FÁBIO, O JIHADISTA QUE QUERIA SER ESTRELA DA BOLA
Nascido e criado na linha de Sintra, foi para Londres aos 19 anos em busca de uma carreira na Premier League. Acabou na Jihad. Luta desde outubro de 2013 pelo Estado Islâmico, na Síria. Na semana em que os jihadistas decapitaram David Haines, um trabalhador humanitário britânico - o terceiro refém a ser morto pelo movimento terrorista -, o Expresso recupera um artigo publicado na edição de 6 de setembro do semanário.
FR7. A sigla que usava nas redes sociais quando era adolescente diz tudo sobre o seu sonho: Fábio queria jogar futebol, ser profissional, um Cristiano Ronaldo saído dos subúrbios da Grande Lisboa, um avançado de talento apurado nos vários clubes de bairro que frequentou ao longo da Linha de Sintra. Não ficava muito tempo em cada um, era brigão, inconformado, impaciente. Queria mais.
Queria ser como o craque, seguir-lhe os passos de chuteiras. Tinha o estilo 'jogador da bola' - cabelo encaracolado à David Luiz, físico de modelo - mas o talento não entusiasmou nenhum olheiro. Em 2011, aos 19 anos, deu o salto, emigrou para Londres, sozinho, com a ambição de jogar na Premier League. Era o tudo ou nada. Tornou-se um dreamchaser, caçador de um sonho, mas no fim foi ele o apanhado na rede de captação de jihadistas para a Síria.
Em dois anos converteu-se ao islamismo, radicalizou-se e casou-se com uma portuguesa: Ângela, cuja história o Expresso revelou na última edição. A cronologia desses dias constrói-se com os relatos de amigos e familiares, que conversaram com o Expresso. Nenhum quis ser identificado. E começa no apartamento, onde alugou um quarto, no bairro de Leyton, na zona oriental de Londres, morada de uma das maiores comunidades muçulmanas do Reino Unido. E adensa-se num ringue de Muay Tai, no ginásio de uma organização de solidariedade social destinada a integrar jovens através das artes marciais. Fábio não tinha emprego e apenas jogava futebol em clubes amadores, à experiência. Passava ali muito tempo.
Entre o bairro e o ginásio construiu um novo grupo de amigos. E tornou-se mais próximo de três deles, portugueses, irmãos, entre os 25 e os 29 anos. Como ele, tinham crescido na Linha de Sintra, a poucos quilómetros uns dos outros. Como ele, tinham raízes em Angola. Mais velhos, conhecedores de Londres, tornaram-se uma referência. Ao contrário dele, eram muçulmanos, convertidos há uma década. Mas essa diferença acabou por se esbater.
Fábio chamava-lhes irmãos. E recebia deles companhia, apoio, alimentação, até dinheiro. As conversas passavam muito pelo Islão e o futebolista começou a interessar-se. Nunca fora religioso, mas convenceram-no a ler o Corão, a perceber o Islão. A geografia ajudou à mudança. Moravam todos perto de uma mesquita há muito referenciada pelas autoridades britânicas por incitar ao extremismo e apoiar financeiramente o conflito na Síria. Foi aí que os três irmãos se tornaram muçulmanos. E rapidamente, também Fábio começou a falar em conversão. O fim de um namoro e a desilusão do futebol deixaram-no sem rumo. Fez treinos de captação em vários clubes e até integrou um clube britânico amador, de caça-talentos, mas sem sucesso. Voltar para Portugal não era opção. Recrutá-lo para a Jihad (guerra santa) foi só mais um passo.
Os amigos e familiares não-muçulmanos começaram a estranhar as conversas. Denegria a religião católica, citava versículos do Corão, rezava e até elogiava quem ia lutar como mujahid para a Síria. "O miúdo rebelde tornou-se um miúdo radical", lamenta uma pessoa próxima de Fábio.
Os amigos e familiares não-muçulmanos começaram a estranhar as conversas. Denegria a religião católica, citava versículos do Corão, rezava e até elogiava quem ia lutar como mujahid para a Síria. "O miúdo rebelde tornou-se um miúdo radical", lamenta uma pessoa próxima de Fábio.
