Guerra na Guiné
A batalha por Guidage - 16/05/1973
Apresentam-se a seguir 2 textos, sobre a batalha travada por Guidage:
Guidage ao Norte e Guileje ao sul, foram as duas pontas da tenaz da Operação Amilcar Cabral, lançada pelo PAIGC.
Sabendo que pode contrariar eficazmente o domínio aéreo, o PAIGC concentra grandes efectivos e meios, junto de Guidage e Guileje, numa manobra clássica de cerco e aniquilação.
Apoiado pelas suas bases junto à fronteira, o PAIGC tinha os meios e um fluxo de reabastecimentos fácil, que lhes permitia um elevado e sustentável poder de fogo.
A forte pressão do PAIGC sobre Guidage, e o bloqueio às colunas de reabastecimentos, levou à arriscada missão de destruir os depósitos de material existentes, na base de Cumbamori em território senegalês.
A destruição de Cumbamori, levada a cabo pelos comandos africanos (Operação Ametista Real), facilitou a desarticulação do cerco a Guidage.
"Ametista Real, por João de Almeida Bruno
A operação mais importante que comandei foi, no entanto, na Guiné. O nome de código foi Ametista Real - eu sempre dei nomes de pedras preciosas às operações que comandei. Penso que, na altura, foi a operação de maior envergadura daquele tipo, fora do território nacional. Comandava então o Batalhão de Comandos Africanos que foi, julgo, uma das unidades que ganharam o Guião de Mérito, um estandarte especial que penso só ter sido também atribuído à unidade do então capitão de Infantaria Maurício Saraiva, meu grande amigo. De qualquer modo esses guiões estão hoje na Amadora.
A 16 de Maio de 1973 fui chamado de urgência ao Comandante-Chefe; o então general António de Spínola, que me traçou um panorama geral da guarnição militar de Guidage, junto à fronteira com o Senegal. Estava isolada por terra por causa dos fortíssimos campos de minas lançados pelo inimigo. As colunas logísticas, enquadradas por forças pára-quedistas, não conseguiram romper. Era difícil o reabastecimento aéreo e a evacuação de feridos, por causa dos mísseis terra ar Strella de que dispunha o PAIGC. E era grande o desgaste físico e psicológico da guarnição.
Tudo indicava que o inimigo pretendia lançar um assalto final a Guidage para tirar dividendos internos e externos. E, por isso, era necessário aliviar a pressão: o único caminho possível era pelo Norte, pelo território senegalês.
A missão foi dada de forma clara e simples: atacar a base inimiga de Kumbamory, que ficava uns cinco quilómetros a norte da fronteira. Era preciso, no mínimo, desarticular o dispositivo inimigo. Se possível, destruir a base ou, pelo menos, causar o maior número possível de baixas e destruir a maior quantidade possível de material.
Foi decidido transportar a força, em meios navais, de Bissau para Bigene. E lançar depois uma operação de curta duração, em terra, por forma a atacar a base inimiga a partir de uma base de ataque já instalada em território senegalês. "Limpar", por fim, a região de acesso a Guidage, recolhendo as nossas forças a essa povoação.
O apoio de fogos ficaria a cargo de seis baterias fixas de 10,5 e de heli-canhões. Verificou-se que não eram possíveis reabastecimentos e evacuações por helicóptero. Os mortos e os feridos teriam de ser transportados para Guidage sem meios auxiliares, e a haver reabastecimento de munições ele teria de ser feito nos paióis inimigos detectados. Nada se sabia quanto à localização exacta do objectivo, a não ser que era na área da povoação senegalesa de Kumbamory.
Na tarde de 19 de Maio o batalhão embarcou para Bigene, onde chegou pouco antes do pôr-do-sol. Foram constituídos três agrupamentos, com uma companhia de comandos cada um. Eram comandados pelos capitães Raúl Folques (que ficaria gravemente ferido) e Matos Gomes e pelo capitão pára-quedista António Ramos. Este comandava o agrupamento a que ficou adstrito o grupo especial comandado pelo alferes Marcelino da Mata, especializado em demolições.
Nele me integrei, o batalhão entrou em território senegalês pelas seis da manhã do dia 20. A artilharia de Bigene concentrava entretanto o seu fogo sobre o objectivo, mais como manobra de diversão do que como forma de destruição, uma vez que não era conhecida com rigor a localização da base inimiga. Hora e meia depois os agrupamentos estavam dispostos na base de ataque, a sul da povoação senegalesa.
Foi necessário cortar a estrada que corria paralela à fronteira e «reter» o comandante de um batalhão de pára-quedistas senegalês que chegara entretanto em missão de reconhecimento. A conversa entre mim e ele foi cordial e amistosa. E franca, claro. O comandante senegalês sabia perfeitamente da existência da base do PAIGC, mas argumentava que ela ficava em território português. Pedia assim que abandonássemos rapidamente o Senegal e garantia que não iria haver nenhum incidente diplomático. E não houve.
A operação mais importante que comandei foi, no entanto, na Guiné. O nome de código foi Ametista Real - eu sempre dei nomes de pedras preciosas às operações que comandei. Penso que, na altura, foi a operação de maior envergadura daquele tipo, fora do território nacional. Comandava então o Batalhão de Comandos Africanos que foi, julgo, uma das unidades que ganharam o Guião de Mérito, um estandarte especial que penso só ter sido também atribuído à unidade do então capitão de Infantaria Maurício Saraiva, meu grande amigo. De qualquer modo esses guiões estão hoje na Amadora.
A 16 de Maio de 1973 fui chamado de urgência ao Comandante-Chefe; o então general António de Spínola, que me traçou um panorama geral da guarnição militar de Guidage, junto à fronteira com o Senegal. Estava isolada por terra por causa dos fortíssimos campos de minas lançados pelo inimigo. As colunas logísticas, enquadradas por forças pára-quedistas, não conseguiram romper. Era difícil o reabastecimento aéreo e a evacuação de feridos, por causa dos mísseis terra ar Strella de que dispunha o PAIGC. E era grande o desgaste físico e psicológico da guarnição.
Tudo indicava que o inimigo pretendia lançar um assalto final a Guidage para tirar dividendos internos e externos. E, por isso, era necessário aliviar a pressão: o único caminho possível era pelo Norte, pelo território senegalês.
A missão foi dada de forma clara e simples: atacar a base inimiga de Kumbamory, que ficava uns cinco quilómetros a norte da fronteira. Era preciso, no mínimo, desarticular o dispositivo inimigo. Se possível, destruir a base ou, pelo menos, causar o maior número possível de baixas e destruir a maior quantidade possível de material.
Foi decidido transportar a força, em meios navais, de Bissau para Bigene. E lançar depois uma operação de curta duração, em terra, por forma a atacar a base inimiga a partir de uma base de ataque já instalada em território senegalês. "Limpar", por fim, a região de acesso a Guidage, recolhendo as nossas forças a essa povoação.
O apoio de fogos ficaria a cargo de seis baterias fixas de 10,5 e de heli-canhões. Verificou-se que não eram possíveis reabastecimentos e evacuações por helicóptero. Os mortos e os feridos teriam de ser transportados para Guidage sem meios auxiliares, e a haver reabastecimento de munições ele teria de ser feito nos paióis inimigos detectados. Nada se sabia quanto à localização exacta do objectivo, a não ser que era na área da povoação senegalesa de Kumbamory.
Na tarde de 19 de Maio o batalhão embarcou para Bigene, onde chegou pouco antes do pôr-do-sol. Foram constituídos três agrupamentos, com uma companhia de comandos cada um. Eram comandados pelos capitães Raúl Folques (que ficaria gravemente ferido) e Matos Gomes e pelo capitão pára-quedista António Ramos. Este comandava o agrupamento a que ficou adstrito o grupo especial comandado pelo alferes Marcelino da Mata, especializado em demolições.
Nele me integrei, o batalhão entrou em território senegalês pelas seis da manhã do dia 20. A artilharia de Bigene concentrava entretanto o seu fogo sobre o objectivo, mais como manobra de diversão do que como forma de destruição, uma vez que não era conhecida com rigor a localização da base inimiga. Hora e meia depois os agrupamentos estavam dispostos na base de ataque, a sul da povoação senegalesa.
Foi necessário cortar a estrada que corria paralela à fronteira e «reter» o comandante de um batalhão de pára-quedistas senegalês que chegara entretanto em missão de reconhecimento. A conversa entre mim e ele foi cordial e amistosa. E franca, claro. O comandante senegalês sabia perfeitamente da existência da base do PAIGC, mas argumentava que ela ficava em território português. Pedia assim que abandonássemos rapidamente o Senegal e garantia que não iria haver nenhum incidente diplomático. E não houve.
Pelas oito horas a Força Aérea iniciou um pesado bombardeamento, a que se seguiu o assalto. Um pouco à sorte, já que não se sabia onde ficava a base. E a sorte foi decisiva.
Quase de imediato os dois agrupamentos que iam à frente detectaram vários depósitos de material de guerra. O terceiro agrupamento, que estava em reserva e logo deixou de estar, envolveu-se em violento combate com um forte grupo inimigo que dispunha de canhões sem recuo e de metralhadoras pesadas: defendia o depósito principal, o de foguetões de 122 mm.
Não é fácil descrever a acção. A tónica principal deve ter sido a confusão, não só a própria da batalha, como a decorrente do facto de se enfrentarem adversários da mesma cor e com armamento semelhante, e de ser impossível delimitar claramente a frente. E foi nesta grande confusão que o posto de comando aéreo teve um papel decisivo: os agrupamentos, correndo embora o risco de serem referenciados, iam indicando a sua posição com sinais pirotécnicos.
Pela rádio, o posto de comando aéreo ia-me informando do movimento das tropas. Pelo meio-dia, a missão estava cumprida.
O agrupamento, que era comandado pelo capitão Folques ficou, a dada altura, praticamente sem munições. Foi então dada ordem de retirada, o que equivalia a continuar na direcção de Guidage. Foi um movimento lento, interrompido por vários e violentos combates, até que, pelas quatro da tarde, o inimigo abandonou o terreno.
O agrupamento, que era comandado pelo capitão Folques ficou, a dada altura, praticamente sem munições. Foi então dada ordem de retirada, o que equivalia a continuar na direcção de Guidage. Foi um movimento lento, interrompido por vários e violentos combates, até que, pelas quatro da tarde, o inimigo abandonou o terreno.
Pelas seis da tarde as nossas tropas chegaram a Guidage. Depois continuaram a pé, até serem recolhidas, no dia seguinte, pela Marinha de Guerra, no rio Cacheu.
Os resultados conseguidos foram assinaláveis e foi aliviada a pressão sobre Guidage, cuja guarnição militar recuperou a iniciativa depois de rendidos os seus efectivos.
Não é sem uma ponta de orgulho que me vejo forçado a afirmar que nesta operação ficou patente o alto espírito agressivo dos Comandos Africanos, a sua capacidade excepcional de orientação na selva e a sua invulgar resistência física. Ficou também patente que os quatro oficiais europeus que comandaram a acção foram decisivos nos momentos mais difíceis, sobretudo pelo bom senso e capacidade de decisão que revelaram.
O inimigo sofreu 67 mortos. As nossas tropas 14 mortos (dos quais dois alferes), onze desaparecidos, mais tarde confirmados como mortos, e 23 feridos graves (dos quais três oficiais e sete sargentos). Ao inimigo foram destruídos 22 depósitos de material de guerra."
Fonte: livro "Os Últimos Guerreiros do Império", Lisboa, autores vários, Edições Erasmos
Não é sem uma ponta de orgulho que me vejo forçado a afirmar que nesta operação ficou patente o alto espírito agressivo dos Comandos Africanos, a sua capacidade excepcional de orientação na selva e a sua invulgar resistência física. Ficou também patente que os quatro oficiais europeus que comandaram a acção foram decisivos nos momentos mais difíceis, sobretudo pelo bom senso e capacidade de decisão que revelaram.
O inimigo sofreu 67 mortos. As nossas tropas 14 mortos (dos quais dois alferes), onze desaparecidos, mais tarde confirmados como mortos, e 23 feridos graves (dos quais três oficiais e sete sargentos). Ao inimigo foram destruídos 22 depósitos de material de guerra."
Fonte: livro "Os Últimos Guerreiros do Império", Lisboa, autores vários, Edições Erasmos
Publicado no site em 21/05/2006, e revisto em 21/07/2006 por Carlos Fortunato
Web portal: http://portalguine.com.sapo.pt
Guerra na Guiné
As batalhas de Guilege e Gadamael Porto - 22/05/1973
Apresentam-se a seguir 4 textos, sobre a queda de Guilege e a defesa de Gadamael Porto:
Obus 140mm em Guileje
Fonte da foto: AD - Projecto Guiledje
A queda de Guilege a 22/05/1973, na sequência da operação "Amilcar Cabral" é um acontecimento importante, porque Guilege não era um quartel qualquer, era ai que estava instalado o comando operacional da zona, o COP5, era um quartel bem fortificado, e estava preparado para responder ao fogo de artilharia pesada do inimigo.
Estes aquartelamentos junto à fronteira, tinham como objectivo ser a primeira linha de contenção das infiltrações do inimigo, e serviam de apoio ao lançamento de operações, muitas vezes realizadas por tropas especiais.
O crescente poderio do PAIGC nas zonas de fronteira, acabou por fazer com que algumas guarnições limitassem as suas acções ficando praticamente confinadas aos aquartelamentos, e fossem alvos de frequentes flagelações
O facto de ter sido abatido um avião Fiat G-91 em 25/03/1973 com um míssil Strella, criou grandes limitações no que se refere ao apoio aéreo, pois para além de não se poder contar com os Fiats nos momentos críticos, o mais grave era não se poder contar com os hélis para fazerem as evacuações, isto significava ver um camarada ferido morrer, sem se poder fazer nada para o salvar, o que era altamente desmoralizador.
O PAIGC nesta altura actuava com uma estratégia diferente, pois demonstrando grande mobilidade, passou a concentrar elevados meios e efectivos nos objectivos seleccionados, criando uma pressão terrível sobre os mesmos.
Sem se poder contar com os meios aéreos, as forças especiais eram quem fazia a diferença, mas os seus recursos eram limitados, e neste caso o IN atacou a norte e a sul em simultâneo.
É importante dizer que mesmo as forças especiais começavam a ficar desmoralizadas, devido ao elevado número de baixas que sofriam, (na Operação Ametista Real, realizada para "libertar" Guidaje, a norte, o batalhão de comandos sofreu 10 mortos, 22 feridos graves e 3 desaparecido). No primeiro trimestre de 1973 as NT tiveram 135 mortos, enquanto em igual período em 1972, tinham tido apenas 48.
A operação "Amilcar Cabral" desencadeou em simultâneo um ataque a norte em Guidaje, e outro a sul em Guilege. O ataque a Guilege pelo PAIGC envolveu efectivos estimados em 650 homens, nos quais se incluía a bateria de artilharia de Kandiafara, com morteiros 82mm e 120mm, canhões de 85mm e 130mm, a guarnição de Guidage contava pelo seu lado com cerca de 150 homens, e como principal arma pesada os obuses 140mm.
O major Alexandre Coutinho e Lima, foi a Bissau e falou com Spinola no dia 20, no dia 21 voltou a Guilege, a qual continuava sobre forte pressão do IN, tendo caído nesse dia 45 granadas no aquartelamento. O major reuniu com os seus oficiais nesse dia e às 18h30 tomou a decisão de retirar para Gadamael. No dia seguinte a guarnição e a população partem às 5h30 para Gadamael Porto.
A retirada de Guilege à pressa, origina algumas falhas na destruição do material ai existente, conforme refere o historiador guineense Leopoldo Amado:
"Aliás, é curioso notar que foi igualmente na ronda negocial de Argel que as duas delegações aprovaram o plano de retracção do Exército português na Guiné, sintomaticamente, plano esse praticamente elaborado por Pedro Pires com base em documentos militares do QG do Comando-Chefe encontrados aquando da tomada de Guiledje, de resto, documentos que continham informações altamente classificadas e, portanto, fidedignas, sobre a composição numérica das unidades do Exercito português espalhados pelo TO, bem como a natureza táctica e estratégica dos dispositivos e companhias militares, incluindo as forças especiais."
Fonte: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/ , "post" colocado a 8 Junho de 2006, Guiné 63/74 - P859: Plano de retracção do Exército Português em 1974 (Leopoldo Amado)
A retirada para Gadamael Porto, que possuía defesas mais frágeis, e a qual faltavam abrigos para a guarnição de Guilege e para a sua população, iria revelar-se uma má solução, pois se no dia 20/5 tinham caído em Guilege 45 granadas, destruindo parcialmente o aquartelamento, mas sem causar baixas, o mesmo não aconteceria em Gadamael.
No dia 31/5 um PAIGC moralizado, iniciaria um ataque sobre Gadamael que durou 2 dias, no qual cairiam 700 granadas sobre o aquartelamento, transformado este num inferno, provocando 5 mortos e 14 feridos, e lançando o pânico nas tropas já desmoralizadas.
Esta pressão sobre Gadamael continuaria nos dias seguintes, originando 24 mortos e 147 feridos, mas Gadamael contou com alguns homens de muita coragem, que a continuaram a defender, mesmo quando parecia ter chegado o fim (ver a crónica Gadamael a ferro e fogo).
Origem do documento: Público, 28.12.2003
por Serafim Lobato
"As Forças Armadas (FA) portuguesas começaram, há 30 anos, a sofrer os primeiros efeitos visíveis de desagregação na Guiné-Bissau, quando quartéis de fronteira estiveram cercados em combates prolongados e alguns foram abandonados (definitiva ou temporariamente) por efeito directo de assédios bem sucedidos de unidades guerrilheiras do PAIGC. Pela primeira vez são divulgados relatórios que permitem reconstruir a batalha de Guileje e Gadamael, que antecedeu a saída de Spínola da Guiné e o reconhecimento deste país pela ONU.
Em Maio de 1973, a guerrilha guineense efectuou 220 acções militares em todo o território da Guiné-Bissau e concentrou os seus esforços em quartéis de fronteira, visando, em primeiro lugar, a desmoralização dos soldados e, em paralelo ou posteriormente, a conquista territorial.
A 8 de Maio, o PAIGC lançou uma ofensiva concentrada de envergadura contra Guidage, unidade situada mesmo junto à linha de fronteira com o Senegal, fazendo parte de uma quadrícula militar de vários agrupamentos a norte do rio Cacheu que ia, a oeste, até Barro, sob um comando operacional único (COP 3) com sede em Bijene. Comportava unidades do Exército e da Marinha, estas estabelecidas na base fluvial de Ganturé.
Na defesa de Guidage, o comando chefe da Guiné enviou para a zona um conjunto elevado de grupos e destacamentos de tropas especiais, comandos, pára-quedistas e fuzileiros, bem como unidades de artilharia e mesmo de cavalaria. A guarnição local, quando começou o cerco, era constituída por uma companhia de Caçadores e por um pelotão de artilharia, equipado com obuses de 10,5mm- cerca de 200 homens.
Na operação de auxílio, reabastecimento e contra-ofensiva, que durou de 8 de Maio a 8 de Junho de 1973, estiveram envolvidos mais de mil homens (na maioria tropas especiais) das FA portuguesas, em terra, mar e ar, conforme assinalam os coronéis Aniceto e Carlos de Matos Gomes, no seu livro "Guerra Colonial".
As forças portuguesas tiveram 39 mortos e 122 feridos. Pelo menos seis viaturas militares de vários tipos foram destruídas e foram abatidos três aviões (um T6 e dois DO27). Só a unidade de Guidage contabilizou sete mortos e 30 feridos, todos militares.
Nos cerca de 20 dias que ficou cercada, Guidage esteve sujeita a 43 ataques com foguetões de 122m/m, artilharia e morteiros. Todos os edifícios do quartel foram danificados. A unidade, que, no conjunto, teve mais mortos foi o Batalhão de Comandos: dez. Sofreu ainda 22 feridos, quase todos graves, e três desaparecidos".
Restrições ao apoio aéreo
"A 18 de Maio, a sul, junto à raia com a Guiné-Conacri, verificou-se uma concentração de forças guerrilheiras em redor de Guileje que apontava para uma tentativa de tomada do quartel.
Restrições ao apoio aéreo
"A 18 de Maio, a sul, junto à raia com a Guiné-Conacri, verificou-se uma concentração de forças guerrilheiras em redor de Guileje que apontava para uma tentativa de tomada do quartel.
Refere um relatório do comando chefe das Forças Armadas da Guiné (Repartição de Operações), assinada pelo seu chefe, tenente-coronel Pinto de Almeida, agora tornado público, que sintetiza a actividade do COP 5 (área militar que enquadrava Guileje) entre 18 de Maio e 21 de Maio de 1973, que, no primeiro dia, "durante a execução duma coluna de reabastecimento, as NO [nossas tropas] foram fortemente emboscadas por duas vezes, a cerca de dois km de Guileje, tendo sofrido um morto (comandante do pelotão de milícias de Guileje), sete feridos graves (cinco milícias do PelMilGuileje) e quatro feridos ligeiros (um miliciano do PelMilGuileje).
Por falta de evacuação aérea, um dos feridos graves faleceu quatro horas depois da emboscada".
A falta de movimentação aérea não resultava de qualquer contratempo momentâneo. Eis a confissão do próprio comando chefe: "A partir de 06Abr73, o apoio aéreo no TO [território operacional] da Guiné sofreu grandes limitações impostas pelo aparecimento de foguetes antiaéreos eficazes, utilizados pelo inimigo, pelo que, no que se refere a COP 5, foi determinado, em 27Abr73, o cancelamento de evacuações a partir de Guileje e Gadamael. O apoio de fogos aéreos às forças terrestres sofreu também, a partir da mesma altura, fortes restrições."
(Os mísseis terra-ar Strella foram utilizados, pela primeira vez, a 5 de Abril, tendo atingido um avião Fiat G 91, pilotado pelo tenente Pessoa.)
O comandante do COP 5, major Coutinho Lima, enviou mensagens a alertar para a gravidade da situação. Informou que "a não satisfação do pedido de apoio de fogos, (...) bem como a não execução das evacuações" tinha causado "mal-estar no pessoal".
Às 20h desse dia 18, o PAIGC "iniciou as flagelações a Guileje". Horas depois, às 02h20, o COP 5 solicita apoio urgente, pois estava debaixo de fogo contínuo. "Foi-lhe respondido em 19 00h30- assinala o relatório do comando chefe- que a força aérea se encontrava totalmente empenhada noutra área do TO e que seria efectuado o apoio aéreo logo que possível."
Cercados
"O major Coutinho Lima pede para expor directamente o assunto ao general Spínola. Reticente, este aceita recebê-lo em Bissau ao fim da tarde do dia 20. "Não foi satisfeito o seu pedido de [apoio] de uma companhia, tendo-lhe sido determinado que regressasse ao COP 5, onde seria substituído no comando", acrescenta o relatório.
Coutinho Lima envia uma mensagem às companhias de Cacine, Gadamael e Guileje", "preparando a sua ida de Cacine para Guileje".
"Em 21 07h40, a Companhia de Cavalaria 8350 [Guileje] respondeu [ser] impossível cumprir o determinado no que se referia à sua colaboração no transporte do major Coutinho e Lima de Cacine para Guileje.
Foi-lhe dito em 21 10h26 que o comandante da companhia seria responsabilizado pelo não cumprimento dessa ordem", pode ler-se no relatório do comando chefe. Igualmente a Companhia de Gadamael se opõe a destacar homens para levar o comandante de COP 5 para Guileje.
Às 14h15 do dia 21, é recebida, em Gadamael, a última mensagem de Guileje: "Estamos cercados de todos os lados." Seguiu-se o silenciamento das comunicações de e com o quartel. Às 05h30 do dia 22, Guileje foi evacuada.
Uma mensagem, enviada dois dias depois de Gadamael, informava que de Guileje não foi "recolhida qualquer viatura", e especificou: um camião Mercedes, quatro Berliet, três Unimog 404, 1 Unimog 411, 1 jipe, um veículo de cavalaria Fox, dois White, que teriam sido "destruídos parcialmente".
Ficaram ainda no terreno, segundo a mensagem, três morteiros 81, um morteiro 10,7 cm, bem como duas bazucas de 8,9, dois morteiros de 60, três metralhadoras Breda e sete G3, que foram danificadas ou destruídas, mas sete pistolas-metralhadoras FBP ficaram para trás "não destruídas" e pelo menos quatro G3 desaparecidas.
Uma mensagem-relâmpago do comando chefe dirigida à Companhia 4734, com data do dia 22, ressaltava o seguinte: "Solicito que informe comandante CAOP 3, o coronel Ferreira Durão, que sua excelência o general comandante-chefe determinou que seja retirado imediatamente do comando do COP 5 o major de artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima e mandado apresentar QG/CCFAG para efeito de auto de corpo de delito."
Entre 18 e 22 de Maio, Guileje foi bombardeada 36 vezes.
Uma mensagem de 21 de Maio descreve que o interior do aquartelamento tinha sido atingido durante uma flagelação com 200 impactos de granadas, que causaram "grandes danos materiais". Indica, nomeadamente, que foram destruídos todas as antenas de transmissões, dois depósitos de géneros, o forno da cozinha, tabancas, celeiros, arroz da população, havendo abrigos atingidos e danificados, bem como a secretaria, depósitos de artigos de cantina. Impactos houve que acertaram mesmo em valas-abrigos".
Fuga para o mato
"Após a retirada das tropas portuguesas de Guileje para Gadamael, este quartel ficou com um dispositivo de duas companhias (Caçadores 4743 e Cavalaria 8350) e ainda dois grupos da Companhia de Caçadores 3520, um pelotão de canhões sem recuo com cinco peças, um pelotão de reconhecimento, com apenas um veículo com autometralhadora White, mais um pelotão de artilharia com cinco obuses de 14 e um pelotão de milícias. Um outro pelotão de milícias estava reduzido a uma secção.
Depois do afastamento do major Coutinho e Lima, assumiu o comando do COP 5 o capitão Ferreira da Silva.
Gadamael, entre o meio-dia de 31 de Maio e o fim da tarde de 2 de Junho, esteve debaixo de fogo de armas pesadas e ligeiras continuadamente, tendo sido referenciados disparos de morteiros de 120m/m, canhões sem recuo e lança-granadas foguete, com um maior número de rebentamentos estimado "em cerca de 700", conforme mensagens enviadas pelo COP 5 para o quartel-general em Bissau. Cinco soldados foram mortos e 14 feridos.
No dia 1 de Junho, a Companhia de Caçadores 3520, de Cacine, transmitiu a seguinte mensagem: "Informo Gadamael Porto destruído. Feridos e mortos confirmados. Pessoal daquele fugiu para o mato. Solicito providências e instruções concretas acerca procedimento desta."
De imediato, Bissau determinou que tropas pára-quedistas, que se encontravam em Cufar, seguissem para Gadamael.
Ao final do dia 1 de Junho, uma mensagem vinda de Gadamael referia que, apesar da debandada, um grupo de tropas ainda se mantinha no quartel, mas que "centro cripto tinha sido destruído".
A mensagem especificava ainda que "aquartelamento estava parcialmente destruído", com transmissões "deficientes" e que a "rede de arame [farpado] fora destruída parcialmente" e terminava com um apelo lancinante: "situação gravíssima".
A 2 de Junho, Bissau mandava mais uma companhia de pára-quedistas de reforço, juntamente com um pelotão de artilharia com obuses de 14 cm. O comando do COP 5 passou para o major pára-quedista Pessoa.
Entretanto, nesse dia, a companhia de Cacine mudava de comando, que era atribuído ao capitão Manuel Monge, e a lancha de fiscalização grande (LFG) Orion informava que meios navais recolhiam "militares e elementos da população refugiados no tarrafo, na região da confluência do rio Cacine com o rio Cachina, num total de 300 indivíduos (alguns feridos ligeiros)".
"Pessoal fortemente traumatizado"
"Nos dias 3 e 4 de Junho, Gadamael esteve sujeita a flagelações continuadas (mais de 200 rebentamentos) do PAIGC, com morteiros de 120 e canhões sem recuo. As mensagens consultadas assinalam, pelo menos, a existência de seis mortos e oito feridos nesses dias e a perda de três espingardas G3 e um rádio AVP 1.
O capitão Manuel Monge, no dia 4, pede ao quartel-general a "presença imediata" em Cacine de "entidade desse, fim estudar situação Gadamael Porto".
O general Spínola responde-lhe que "o estudo da situação já tinha sido apresentado pelo coronel Durão e que eram impossíveis os contactos pessoais diários". Duas horas depois, uma nova mensagem de Monge ressalta que, "situação Gadamael Porto agrava-se aceleradamente" e pede: "Contacto, fim capitão Monge expor a situação e parecer comandante de COP."
O capitão Manuel Monge seguiu para Bissau no dia seguinte, mas no final do dia 4 uma mensagem do comandante do COP 5 enfatizava: "Situação em Gadamael Porto é insustentável." E solicitava autorização "para se efectuar retirada ordenada" nos meios navais existente neste.
"Ou então - frisava - a minha imediata substituição no comando do COP 5." No final, uma confissão: "Nem tenho conseguido encontrar soluções que me permitam prosseguir."
À meia-noite desse dia, o quartel-general respondia: "Enquanto não for substituído, continua cumprimento da sua missão de defesa a todo o custo, incutindo moral aos seus soldados."
Além de todo o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas no terreno, estavam no local várias unidades da Marinha de Guerra e um grupo de assalto de fuzileiros africanos.
O comando do Task Group 6 referia, em mensagem, no dia 5, que quatro botes do Destacamento de Fuzileiros Especiais 22, embarcações do Exército e meios das unidades navais tinham efectuado as evacuações de mortos e feridos e ainda de um "número incontrolável" de fugitivos (civis e militares) encontrados à entrada do rio para Gadamael.
"Pessoal encontrado fortemente traumatizado psicologicamente devido situação alarmante Gadamael", terminava a mensagem.
Nesse dia, o comandante do COP 4, tenente-coronel Araújo e Sá, assumiu o comando do COP 5, ficando o major Pessoa como adjunto.
As unidades militares portuguesas sofreram, neste assédio a Gadamael, 24 mortos e 147 feridos".
Spínola deixa Bissau
"O general António de Spínola, que assumira, em 1968, os cargos de governador e comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na Guiné-Bissau, com o objectivo de evitar que o "processo subversivo" guineense se alastrasse e contaminasse, numa "atitude irreversível", as situações em Angola e Moçambique, abandonou aquelas funções em 8 de Agosto de 1973, com a Guiné-Bissau, reconhecida pela ONU em Novembro. Foi substituído a 25 de Agosto pelo general Bettencourt Rodrigues.
No TO da Guiné, o efectivo castrense português atingia os 42 mil homens e o PAIGC enquadrava, segundo os serviços de informação militar, sete mil guerrilheiros.
A 21 de Agosto, um grupo de oficiais reuniu-se em Bissau para aprovar uma exposição contestando um decreto-lei publicado a 13, relativo à carreira de oficiais do Exército.
A 9 de Setembro, começou, em Évora, com uma reunião o Movimento dos Capitães, e o PAIGC, a 21 desse mês, proclamava unilateralmente a independência em Medina de Boé, região abandonada pelas Forças Armadas portuguesas desde Fevereiro de 1969.
O Movimento de Capitães reúne-se em Lisboa a 6 de Outubro e ali se coloca, pela primeira vez, a hipótese de usar a força para derrubar o regime de Marcelo Caetano.
Este está em crise no mês de Novembro e realiza uma remodelação ministerial- substitui o general Sá Viana Rebelo pelo académico Silva Cunha no Ministério da Defesa Nacional, assumindo Baltazar Rebelo de Sousa o departamento governamental do Ultramar- procurando esfriar a agitação entre a baixa oficialagem.
Mas a crise castrense está incontrolável: a 5 de Dezembro realiza-se, na Costa da Caparica, a primeira reunião da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães, eleita em Óbidos, onde é escolhida a sua direcção executiva: Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho e Vítor Alves. O golpe de Estado que veio a culminar em 25 de Abril de 1974 estava em marcha".
"Salvou 600 vidas mas foi castigado por Spínola"
Auto de corpo de delito
Acusação: ordenou a retirada de forças sob o seu comando do quartel de Guileje para Gadamael sem que para tal estivesse autorizado; mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e munições; não cumpriu a missão que lhe foi atribuída.
22 de Maio de 1973 - A retirada de Guilege
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Guilege
Nessa luminosa madrugada de 22 de Maio de 1973, a sorte dava ares de voltar a sorrir aos "gringos açorianos" e a todos os outros "gringos" que faziam a guerra em Guileje, Sul da Guiné, contra o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde).
Eram quase seis da manhã e os "gringos" iam carregados que nem burros pelo trilho do mato que ligava o quartel de Guileje ao de Gadamael, uns oito ou nove quilómetros bem medidos na retaguarda do primeiro, mas a manhã levava-os para longe daquele buraco que já viam como cemitério dos seus próprios cadáveres trespassados pela metralha do inimigo.
Os soldados sedentos, famintos e, alguns, doentes, abandonavam Guileje em passo lento e levavam malas de viagem, sacos militares, armas, mochilas.
Transportavam tudo o que era imprescindível para refazer a vida da tropa noutro quartel qualquer. Entre eles marchavam 600 guineenses, igualmente cheios de fome, sede e doenças, que recuavam também para a zona do aquartelamento de Gadamael, alguns dos quais já muito idosos e um deles paralítico, que teve de ser transportado às costas por soldados.
A população da tabanca de Guileje levava a casa na trouxa e a família pela mão sem olhar para trás. Na retaguarda, num qualquer ponto fixo no horizonte da densa mata do Sul, só ficavam os canhões do PAIGC que, por aqueles dias, não escolhiam entre soldados portugueses e civis guineenses.
Uns e outros compunham uma coluna de gente que protagonizava um episódio histórico na guerra colonial portuguesa: as Forças Armadas comandadas na Guiné por António Spínola batiam em retirada do quartel de Guileje, o único que a tropa portuguesa deixou livre à ocupação pelo inimigo em toda a guerra colonial.
O PAIGC, tolhido pela surpresa, só viria a ocupar a guarnição militar três dias depois da retirada.
A retirada de Guileje foi o culminar de um complexo processo político-militar que começou a desenhar-se na Guiné após o assassinato de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. O PAIGC desencadeou então uma ofensiva simultânea no Norte e no Sul da Guiné cercando os quartéis de Guidage, junto à fronteira com o Senegal, e de Guileje, encostado à Guiné-Conacri.
Essa operação, a que chamaram "Amílcar Cabral", foi um momento decisivo na guerra que coincidiu com a utilização dos mísseis Strella, de fabrico soviético, que abateram pela primeira vez um Fiat G-91 da Força Aérea a 25 de Março desse ano.
Nessa semana a "arma desconhecida, tipo foguete", como foi qualificada no relatório da ocorrência, atingiu seis aeronaves portuguesas e num dos casos morreu mesmo o piloto, tenente-coronel Brito.
A maior parte destas acções aconteceu precisamente na zona de Guileje, área do Comando Operacional 5 (COP5) criado menos de seis meses antes para fazer face ao previsível agravamento da guerra na frente sul, mas para onde não foram enviados mais do que 108 homens.
A partir deste novo dado da guerra, os mísseis terra-ar, ficou muito condicionada a utilização de meios aéreos no apoio de fogo às tropas terrestres, na deslocação de feridos, no transporte logístico e na regulação de tiro da artilharia.
Os efeitos do conflito passaram a ser devastadores nas fileiras portuguesas. Segundo números oficiais das Forças Armadas, só entre 13 e 27 de Maio morreram 38 soldados e 155 foram feridos na frente sul da guerra.
Em todo o primeiro semestre de 1973 registaram-se 135 mortes de militares portugueses em todo o território guineense. Foram as semanas da viragem da guerra a favor de um inimigo mais numeroso, mais bem armado e preparado.
Nesse Maio de chumbo, Bissau não evacuava feridos há semanas lá das bandas do Sul. Os aviões não se arriscavam a um voo que podia ser o último.
Em Guileje, com a moral arrasada, os soldados não tinham nem água, nem comida, nem munições, o inimigo atacava a 500 metros, ou menos, do quartel.
Ficar ali para cativeiro ou morte certa nem pensar, antes marchar em retirada. Ainda por cima, naquela época do ano, o Sul da Guiné submergia com a intensidade das chuvas e uma parte do território estava intransitável.
Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé.
Ficaram as orações dos "gringos açorianos" inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos." Ou as dos "Piratas de Guileje", uns e outros da companhia de cavalaria 8350, estacionada no Sul entre 72 e 74.
Os RPG7 da guerrilha rebentavam no ar e caíam em chuveiro sobre o quartel, deixando marcas de destruição em todo o lado.
Nos seis abrigos amontoavam-se soldados e população. Do dia 18 em diante, até à evacuação, muita fome ali se passou porque os flagelamentos do PAIGC foram praticamente incessantes.
Minhas declarações em 28 de Maio de 1973
"Durante a manhã [21 de Maio] tinha havido um ataque próximo em que predominaram os rebentamentos de RPG.
Ao princípio da tarde, as mulheres, desesperadas com falta de água, foram à bolanha (cerca de 500 metros do quartel), tendo sido flageladas pelo IN com RPG e imediatamente recolhidas pelas NT que foram em seu socorro.
A Força Aérea que apareceu a apoiar, após o ataque das 15h15 às 16h30, o mais intenso de todos e o que provocou o morto e muitos danos materiais, foi informada que o quartel estava sem transmissões, tendo prometido ir lá de noite, se possível, e no dia seguinte, logo de manhã."
A base dos guerrilheiros era em Canjifara, Conacri, o que permitia ao PAIGC uma grande actividade na região, que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros.
A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas.
Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel.
O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir.
É neste cenário que o então major Alexandre Coutinho e Lima decide bater em retirada, depois de intensas movimentações nos últimos dias a pedir reforços de tropas especiais que nunca chegaram.
Assim que chegou a Gadamael, nessa manhã de 22 de Maio, foi imediatamente preso e acusado de ter cometido um crime militar ao ordenar a retirada de forças sob o seu comando sem autorização superior.
Também mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do quartel que comandava, material de guerra e munições.
A justiça militar imputou ao major uma falta grave: não ter cumprido a missão que lhe foi atribuída pelo comandante-chefe das tropas portuguesas na Guiné, António Spínola, e pagou por isso com um ano de prisão, que só viria a ser interrompido por uma amnistia nos primeiros dias a seguir ao 25 de abril de 1974.
Na versão seca do formalismo da linguagem militar, o major não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Mas, para as mais de 600 pessoas cercadas pelo fogo dos guerrilheiros independentistas, a decisão do agora coronel reformado Coutinho e Lima salvou-os de morrer no inferno de Guileje.
Para essas pessoas e para milhares de soldados que viam a derrota e a morte a aproximar-se nas frentes de guerra da Guiné, o coronel Coutinho e Lima foi um herói, que teve a coragem de decidir de acordo com a sua consciência. Mas ainda hoje é um homem perplexo com a actuação de Spínola neste processo e, em concreto, pela diferença de tratamento que deu às duas situações mais dramáticas naquela guerra.
Ao cerco de Guidage, a norte, Spínola respondeu com reforços imediatos e um ataque de comandos à base do PAIGC em Kumbamory, em território senegalês, uma acção que veio aliviar a pressão do PAIGC sobre Guidage.
Já em relação a Guileje, Spínola nunca autorizou um reforço de homens e meios operacionais, deixando a guarnição abandonada à sua sorte, acabando também por não conseguir evitar a desgraça de Gadamael, onde o PAIGC atacou entre as 14h00 e as 18h00 do dia 31 de Maio, bombardeando o quartel com mais de 700 granadas e provocando cinco mortos e 14 feridos, numa acção que foi apenas o início de intensos flagelamentos que prosseguiram nos dias seguintes, causando um total de 24 mortos e 147 feridos.
Trinta e um anos depois da retirada do quartel de Guileje, as Forças Armadas ainda lidam mal com o episódio.
O único quartel português abandonado pelas tropas coloniais é um episódio que representa uma espécie de pedra no sapato do Exército e das Forças Armadas em geral, que transformou o seu principal protagonista num rosto incómodo tanto para as hierarquias como, aparentemente, para os próprios militares do Movimento das Forças Armadas (MFA).
Para os militares de Guileje, o pesadelo começou a desenhar-se a partir do dia 10 de Maio, ainda sem o perceberem.
A melhor descrição da situação militar ali vivida é feita pelo próprio Spínola, que a 11 de Maio se desloca de helicóptero a Guileje e, numa comunicação às tropas, fez saber que se esperava um agravamento da situação.
Ficou claro que a Força Aérea não faria operações de rotina como até aí. Deixou, porém, a garantia de que, em momentos de combate mais sérios, os aviões voariam mais alto e utilizariam bombas mais potentes no apoio de fogo.
O transporte de feridos muito graves seria também assegurado. Palavras vãs, tal nunca aconteceu.
Um dia antes da visita, a vida corria com alguma normalidade no aquartelamento de Guileje.
O único facto anormal era dado pelo desaparecimento do miliciano Aliu Bari, que saíra de espingarda às costas dizendo que ia à caça, mas não voltou mais.
Ao fim de um par de horas, começaram a sair grupos de patrulhamento na estrada de Mejo com o objectivo de tentar encontrar o miliciano Bari, que, admitia-se, podia ter-se perdido ou sido mordido por uma cobra.
Alguns patrulhamentos depois, já a 12 de Maio, porém, uma mina rebenta na estrada do Mejo e morrem dois comandantes de secção da milícia, o que afecta as tropas, sobretudo do contingente guineense e da população, onde os dois homens eram vistos como líderes.
No dia 18, dois grupos de combate que realizavam trabalhos de detecção de minas e instalação de um sistema de segurança para uma nova operação de reabastecimento, junto ao cruzamento da estrada Guileje-Gadamael, foram atacados por mais de 100 guerrilheiros emboscados.
Das sete às oito da manhã os soldados portugueses e os milicianos guineenses ao seu serviço estiveram debaixo de intenso fogo de metralhadora, armas automáticas e morteiros RPG.
O balanço final foi dramático: dois mortos, nove feridos graves. Mais tarde, um destes feridos, um cabo, veio a morrer.
Tinha sido pedido apoio de fogo aéreo a Bissau, que não foi concedido por falta de condições meteorológicas.
Aos pedidos de deslocação dos feridos foi respondido que as baixas deveriam ser levadas para Gadamael e daí para Cacine por via fluvial, o que não aconteceu por já não haver maré que permitisse o transporte.
Adivinhava-se um morticínio. Os soldados começaram a perceber que estavam entregues à sua sorte.
O major Coutinho Lima enviou uma mensagem para Bissau a pedir a deslocação de um delegado a Guileje para analisar o problema dos apoios e efectivos para as colunas de reabastecimento. A resposta é negativa.
Às 16h00 ainda do dia 18 colocou-se a necessidade de reabastecer a unidade de água, num local situado a quatro quilómetros do quartel.
O grupo de combate que habitualmente fazia segurança a esta saída manifestou-se relutante em sair do quartel. Só o fez quando o próprio Coutinho e Lima saiu à frente do grupo.
A operação decorreu sem problemas mas durante essa noite regressou o fogo inimigo.
O quartel foi bombardeado pela noite dentro, em oito momentos diferentes; todos os rebentamentos de obuses ocorreram dentro zona de arame farpado.
Compreenderam então que a regulação de tiro da artilharia do PAIGC era feita a partir de informações prestadas pelo miliciano Bari, que tinha desertado para o inimigo. Era a primeira vez que o inimigo acertava no quartel.
Na manhã seguinte, os militares portugueses contaram 85 rebentamentos no interior do quartel. Coutinho Lima parte nessa manhã com um grupo de combate para Gadamael e daí para Cacine, para assegurar o transporte dos feridos e do morto, mas também na esperança de "encontrar alguém" do Comando-Chefe a quem pudesse expor a situação.
Ao mesmo tempo, o drama adensava-se em Guileje: o inimigo passou todo o dia 19 a bombardear o quartel.
Coutinho Lima só consegue falar com a Repartição Operacional na madrugada de 20 e pede que Bissau envie para Guileje uma companhia de tropa especial (comandos ou pára-quedistas), viaturas e estivadores para assegurar o reabastecimento.
Volta a pedir autorização para se deslocar a Bissau, o que acontece no dia 21.
Aí, expõe a situação a Spínola e pede, de novo, reforços. O comandante-chefe dá-lhe uma resposta negativa quanto ao reforço de uma companhia de tropas especiais, retira-lhe o comando e entrega-o ao coronel Rafael Durão.
Coutinho e Lima é mandado de regresso a Guileje na qualidade de 2º comandante do COP5.
Chega a Guileje ao fim da tarde do dia 21 e o quadro com que se depara é devastador: um furriel morto, depósitos alimentares destruídos, celeiros de arroz a arder, população refugiada dentro do quartel, falta de água e medicamentos, antenas de transmissões de rádio destruídas, poucas munições, abrigos e valas de defesa atingidos, centenas de rebentamentos dentro do quartel.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"A estadia nos abrigos era praticamente insuportável, pois neles se encontravam, além das NT, toda a população (homens, mulheres e crianças, cerca de 500 pessoas). Houve vários desmaios, onde o calor era imenso e o cheiro nauseabundo.
Após as saídas do fogo IN [Inimigo], os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos só dando tempo ao pessoal para se deitar. De algumas vezes não se ouviram as saídas e houve vários rebentamentos no ar, que não eram de RPG; muitas granadas eram também perfurantes, devendo ter sido uma destas que provocou a morte do furriel, bem como outra que abriu uma brecha, de lado, num dos abrigos, ficando a armação de ferro à mostra.
Todo o pessoal estava arrasadíssimo, não só física como psiquicamente, pois há cerca de 72 horas que o quartel estava a ser continuamente flagelado.
Com a deserção do miliciano Aliu Bari, a população estava alarmadíssima porque até aí o Inimigo não sabia onde eram os campos de arroz do pessoal de Guileje, não conhecia o trilho da população entre Gadamael e Guileje, nem tão-pouco sabia onde era o poço da água onde se fazia o reabastecimento, mas agora passava a ter conhecimento, através do referido desertor, de tudo isto."
O medo estava instalado nos abrigos de Guileje. Mas também a fome, a sede, a doença.
O inimigo estava a menos de 500 metros do quartel a acertar o fogo com homens empoleirados nas árvores.
A descrença era total e já ninguém esperava reforços de lado nenhum.
Batiam as 21 horas do dia 21 de Maio quando Coutinho e Lima mandou reunir todos os oficiais e, depois de analisada a situação, decidiu retirar de madrugada para Gadamael pelo trilho da população.
De imediato elaborou uma mensagem em que pedia autorização para retirar.
Foram improvisadas umas antenas, mas a mensagem nunca chegou a seguir, apesar das tentativas que duraram toda a noite.
A última que seguira fora no dia 21, às 14h15, a dizer "Estamos cercados por todos os lados."
Três décadas depois, Coutinho e Lima pergunta-se a si próprio que outra coisa poderia fazer: "Tinha-se perdido muito tempo.
Mesmo que tivéssemos conseguido comunicar para Bissau naquele dia e tivessem decidido enviar reforços, as tropas não chegariam antes de três ou quatro dias, espaço de tempo que nunca conseguiríamos aguentar naquelas condições.
Antes disso, o inimigo completaria o cerco poderosíssimo que estava a fazer com a consequente captura ou aniquilamento de toda a guarnição militar e população."
Ou ficava e a sua companhia era chacinada e o que restasse dela apanhado à mão pelo PAIGC ou, pelo contrário, recuava para Gadamael de imediato, jogando no efeito surpresa.
Tomada a decisão de partir, foi elaborado um plano de destruições e inutilizações de material que não pudesse ser utilizado pelo PAIGC: minas Claymore, material de criptografia, incluindo as máquinas, arquivos, equipamento de transmissões, obuses, viaturas e armamento pesado. "Não fui pressionado por ninguém para retirar e parti do princípio que a minha vida militar acabava ali", diz Coutinho e Lima.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"Entre todos os factores que me levaram a decidir pela retirada, avulta a missão de defesa da população, cerca de 500 pessoas (...) [que] aceitou de bom grado a ordem para se preparar para seguir para Gadamael, não tendo havido nenhuma manifestação de pesar - 'choro' - , quer quando foi iniciada a retirada, quer na chegada a Gadamael."
Deviam ser umas quatro da tarde quando a coluna entrou na parada do quartel de Gadamael-Porto. Coutinho e Lima é preso e enviado para Bissau, para a fortaleza de Amura, comando militar da Guiné.
Não iria esperar muito até sentir a ira de Spínola, que o transfere para o depósito de adidos no aquartelamento de Bra com ordens inabaláveis: encerramento num quarto em regime de incomunicabilidade total e o vencimento reduzido a metade.
Ali fica um mês e só uma consulta de psiquiatria altera as condições da sua prisão: passa a receber visitas, tem licença para se entreter na horta da guarnição e ler jornais.
Todos os requerimentos que fez para poder dar explicações e aulas de Educação Física foram indeferidos pelo punho do próprio Spínola. Nessa fase, lia, fazia paciências com cartas, escrevia.
Começou a perceber então que a sua situação gerava entre os militares um grande movimento de solidariedade.
Não tinha dinheiro para contratar um advogado e houve uma quotização entre os oficiais, que asseguraram os 50 contos necessários para pagar a sua defesa ao advogado Manuel João da Palma Carlos, como é assegurado o subestabelecimento da causa num conjunto de mais quatro advogados, todos eles oficiais milicianos a prestar serviço na Guiné: Barros Moura, Correia Pinto, Sacadura Bote e Maia Costa. Estes oficiais chegaram a ser ameaçados por Spínola com o envio para a frente de combate por se terem disponibilizado a defender o "presumido delinquente".
Depois de libertado em Maio de 1974 é colocado na Academia Militar, no gabinete de estudos, e recebeu a metade do vencimento que lhe tinha sido retirado.
Nunca chegou a ser julgado, mas não requereu qualquer reparação por danos morais, já que era sua profunda convicção a inutilidade da acção enquanto Spínola liderasse a JSN.
"Acho que nunca fui prejudicado na progressão militar, mas na parte final, quando tinha de fazer um ano de comando para a promoção - devia comandar uma unidade de artilharia -, fiquei com a sensação de que andaram a passar a bola de um lado para outro", diz hoje, passados 30 anos.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"Relativamente à acusação de não ter cumprido a missão que me foi atribuída, solicito informação sobre qual parte da missão deixou de ser cumprida. Se se pretende referir à alínea 'garante a defesa eficiente dos aglomerados populacionais e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua zona', declaro que defendi o estacionamento de Guileje até à altura da retirada, por considerar a posição absolutamente insustentável."
O tempo foi passando na vida de Alexandre Coutinho e Lima e as más memórias desvanecendo-se. Mas o mistério da recusa de conceder um reforço militar a Guileje permanece. "Nunca mais falei com Spínola sobre isso!" De há 31 anos para cá só ficou o silêncio.
Destaques: Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé. Ficaram as orações dos "gringos açorianos" inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos."
Recordo-me de me terem perguntado num dos interrogatórios se tinha pensado nas consequências do meu acto para a pátria. Limitei-me a responder que a minha preocupação era mais com a vida dos meus homens e da população do que com os altos valores da pátria. "
Bibliografia:
- Guerra Colonial, Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Editorial Noticias, 2005
- Batalhas da História de Portugal - Guerra de África Guiné, Academia Portuguesa de História, QN - Edição e Conteúdos, SA
Nota:
Actualmente uma ONG, a AD - Acção para o Desenvolvimento, está a realizar um projecto que visa a recuperação deste aquartelamento, e a partir dele criar um polo para o ecoturismo, para um museu, etc., visite o o site desta ONG em:
"A nave dos feridos mortos desaparecidos e enlouquecidos
Uma investigação de Eduardo Dâmaso
A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael.
A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael.
Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael.
As duas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael.
Passaram 32 anos desse dia 1 de Junho de 1973 mas o comandante Pedro Lauret ainda se recorda do arroz de tomate com peixe que estava a comer e que era também o jantar da guarnição da fragata Orion em missão no rio Cumbijã.
Passaram 32 anos desse dia 1 de Junho de 1973 mas o comandante Pedro Lauret ainda se recorda do arroz de tomate com peixe que estava a comer e que era também o jantar da guarnição da fragata Orion em missão no rio Cumbijã.
Ali estavam, estacionados nas águas de um dos muitos rios da Guiné, a comer a tomatada de peixe e a beber cerveja gelada enquanto a noite começava a deitar-se sobre a mata de Cantanhez, tão bela quanto sinistra para os milhares de soldados portugueses que a olhavam como um santuário dos guerrilheiros do PAIGC.
Foi à hora do jantar que o comandante, então imediato da embarcação, Pedro Lauret recebeu a indicação de que estava a chegar uma mensagem de "alto grau de precedência", ou seja, de António Spínola, comandante-chefe do contingente militar português na Guiné.
O jantar acabou e começava uma inesperada e marcante aventura nas vidas de todos os homens embarcados no Orion. Pedro Lauret entra na cabine onde a mensagem estava a ser descodificada e percebe logo que têm de preparar-se para levantar ferro. A mensagem trazia ordens do Comando Geral a determinar que a Orion subisse o rio e embarcasse uma companhia de paraquedistas que deveria conduzir para o porto de Cacine.
"Não eram dadas explicações mas de imediato nos apercebemos que algo muito grave se passava. Embarcar de noite uma companhia de paraquedistas sem qualquer tipo de protecção, naquele local, era muito arriscado", afirma Pedro Lauret. A missão secreta chegou à hora de jantarAs ordens destapavam uma outra face da moeda: tirar uma companhia de paraquedistas da região iria diminuir a capacidade militar num local problemático. As missões da Marinha no rio Cumbijã tinham recomeçado em 1972 quando Spínola decidira reactivar cinco aquartelamentos na região de Cantanhez mas a operação não estava a dar resultados.
O jantar acabou e começava uma inesperada e marcante aventura nas vidas de todos os homens embarcados no Orion. Pedro Lauret entra na cabine onde a mensagem estava a ser descodificada e percebe logo que têm de preparar-se para levantar ferro. A mensagem trazia ordens do Comando Geral a determinar que a Orion subisse o rio e embarcasse uma companhia de paraquedistas que deveria conduzir para o porto de Cacine.
"Não eram dadas explicações mas de imediato nos apercebemos que algo muito grave se passava. Embarcar de noite uma companhia de paraquedistas sem qualquer tipo de protecção, naquele local, era muito arriscado", afirma Pedro Lauret. A missão secreta chegou à hora de jantarAs ordens destapavam uma outra face da moeda: tirar uma companhia de paraquedistas da região iria diminuir a capacidade militar num local problemático. As missões da Marinha no rio Cumbijã tinham recomeçado em 1972 quando Spínola decidira reactivar cinco aquartelamentos na região de Cantanhez mas a operação não estava a dar resultados.
O dispositivo militar tinha sido reforçado com companhias de tropas especiais, paraquedistas e fuzileiros, bem como diversas unidades do Exército mas mal punham o pé for a do arame farpado dos quartéis eram de imediato atacados. "Nunca se percebeu muito bem o objectivo desta reocupação", declara Pedro Lauret que recorda os meios navais envolvidos nessas missões no Cumbijã: a Orion, duas lanchas de desembarque médias (LDM), oito botes zebro, uma companhia de "fuzos".
O jantar acabou de imediato para toda a tripulação. O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista e moço da botica, foi um dos que perdeu a refeição. "Ao entardecer já a tripulação comia arroz de tomate com peixe frito. Lembro-me que estava de "quarto" e, por isso, só iria jantar depois da rendição.
O jantar acabou de imediato para toda a tripulação. O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista e moço da botica, foi um dos que perdeu a refeição. "Ao entardecer já a tripulação comia arroz de tomate com peixe frito. Lembro-me que estava de "quarto" e, por isso, só iria jantar depois da rendição.
Jantar é uma forma de dizer... O arroz já estava feito em cimento e comi, à boa maneira portuguesa, uns peixinhos fritos com pão e umas cervejas. "Foram dadas instruções aos "patrões" das LDM para seguirem em direcção a Cacine pelo canal do Melo, um pequeno braço de rio que liga os Cumbijã e Cacine, curto e seguro mas não navegável pelas embarcações maiores.
A Orion seguiu rio acima e embarcou os "paras" no local combinado. Foi uma operação morosa pois não havia nenhum ponto para acostar. Os soldados foram transportados em botes depois de montada uma linha de segurança.
Seriam umas oito da manhã de 2 de Junho quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão. Spínola proíbe auxílio a "cobardes"O major Pessoa, do batalhão de paraquedistas que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje, um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, coronel Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael.
A Orion seguiu rio acima e embarcou os "paras" no local combinado. Foi uma operação morosa pois não havia nenhum ponto para acostar. Os soldados foram transportados em botes depois de montada uma linha de segurança.
