Hasél foi preso em Novembro de 2011, durante um período de agitação nas ruas do país, tendo a polícia invadido a casa dele à noite e confiscado como prova os dispositivos digitais, documentos e livros dele. No seu julgamento no supremo tribunal para casos políticos, o juiz decidiu que a única questão era saber se Hasél era ou não o autor das dezenas de vídeos colocados no YouTube e noutros sítios na internet. Como Hasél declarou sem hesitação que era, a condenação foi praticamente automática. Hasél defendeu que tinha direito à liberdade de expressão, mas o juiz decidiu que embora essa liberdade exista em Espanha para algumas formas de expressão, o rap de Hasél constitui um «discurso de ódio», proibido por lei, e além disso, que «o terrorismo é a pior violação dos direitos humanos», pelo que ninguém tem o direito a defendê-lo. (El País, 1 de Abril de 2014)
Isto é uma falsa conversa legal padrão que é a marca do estado espanhol: o «terrorismo» é uma afronta à «democracia», pelo que os acusados disso não têm nenhum direito, os que defendem esses acusados não têm nenhum direito, os que defendem esses direitos das pessoas são «apologistas do terrorismo» e por aí adiante numa espiral crescente. Mas a condenação de um artista à prisão por nada mais que as palavras dele é mais um passo que demonstra a verdade das palavras dele, de que nos países capitalistas «a liberdade de expressão não é mais que a liberdade de mentir ou calar e, tal como a democracia, a liberdade de expressão é uma das maiores fraudes da história».
O que é que significa, diz Hasél, falar em liberdade num país onde seis milhões de pessoas foram roubadas dos seus empregos, meio milhão de pessoas foram expulsas das suas casas, «e se protestares és espancado ou morto»? Um dos vídeos dele mostra-o numa manifestação de «Los Indignados» em Valência em Junho de 2011. A polícia atacou-a de uma forma violenta, tal como fez contra os protestos noutras cidades espanholas durante esses meses. Ela tentou não só parar os protestos, mas também partir cabeças, caras e braços de tantos jovens mulheres e homens quanto possível, como os vídeos clara e indiscutivelmente demonstram. Um outro vídeo de rap, «El reino de los torturadores», mostra as caras e os corpos partidos e esmagados de jovens mulheres e homens presos nas manifestações de massas em defesa dos nacionalistas bascos «terroristas» e posteriormente espancados e torturados sob custódia – em nome da defesa da «democracia».
Como é que Hasél pode ser condenado por «discurso de ódio» e ser uma ameaça à «democracia», quando os torturadores do tempo de Franco são considerados cidadãos respeitáveis, protegidos da prisão pela lei, mesmo quando claramente identificados pelas suas vítimas: há figuras políticas do regime de Franco que continuam proeminentes na vida pública; o principal monumento ao fascismo está intacto e intocável; e é perfeitamente legal e respeitável elogiar publicamente Franco e tentar continuar o trabalho dele?
Talvez o maior «crime» de Hasél – e o maior mérito dele – seja que desde o álbum dele de ruptura em 2005 «Eso No Es Paraiso» (Isto não é o Paraíso) ele faz rap sobre a Espanha como sendo ainda uma ditadura capitalista. Ele diz que a repressão brutal, por um lado, e as eleições e ilusões sobre a «liberdade de expressão» e os supostos grandes sucessos do regime pós-Franco, por outro, são dois lados da mesma moeda, combinando-se com uma «ditadura da estupidez» cultivada pela comunicação social que encoraja uma «síndrome de Estocolmo» em que as massas populares se identificam com o sistema capitalista que os explora e oprime. Ele é muito claro ao dizer que não só o Partido Popular actualmente no governo é o partido sucessor político do regime fascista, mas que o Partido Socialista «é pior ou pelo menos tão mau», e que a «esquerda» parlamentar é apenas um apêndice dos socialistas.
Os socialistas (Hasél escreve as iniciais do partido como P$OE) tornaram possível à classe dominante espanhola mudar de uma forma de regime fascista para uma forma burguesa democrática (eleitoral) quase sem dor, protegendo a continuidade de pessoas e instituições e o essencial do aparelho de estado, e concordando com aquilo a que algumas pessoas chamam «a lei do silêncio» que protege as personalidades fascistas de consequências legais pelo seu regime terrorista. As valas comuns foram mantidas secretas e os assassinos receberam novos empregos ou foram autorizados a manter os seus empregos.