De Fábio para Abdu
Março de 2013 foi o mês da mudança. No início o ego estava em alta. Dia 3, no Twitter, escrevia: "Talento? Eu tenho... Herdei-o das minhas raízes. Plantei a semente, agora colho os frutos". A cada jogo um novo tweet: "A maratona para me tornar uma lenda continua". Mas a meio do mês começou o desânimo: "Preciso de uma mudança". Dia 31, escreve pela última vez nesta rede social: "Tomei a decisão da minha vida". Em outubro surge no Facebook já na Síria, e com um novo nome árabe: Abdu. "Cheguei há duas semanas a Shaam [Grande Síria], Alhamdulillah, este país é maravilhoso. A Jihad é a única solução para a Humanidade."
Dois dos três irmãos da linha de Sintra viajaram com ele. Continuam todos lá. Ao grupo juntou-se outro português, algarvio, 28 anos, atualmente afastado da frente de combate: foi ferido com gravidade nas pernas. Todos eles fazem parte do contingente de 10 a 15 jihadistas com passaporte português que têm combatido nas fileiras do Estado Islâmico (EI), na Síria e no Iraque (ver texto ao lado).
Até ao início deste ano, a família não sabia do paradeiro de Fábio. Descobriram, por acaso, a sua página de mujahid nas redes sociais. O rapaz da linha de Sintra que queria ser estrela de futebol integrava agora a brigada Kataub al Muhajireen do EI, constituída por combatentes de países ocidentais, como a Grã-Bretanha, França, Espanha e Alemanha. Abdu aparece de cara descoberta, sorridente, armado, a bandeira preta e branca do EI a surgir em quase todas as fotografias.
Foi um choque para quem o viu crescer. "Estamos muito preocupados com a vida dele. Queremos que ele volte para casa", desabafou ao Expresso um familiar. Contactá-lo não tem sido fácil. O Facebook tem sido a única janela de acesso. Entre comentários de extremistas islâmicos a exaltar os feitos de Abdu na frente de guerra, surgem lamentos em português da mãe e da tia: "Responde à minha mensagem Fábio" ou "Estou muito preocupada meu sobrinho. Bj saudades".
Em abril deste ano, o Expresso conseguiu conversar com ele através do chat do Facebook. Nunca confirmou ser português. "Não se trata de nacionalidades. A partir do momento em que se aceita o Islão seguimos os desígnios de Alá. Nessa altura percebemos que não há razão para não vir [para a Síria]". Sempre em inglês fluente, quis apenas falar do Islão, da guerra santa e da decadência do Ocidente, sempre em tom de censura, de acusação. "Alá sabe o que vai no coração de todas as criaturas. Ele criou-nos a todos. Portanto, se pretendem mentir sobre os homens que abandonam as suas casas e famílias para dar as suas vidas em nome das pessoas oprimidas, por favor mudem as vossas intenções."
Em abril deste ano, o Expresso conseguiu conversar com ele através do chat do Facebook. Nunca confirmou ser português. "Não se trata de nacionalidades. A partir do momento em que se aceita o Islão seguimos os desígnios de Alá. Nessa altura percebemos que não há razão para não vir [para a Síria]". Sempre em inglês fluente, quis apenas falar do Islão, da guerra santa e da decadência do Ocidente, sempre em tom de censura, de acusação. "Alá sabe o que vai no coração de todas as criaturas. Ele criou-nos a todos. Portanto, se pretendem mentir sobre os homens que abandonam as suas casas e famílias para dar as suas vidas em nome das pessoas oprimidas, por favor mudem as vossas intenções."
Durante a conversa, o jovem combatente respondeu várias vezes com excertos do Corão. Sobre ele e sobre o local onde se encontrava nada disse: "Isso é confidencial". Mas o acompanhamento da sua atividade nas redes sociais desde outubro de 2013 permite traçar o percurso do português no Médio Oriente: ficou primeiro em Damasco, depois foi para Alepo, agora está em Raqqa, no norte da Síria, entre a Turquia e o Iraque, a primeira cidade que os radicais islâmicos tomaram a Bashar al-Assad.
A cada post - e são muitos e frequentes - revela o seu radicalismo: exalta o atentado do 11 de Setembro ("Lembramos à América o que aconteceu às suas preciosas torres"), exibe as suas armas de guerra ("Fui ao toys'r'us e arranjei um novo brinquedo") e deixa-se fotografar ao lado dos companheiros de combate, como o rapper alemão Deso Dog, que se transformou na estrela da Jihad Abu Talha al-Almani: ou Abu, um dos irmãos portugueses que o converteram ao Islão.
Há menos de um mês, Abdu subiu mais um degrau na sua vida consagrada ao Islão: aos 22 anos casou-se com uma mulher muçulmana. Umm, 19 anos, chegou à Síria no início de agosto, o rosto coberto por um niqab preto, que só deixa a descoberto os olhos escuros. Nunca se tinham visto antes. O namoro e o noivado fizeram-se online, ela em frente a um computador na Holanda, nos arredores de Utrech; ele em Raqqa. Em comum descobriram o radicalismo islâmico, a oposição ao Ocidente e a nacionalidade portuguesa. Umm nasceu Ângela, filha de um casal de emigrantes alentejanos, também ela a única muçulmana da família, também ela convertida em tempo recorde influenciada pelos amigos.
A 10 de agosto, a lusodescendente aproveitou a ausência da mãe e fugiu. Agora vive com Abdu numa zona residencial juntamente com vários casais ocidentais, da Holanda, Inglaterra e Alemanha. Só sai de casa com autorização do marido e vai às compras, ao mercado, armada com uma pistola de 9mm. A sua página do Facebook é uma janela para o dia a dia do casal de jihadistas portugueses: desmente o cenário da guerra, descreve ruas cheias de gente e crianças que brincam, exalta a felicidade de viver de acordo com a lei islâmica. Não há medo, as bombas são oportunidades para serem mártires por Alá. E confessa o desejo de ser mãe quanto antes.
Esse passo poderá ter de esperar. Na foto que Abdu pôs esta semana na sua página pessoal, o muhajid surge de corpo inteiro, ar sério, a segurar uma bebida energética. Em jeito de legenda, alguém o localiza em Mossul. Fábio foi para o Iraque lutar pelo califado
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Doze perguntas e respostas sobre os portugueses na Jihad
Quem são, quantos são, de onde vieram, como chegaram à Síria, onde lutam... O perfil possível dos portugueses que integram as fileiras do Estado Islâmico.
1. Quantos portugueses lutam atualmente na Síria e no Iraque?
Estão referenciados pelos serviços de informações entre 10 a 15 cidadãos nacionais, a combater na Síria e no Iraque.
Estão referenciados pelos serviços de informações entre 10 a 15 cidadãos nacionais, a combater na Síria e no Iraque.
2. Quem são estes jihadistas?Têm entre 19 e 28 anos, instruídos, muitos com frequência universitária. Há licenciados em Gestão, futebolistas, engenheiros de sistemas, estudantes de desporto... A maioria nasceu e cresceu em Portugal e emigrou há poucos anos para outros países da Europa. Em abril, o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) confirmava que alguns "detinham um estatuto de residência temporária noutros países europeus, embora apresentem conexões sociais e familiares ao território nacional". Há também vários casos de lusodescendentes, em França e na Holanda.
3. São todos muçulmanos?Sim, mas convertidos na adolescência ou já adultos. A maioria nasceu e cresceu no seio de famílias cristãs, muitos serão até batizados.
4. Combatem todos nas fileiras do Estado Islâmico (EI)?Todos os casos identificados pelo Expresso lutam pelo EI. A única mulher, Ângela ou Umm , não participa na luta armada - faz a sua Jihad na Internet e é casada com Fábio , do EI.
5. De que locais são originários?Há grupos distintos e casos isolados. Dois irmãos (um dos quais se chama Celso), de 26 e 30 anos, e Fábio (Abdu), de 22, cresceram em duas localidades diferentes da Linha de Sintra, nos arredores de Lisboa. Conheceram-se em Londres, em Leyton, para onde emigraram com uma década de distância. Ao 'grupo londrino' juntou-se ainda um cidadão algarvio, de 28 anos. Terão ido todos juntos para a Síria. Ângela, filha de pais alentejanos, cresceu na Holanda, nos arredores de Utrecht, e daí fugiu em agosto para casar com Fábio. Micael, lusodescendente de pais transmontanos, trocou os subúrbios de Paris pela Síria - com ele foi também Santos, outro filho de emigrantes portugueses em França.
