AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O que é ser tripeiro, afinal? - Que vos posso dizer eu dos tripeiros que vocês ainda não saibam? Que, segundo a lenda, os habitantes do Porto passaram a ser assim designados, em virtude do apoio prestado à armada que partiu para a conquista de Ceuta, em 1415, oferecendo aos expedicionários toda a carne disponível, ficando apenas com as tripas para se alimentarem? Mas isso já todos vocês sabem…

O que é ser tripeiro, afinal?




Que vos posso dizer eu dos tripeiros que vocês ainda não saibam? Que, segundo a lenda, os habitantes do Porto passaram a ser assim designados, em virtude do apoio prestado à armada que partiu para a conquista de Ceuta, em 1415, oferecendo aos expedicionários toda a carne disponível, ficando apenas com as tripas para se alimentarem? Mas isso já todos vocês sabem…
 Poderia enaltecer os tripeiros pela sua hospitalidade, pela sua abnegação, pela sua sinceridade e autenticidade, pelo amor desmesurado à cidade que os torna, por vezes, excessivamente bairristas? Mas isso também não é novidade…
Poderia dizer-vos que ser tripeiro é ter o privilégio de passear junto ao Douro, da Ribeira até à Foz, namorar com uma garina na Rua dos Abraços, tropeçar em bueiros entupidos, fechar as malas com aloquetes, tomar cimbalinos e pingos, comer francesinhas ou orelhas, celebrar a noite de S.João lançando balões e saltando a fogueira, ou encher a Avenida dos Aliados para celebrar mais uma vitória do Dragão.
Ou, talvez ainda, que ser tripeiro é ver os putos empolgados em corridas de sameiras, é cerrar fileiras para defender os emblemas da cidade que alguns políticos pretendem destruir ou vender aos interesses dos privados, é o regatear cantado nas manhãs do mercado do Bolhão. Poderia acrescentar que ser tripeiro é chamar paneleiro a um maricas, ou filho da puta a um amigo que nos trai. É ir a um baile para estar no roçocom a namorada, passear por uma “ilha” onde as mães gritam para os filhos: "Anda cá meu filho da puta, quem te deu ordem p'ra comeres esse mulete?" ou os admoestam dizendo "vai fazer piruetas nos cornos do teu pai!"
Mas quem sou eu para vos falar dos tripeiros? Já não vivo no Porto há mais de 40 anos pelo que, ao tentar descrevê-los, corro o risco de estar a traçar um perfil desajustado da realidade actual.Na tentativa de ser mais preciso, pedi ao Beto, um amigo dos tempos da escola primária, que se encontrasse comigo num café da Areosa. Não lhe disse qual era o assunto. Disse apenas que tinha urgência em falar com ele.
Já não via o Beto há uns 10 anos e, enquanto esperava, fiz rewind...



Concluída a instrução primária, o Beto abandonou a escola. Tinha então 14 anos e de imediato se iniciou no ofício de trolha. Foi sol de pouca dura. Dois anos mais tarde tornava-se aprendiz de picheleiro, actividade em que desde logo se mostrou hábil, alcançando enorme popularidade na Areosa, onde nascera. Donas de casa a braços com canos entupidos, lavatórios a transbordar ou sanitas renitentes em cumprir a sua função, recorriam aos bons ofícios do Beto que aliava a sua competência profissional a uma enorme simpatia. Mas Beto não era apenas popular entre as donas de casa. Beata sempre apagada nos lábios carnudos, jeans coçados, t –shirt de cor indefinida , onde despontava um Bob Marley desbotado, passeava , gingão, pela rua entoando os últimos sucessos de Rui Veloso e despertando a cobiça das garinas. 
Quando se aproximava da porta do café que diariamente frequentava ao fim do dia, abrandava a marcha, afagava as repas, puxava o blusão comprado em Vandoma a uns ciganos, endireitava as costas e entrava com ar triunfal. Lançava um olhar rápido pelas mesas a avaliar o gado, para marcar a presa e dirigia-se ao balcão. De costas e olhando fixamente a presa, pedia invariavelmente em voz alta: 
“Inácio! Um lanche e um fino.”
Foi neste momento que o Beto entrou. Mantém o andar gingão e o ritual de afagar asrepas e endireitar as costas antes de entrar, mas a beata apagada já não baila nos seus lábios. Quando me viu abriu os braços que só se fecharam na troca de um longo abraço.
Da última vez que nos encontrámos, prometeste que quando fosses a Lisboa me ligavas, lembras-te?
"Eu num bou a Lisboa, pá… Tenho medo c'aquilo seja cuntagioso, carago! Se calhar nem debia estar aqui cuntigo, pá. Tás há tantos anos, lá ( na verdade ele diz naquela merda) que já te debe ter pegado a maleita, pá".
Mas nem vais ver os jogos do Dragão a Lisboa,Beto?
"Debes de estar maluco, pá! Bejo pela Sport TV,aqui no café, porque é menos uma hipótese que têm de me cuntaminar, carago! Aquelas multidões num são recomendábeis, pá! Lagartos e águias? Porra, toda a gente sabe que têm peçonha, nem era preciso a gripe dos porcos para os cuntaminar!".
Rimos a bom rir até o Beto me tocar no braço e, aproximando os lábios do meu ouvido, perguntar :
"Já biste aquela garina que tá atrás de ti?
Qual? A da mini-saia?
Exacto. Pena ter um foguete, carago, mas tem umas boas trancas, lá isso tem.
Não ganhas juízo Beto? Como é que a Nanda te atura?
Julgas que estamos em Lisboa, pá? Aqui ainda são os machos quem manda, num birámos copinhos de leite… Olha lá, afinal qu’é que me queres?
Estou a escrever uma coisa e queria saber a tua opinião sobre os tripeiros.

Tripeiros é como bocês nos chamam lá em baixo num é?Tá bem, antes tripeiros qu’ alfacinhas qu’é nome de mouro maricão. Tripas é qu'é comida de gente, alface é p'ós grilos!
Lá estás tu a desancar nos lisboetas, Beto. Isso não é complexo?
Cumplexo de quê? De bos ber todos os dias feitos baratas tontas, cada bez mais parecidos co’as gajas e a querer casar gajos cum gajos? Fosga-se!
Pronto, tá bem, Beto,não batas mais no ceguinho e diz-me lá o que pensas dos tripeiros…
Os tripeiros? Somos os máiores , caral…! Isso toda a gente sabe…

Pois é, o Beto está cheio de razão. Os tripeiros são mesmo os “máiores”, excepto quando emigram para Lisboa e perdem as suas características peculiares. Mas quis que fosse ele a dizer-vos isso, porque a minha opinião pode ser suspeita.

Adenda: escrevi este texto para as Crónicas de Graça, uma rubrica que, durante cerca de um ano mantive às sextas feiras com a minha amiga Paty, no Crónicas do Rochedo e no Ares da Minha Graça.
Lembrei-me de a recuperar, a propósito do post que amanhã publico no CR, na rubrica "Bibó Porto"


cronicasontherocks.blogspot.pt

Sem comentários: