Quantas coisas digo que não faço
quantas voltas sem me decidir a pôr meu pé em terra.
Critico os meus olhos e não se convencem;
aconselho minha alma, não aceita os meus conselhos.
Ai quantas coisas se desculpam, dizem:
“talvez mais tarde”. Quantas se demoram.
Em quantas coisas confio
que terei longa vida, e me atraso.
Mas a morte não se atrasa.
Todos os dias brada entre nós
o pregoeiro da caravana: “Alto!”
Depois de setenta e nove anos,
deverei esperar uma vida longa? (…)
Poema da autoria de Abu Imrane Almertuli
Tradução de Elias Terès Sàdaba (espanhol) e Garcia Domingues (português)
Estes são talvez os versos mais conhecidos de Abu Imrane Almertuli, um poeta e místico sufi que havia vivido, durante o século XII, em Mértola, junto às margens do Rio Guadiana. Infelizmente, não encontrámos muitos elementos biográficos a seu respeito. Apenas sabemos que a sua morte respeita duas propostas cronológicas, isto é, terá ocorrido entre 1194-1195 ou somente se terá verificado em 1207. Julga-se ainda que terá chegado a privar, em algum momento, com Al-Uryani, mestre sufi de Loulé (este tinha ainda fama de taumaturgo), e até com o califa almóada Ya'qub al-Mansur. De acordo com António Borges Coelho, este último teria-lhe enviado ainda um mensageiro que deveria proceder à oferta de uma determinada quantia, gesto que Abu Imrane Almertuli terá declinado respeitosamente, retorquindo diante do estafeta - "O teu senhor tem mais necessidade desse dinheiro do que eu. Toma cem dinares de proveniência lícita. Diz-lhe que, para a sua manutenção pessoal, gaste só deste dinheiro e obterá a vitória".
Através deste pequeno relato, é possível extrairmos mais algumas ideias. O biografado não viveria em condições desafogadas, pelo que terá suscitado alguma sensibilidade da parte do poderoso califa que o visitara e que viria a ser reconhecido pelo seu percurso militar irrepreensível na Península Ibérica. Ya'qub al-Mansur foi, por exemplo, o grande vencedor da batalha de Alarcos em 1195, isto depois de ter recuperado muitas praças aos cristãos.
Esta situação económica individual presumivelmente desfavorável também encontra eco no estilo religioso adoptado por Abu Imrane Almertuli. O sufismo era uma corrente mística e contemplativa do Islão, estando muito associada à humildade espiritual e a uma pobreza inequívoca no plano material. Os sufis tentavam desenvolver uma relação íntima, sincera, directa e contínua com Deus, utilizando inúmeras práticas espirituais ensinadas pelo Profeta Maomé, orações e jejuns. Estes movimentos poderiam igualmente incluir rituais de música, dança e cânticos.
No que diz respeito ao poema citado, é possível retirarmos alguns apontamentos sobre o pensamento do autor. Tal como Omar Khayyam (notável polímata persa que viveu entre 1048-1131), também Abu Imrane Almertuli se debruça sobre temáticas existencialistas, procurando abordar o sentido da vida e da morte. Através destes versos, o poeta sufi de Mértola critica o desperdício de tempo por parte dos seres humanos que invariavelmente adiam para mais tarde as acções que haviam planeado para serem concretizadas num determinado momento a brevíssimo prazo. Para Abu Imrane, a morte está sempre omnipresente, sobretudo numa época onde a esperança média de vida era bem inferior à actual. Por conseguinte, seria então aconselhável ou recomendável não deixar para amanhã aquilo que de importante se poderia fazer hoje. Efectivamente, esta é ainda uma visão muito actual nas sociedades contemporâneas e que se encontra revestida de um sentido lógico. O tempo não pára, pelo que não devemos acomodarmo-nos à sombra dos ponteiros do relógio, ou inundar as valiosas horas que temos pela frente com acções fúteis e inconsequentes.
O poema incorpora igualmente metáforas e ainda imagens secularmente inscritas na tradição cultural árabe. A caravana corresponde ao percurso colectivo de todos os seres humanos ao longo das suas vidas. Refere-se às suas escolhas e aos seus rumos. Por seu turno, o pregoeiro personifica a morte porque só ele pode fazer parar a caravana (ou esse percurso), visando o ser humano que a "integra".
Estamos perante um dos versos mais bem elaborados do período cultural do al-Andalus, o qual nos remete para reflexões profundas.
Imagem nº 1 - O Sufismo foi uma das expressões religiosas contemplativas do Islão. Os seus mestres preconizavam uma veneração incondicional a Deus, distanciando-se de qualquer tentação material.
Abu Imrane Almertuli também integrou esta corrente, além de se ter dedicado à poesia, tal como fizera, embora com dimensão universal, Maulana Rumi.
Nota-Extra - Al-Uryani, mestre sufi de Loulé, foi um dos principais tutores de Ibn al-Arabi em Sevilha. De acordo com António Borges Coelho, também Ibn al-Arabi, vulto que viria a adquirir um notável carisma intelectual no seio do al-Andalus (com provas dadas na poesia, filosofia e mística sufi), terá chegado, um dia, e no âmbito de um "episódio concreto", a procurar conselhos espirituais ou teológicos junto de Abu Imrane Almertuli.
Referências Consultadas:
- COELHO, António Borges - Portugal na Espanha Árabe. Vol. IV. Lisboa: Seara Nova, 1975.
- COELHO, António Borges - Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Andalus. Lisboa: Instituto Camões/Colecção Lazúli, 1999.
- https://distractos.wordpress.com/2014/06/10/este-deserto-this-desert/, (Artigo da autoria de António Sá, consultado em 26/01/2017).
oscarreirosdahistoria.blogspot.pt
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