Pablo Hasél ao vivo em Vigo, Galiza |
Como explicou descaradamente um deputado do Partido Socialista ao comentar sobre um novo caso em que os tribunais se recusaram a ouvir a queixa de um antigo activista estudantil contra o agente que o torturou em 1975: «Eu não acho que seria bom para o país. Não sabemos onde começa e onde acaba. Se pegarmos em alguém que era um torturador em 1970, porque é que não vamos perseguir alguns ministros do governo de Franco que ainda estão vivos? Porque não os tribunais? Onde é que fixamos os limites?» (The New York Times, 8 de Abril de 2014). Sim – e se fossemos atrás dos mesmos tribunais antes geridos por Franco e que agora condenaram um jovem rapper à prisão? Não poderia isso expor a eficiência repressiva e a legitimidade do próprio estado?
Não admira que a classe dominante espanhola, apesar das suas actuais roupagens democráticas, mantenha zelosamente a monarquia que suavizou a transição do fascismo aberto para a democracia parlamentar e ainda serve de garante da continuidade do estado espanhol. O ódio de Hasél à monarquia (um dos vídeos dele chama-se «Muerte a los borbones» - Morte aos Bourbons, a família real) vai buscar o seu significado político a este contexto, e tornou-se ainda mais proibido pelo facto de ele não estar a atacar apenas uma relíquia cultural.
Quando Hasél rapa sobre "democracy you mother-fucker" e fala sobre a Espanha e outros «terroristas capitalistas a assumirem o controlo do mundo», avançando violentamente pelo Médio Oriente e levando miséria a todo o lado, ele está a ligar-se à verdade. Mas quando rapa sobre a alternativa, que ele vê como sendo uma sociedade como Cuba ou a Venezuela, há um desligar da verdade. Tão feroz quanto posso ser a crítica dele ao capitalismo, não é suficientemente completa.
Apesar de se oporem aos EUA, esses países não romperam com o quadro do sistema imperialista mundial. A motivação do lucro continua a reger a organização da economia e da sociedade apesar da existência de empresas estatais e de programas de segurança social. O seu destino depende da economia imperialista mundial – e mesmo simplesmente do preço do petróleo ou do açúcar no mercado mundial. Eles não libertaram os seus povos do domínio imperialista no sentido mais profundo de lhes permitir tomar a via da eliminação de todas as relações económicas e instituições capitalistas, de todas as relações sociais escravizadoras e das ideias, costumes e hábitos nascidos da exploração.
Hasél nem sequer tenta retratar Cuba como sociedade libertadora, mas aponta simplesmente que Cuba envergonha Espanha no que diz respeito aos sem-abrigo, ao analfabetismo e outros males sociais. Isto é verdade, mas tem mais em comum com a ideia revisionista (pseudo-marxista) do socialismo como um estado de segurança social que com a concepção de uma revolução libertadora no que diz respeito às relações sociais rumo ao comunismo, onde os seres humanos deixem de ser escravizados pela divisão da sociedade em classes.
Isto está ligado à tendência de Hasél para elogiar todas as lutas armadas contra aquilo a que ele chama imperialismo, como se bastasse a oposição aos EUA e à nossa própria classe dominante, sem se preocupar o suficiente com o conteúdo social e político dessas lutas, com os seus objectivos finais. E quando alguém, como Hasél, se proclama comunista e usa uma t-shirt da URSS, precisa de ser claro quanto à diferença entre o tipo de sociedade não-libertadora e sombria em que a União Soviética se tornou com o derrube do socialismo após a morte de Estaline (ainda que tenha mantido formas socialistas durante várias décadas, como em Cuba), e as transformações revolucionárias do período anterior que foram levadas muito mais adiante na China de Mao. Estas não são apenas questões antigas; elas têm tudo a ver com saber se uma revolução social total é possível, como, e o que é que isso significa hoje. Quando Hasél apela aos jovens a levarem a cabo uma «guerra pelo futuro», o que é esse futuro?
Tão poderosa quanto possa ser a denúncia de Hasél do regime capitalista em Espanha, poderia ser muito mais poderosa – e a posição dele ainda mais poderosamente atraente – se se baseasse numa compreensão mais completa do problema fundamental e da sua solução.
O momento da prisão de Hasél, durante os protestos que desafiaram o sistema por parte de um grande número de jovens e outros espanhóis ao longo de vários meses em 2011, diz algo sobre os medos da classe dominante espanhola. Também é importante que centenas de jovens se tenham manifestado pouco depois, em defesa dele, na cidade natal dele, Lerida. Mais que apenas alguns jovens estão «a olhar para além dos seus próprios umbigos e dos seus horizontes pessoais», como ele diz, e à procura de respostas radicais.
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