6. Onde se radicalizaram?Tornaram-se muçulmanos e radicalizaram-se fora de Portugal: em Inglaterra, Holanda e França. Há também indivíduos referenciados no Luxemburgo, pelo apoio público e promoção continuada à luta do Estado Islâmico. Na maioria dos casos, os processos de conversão ao Islão e posterior apoio à Jihad foram muitos rápidos - entre um a três anos. Pelo menos quatro dos portugueses que lutam atualmente na Síria foram aliciados para a guerra santa no bairro de Leyton, nos arredores de Londres, onde existe uma mesquita referenciada como radical pelas autoridades britânicas.
7. Tinham experiência militar?Não. Alguns eram praticantes (ou mesmo atletas federados) de artes marciais, como o judo, Muay Thai ou Jiu Jitsu, mas sem passado militar. A maioria nunca tinha pegado numa arma. Pelos relatos feitos ao Expresso, depois de chegarem à Síria todos passaram alguns meses em campos de treino terrorista antes de irem para a frente de combate.
8. Estão todos na Síria ou também no Iraque?A maioria vive em Raqqa, a 'capital' informal do Estado Islâmico, ou na província de Aleppo, zonas do norte da Síria, controladas pelos radicais. Na semana passada, pelo menos um dos portugueses esteve a combater no Iraque, em Mossul, tendo entretanto regressado à Síria.
9. Como chegaram à Síria?Apanharam um voo até à Turquia. E daí, com apoio de redes organizadas ao serviço do Estado Islâmico, foram de carro até à Síria, a maioria até Alepo ou Raqqa.
10. Quantos portugueses já morreram?Está confirmada a morte de um lusodescendente, filho de um casal de portugueses que emigrara há longos anos de Tondela para Toulouse. Abu Osama Al-Faransi - o nome árabe que adotou após a conversão - morreu no Iraque, num ataque suicida a 22 de maio deste ano. Levou um carro armadilhado até às imediações de um complexo militar do exército iraquiano, em Umm Al-Amad, nos arredores de Bagdade, e aí acionou o dispositivo: morreu ele e dezenas de civis e militares. Há alguns meses, outro jihadista português, algarvio, ficou ferido com gravidade nas pernas - continua na Síria mas não regressou aos combates.
11. Podem ser presos caso decidam regressar a Portugal ou à Europa?Um dos maiores receios dos países ocidentais é o do regresso a casa de muitos dos seus jovens cidadãos que estão a combater nas fileiras do Estado Islâmico, na Síria e no Iraque. Mas, ao contrário de outros países - onde a polícia pode apreender passaportes ou simplesmente proibir de viajar cidadãos suspeitos, no âmbito da legislação antiterrorista -, em Portugal isso não é legal. O Expressosabe que em 2013 um destes jihadistas esteve em Portugal, antes de regressar novamente ao Médio Oriente. O mesmo já se terá passado este ano com um outro combatente. As autoridades nacionais seguem com atenção o rasto destes jovens radicais, mas não têm argumento legal para os deter, para proibir o regresso a Portugal ou impedir que viajem de novo para a Síria ou para o Iraque. Ou seja, quando as autoridades portuguesas identificam algum potencial jihadista, a única coisa que podem fazer é abordá-lo e tentar dissuadi-lo de viajar para os campos de batalha, explicando os riscos que correm, bem como os problemas que podem vir a ter no futuro. O Expresso sabe que isso tem acontecido nos últimos meses.
12. Estão referenciados outros portugueses, a viver na Europa mas que apoiam e promovem a Jihad?Sim. No Luxemburgo, por exemplo, vive um lusodescendente de 28 anos, convertido numa mesquita de argelina. Surge no Facebook de barba longa e traje muçulmano a apelar ao coração dos jovens islâmicos para as batalhas que se travam na Síria. Ângela, a 'noiva portuguesa da jihad', também estava apenas referenciada por promoção da guerra santa e acabou por viajar da Holanda para a Síria. Várias fontes ouvidas pelo Expresso adiantam que há cada vez mais portugueses interessados nos vídeos difundidos pelo Estado Islâmico e que tem havido um aumento significativo na consulta a sites e blogues de propaganda e recrutamento. As autoridades portuguesas estão a acompanhar esta tendência "na medida dos meios disponíveis".
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