrema, desta vez duma rapariga, vinte e poucos anos, que já não ergue a cabeça da mesa da gelataria artesanal onde se encostou. Está com uma amiga, segue com os bombeiros para o hospital, fim de história — pelo menos até à próxima chamada para o 112.
Indiferentes à bebedeira alheia, grande parte dos turistas na rua continua a saltar de bar em bar. A maior parte são ingleses — é o idioma oficial da Oura –, mas também há um grupo de 86 estudantes holandeses, entre os 18 e os 20 anos, ordeiros e bem comportados, basta seguir a bandeira gigante das guias que os orientam na rua para saber onde estão. “Os holandeses portam-se melhor”, garante o representante de uma bebida energética, à porta de um bar onde quem consegue descolar os pés do chão, pegajoso de bebida entornada e entretanto seca, está a dar tudo na coreografia da Macarena. “Numa noite no Algarve devem cometer-se mais loucuras do que no resto do país o ano inteiro.”
Pelo menos na noite desta quinta-feira não há nus integrais a declarar (só um rabo — e o resto –, mostrados por um turista na esplanada de um bar a uma amiga, durante breves segundos). Demonstrações escandalosas de afeto também não, mas talvez isso se explique pela quantidade incrível de grupos compostos só por homens ou só por mulheres: aparentemente é em Albufeira que grande parte dos noivos e noivas britânicos fazem questão de se despedir das vidas de solteiros.
Como andam vestidos de igual ou de forma particularmente espaventosa (há marinheiras, havaianos e pilotos da força aérea, um xerife Woody e um gentleman impecável, de camisa branca, gravata às riscas e blaser azul escuro — com micro calções de ganga rasgados na parte de baixo), e trazem, sobretudo elas, parafernália variada com pilas — há pilas-palhinhas, pilas no fundo de copos de shot pendurados ao pescoço e até uma futura noiva vestida de pila dos pés à cabeça — são fáceis de identificar.
Também é fácil de perceber, pelas faixas que trazem ao pescoço, que pais, mães, tios e tias também fazem parte das comitivas — o que, se não limita o consumo de álcool, pelo menos constrange a tomada de outro tipo de liberdades por parte das nubentes. Preparar uma bebida num copo assente dentro das cuecas de um barman que viu Cocktail, com Tom Cruise, vezes demais; ser vendada; beber a mistela a partir de uma caneca em forma de pila (lá vamos nós outra vez) e com chantilly a acompanhar; e pespegar no final um beijo na boca do tipo pode roçar os limites, ainda será permitido — há registos do momento, ninguém se levantou para o impedir. Mais do que isso, já não.
Com o avançar da noite a Rua da Oura é fechada ao trânsito, as patrulhas da GNR, estacionadas no cruzamento do Libertos, fazem-se mais visíveis, e a animação continua nos bares mas as ambulâncias param de chegar. Ao todo contámos três durante a noite, uma delas nunca percebemos quem foi socorrer.
São 2h20, numa esplanada com música bem alta, um rapaz dorme, refastelado na cadeira, nem pestaneja quando um amigo, ainda eufórico, tenta acordá-lo e devolvê-lo à festa. Em plena estrada, um pouco mais à frente, à porta de outro bar, um grupo de rapazes, de 20 anos no máximo, faz a coreografia do YMCA — pelo menos ali o chão não cola.
O amigo de William está por trás deles, a conversar com uma rapariga, em inglês. Os bombeiros tinham razão, revela, voltaram mesmo à Oura para buscar o amigo. “Caiu ali de umas escadas, abriu a cabeça. Não me deixaram ir na ambulância mas disse-lhes para o levarem para o hospital privado e pus 100 euros no bolso do Will. Ele está bem. Agora vai dormir um bocado e depois vai ficar bem.”
observador.pt
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