Seriam umas oito da manhã de 2 de Junho quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão. Spínola proíbe auxílio a "cobardes"O major Pessoa, do batalhão de paraquedistas que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje, um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, coronel Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael.
Foi imediatamente preso e enviado para Bissau às ordens de Spínola. Gadamael estava agora debaixo de fogo intenso e de alta precisão.
O retrato da situação em Gadamael feito pelo major Pessoa era caótico. "As últimas informações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio", recorda Pedro Lauret.
A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os "uns cobardes". “Vou buscá-los nem que seja de canoa"
Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. "Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontrava.
O retrato da situação em Gadamael feito pelo major Pessoa era caótico. "As últimas informações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio", recorda Pedro Lauret.
A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os "uns cobardes". “Vou buscá-los nem que seja de canoa"
Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. "Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontrava.
Frisou-nos que se não estivéssemos dispostos a ir contra a determinação do general ele próprio tentaria recuperar os militares, nem que fosse em canoas", afirma Lauret.
A determinação do major Pessoa, que volvidos trinta e dois anos não quer falar sobre os acontecimentos de Gadamael, percorreu todo o navio.
O Orion partiu de imediato em auxílio dos tropas fugitivos e nada comunicou ao Comando da Defesa Marítima. Avançaram as LDM porque havia muitos anos que as LFG não subiam o Cacine para lá da marca da Lira, um sinal com reflector instalado no rio e já próximo de Gadamael.
A verdade é que não eram conhecidas as "condições de fundo" para lá dessa marca, mas o navio aproximou-se do quartel o mais possível, sem problemas.
Do ponto onde estava a Orion podia avistar-se uma antena de grandes dimensões e era um evidente sinal da proximidade do inimigo que punha também a Orion na linha de fogo. De imediato foram desembarcados os paraquedistas nos zebros e as LDM começaram a percorrer as margens a recuperar os soldados que andavam perdidos. "À noite, a coberta das praças estava repleta de feridos"
Havia feridos e mortos. Desaparecidos e enlouquecidos. No convés foi instalado o mais improvisado dos hospitais para assistir aos feridos ligeiros. Os que tinham ferimentos mais graves foram colocados na coberta dos "praças".
Dentro do possível foi servido pão acabado de cozer e cerveja gelada.
Lá fora, nas águas do rio, os zebros percorriam incessantemente as margens enquanto as LDM começavam a fazer uma "ponte marítima" em direcção a Cacine para levar os sobreviventes para um lugar mais seguro e os feridos para uma assistência mais eficaz.
"Penso que teremos recuperado cerca de 300 a 400 pessoas, entre militares e população", diz Pedro Lauret, evocando uma imagem que nunca mais o abandonou: "À noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos, não havendo lugar para as praças se deitarem".
Do ponto onde estava a Orion podia avistar-se uma antena de grandes dimensões e era um evidente sinal da proximidade do inimigo que punha também a Orion na linha de fogo. De imediato foram desembarcados os paraquedistas nos zebros e as LDM começaram a percorrer as margens a recuperar os soldados que andavam perdidos. "À noite, a coberta das praças estava repleta de feridos"
Havia feridos e mortos. Desaparecidos e enlouquecidos. No convés foi instalado o mais improvisado dos hospitais para assistir aos feridos ligeiros. Os que tinham ferimentos mais graves foram colocados na coberta dos "praças".
Dentro do possível foi servido pão acabado de cozer e cerveja gelada.
Lá fora, nas águas do rio, os zebros percorriam incessantemente as margens enquanto as LDM começavam a fazer uma "ponte marítima" em direcção a Cacine para levar os sobreviventes para um lugar mais seguro e os feridos para uma assistência mais eficaz.
"Penso que teremos recuperado cerca de 300 a 400 pessoas, entre militares e população", diz Pedro Lauret, evocando uma imagem que nunca mais o abandonou: "À noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos, não havendo lugar para as praças se deitarem".
O relato do grumete Ulisses Faria Pereira é feito de rajada, como se quisesse deitar qualquer coisa cá para fora. De resto, este foi um episódio silenciado ao longo de 32 anos. "Ao longo da manhã foi recebido a bordo um número elevado de feridos, a quem eram prestados os primeiros socorros, administrados pelo enfermeiro Abrantes, auxiliados pelo "moço da botica", que por sinal era eu... e que, posteriormente, eram enviados para terra, para terem uma assistência melhor e proceder à sua evacuação via aérea para o hospital de Bissau", diz. G 3 ficaram abandonadas a bordo do OrionNessa noite de 2 de Junho de 1973 o cenário não podia ser pior. A maré baixa criou uma massa de lodo que dificultava o desembarque dos feridos. Dentro do barco estavam esgotadas todas as reservas de soro, compressas, desinfectantes.
Foi então enviada uma mensagem para Bissau pedindo reabastecimento mas temendo o pior face ao conhecimento que havia das ordens de Spínola. Na manhã seguinte, porém, um avião da Marinha largava em Cacine tudo o que tinha sido pedido.
O trabalho da Orion continuou nos dias seguintes, fazendo evacuações e começando a retirar do teatro de guerra os paraquedistas feridos. A bordo jaziam a um canto dezenas de espingardas G3: o princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido. O moral daquela tropa estava abaixo de zero.
Para a história fica o silêncio da hierarquia. Nunca o Comando da Defesa Marítima da Guiné se referiu à desobediência do Orion, do seu comando e tripulação, nem estes sofreram qualquer punição.
O trabalho da Orion continuou nos dias seguintes, fazendo evacuações e começando a retirar do teatro de guerra os paraquedistas feridos. A bordo jaziam a um canto dezenas de espingardas G3: o princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido. O moral daquela tropa estava abaixo de zero.
Para a história fica o silêncio da hierarquia. Nunca o Comando da Defesa Marítima da Guiné se referiu à desobediência do Orion, do seu comando e tripulação, nem estes sofreram qualquer punição.
Na memória ficaram imagens que os protagonistas ainda hoje retêm: em Cacine, por aqueles dias, vivia um Exército enlouquecido, desarticulado, abandonado pela hierarquia, a deambular por entre os seus mortos. O diário que nunca existiuO soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista, moço da botica no navio Orion e ex-seminarista, tinha a "mania da escrita". Todos os dias escrevinhava umas notas sobre a sua comissão militar. Todavia, nunca organizou as suas notas num diário e acabou por perdê-las. Mas se o tivesse feito ele começaria por rezar assim:
"Maio de 1973
Já passaram 12 meses e a comissão decorre com toda a normalidade apesar de notar, conversa aqui, conversa ali, que a situação militar está a degradar-se. A nossa rotina é feita dos habituais "cruzeiros" pelo Cacheu. O Cacheu merece redobrada atenção. É muito estreito, tem muitas clareiras e o navio torna-se um alvo fácil.
"Maio de 1973
Já passaram 12 meses e a comissão decorre com toda a normalidade apesar de notar, conversa aqui, conversa ali, que a situação militar está a degradar-se. A nossa rotina é feita dos habituais "cruzeiros" pelo Cacheu. O Cacheu merece redobrada atenção. É muito estreito, tem muitas clareiras e o navio torna-se um alvo fácil.
A navegação do nosso barco é feita com a guarnição em "bordadas", ou seja, através de equipas constituídas por metade do pessoal que cumpre um turno de seis horas comandada por um oficial e um sargento. A outra metade descansa.
Frequentemente fazemos a navegação em posto de combate devido a informações sobre a actividade do inimigo. E varremos as margens a tiro. Seis homens são destinados às peças de artilharia antiaérea, duas "Bofors" de 40 mm, uma a ré e outra avante.
Frequentemente fazemos a navegação em posto de combate devido a informações sobre a actividade do inimigo. E varremos as margens a tiro. Seis homens são destinados às peças de artilharia antiaérea, duas "Bofors" de 40 mm, uma a ré e outra avante.
Nas missões de patrulhamento, quer de dia quer de noite, são colocadas na ponte, tanto a bombordo como a estibordo duas MG42. Na ponte há ainda um morteiro manobrado por um fuzileiro. Pois foi num destes "cruzeiros", há dias, que já vimos como é má a situação.
A Norte, o PAIGC atacou Guidage e pela primeira vez se sussurrou entre as tropas que usaram mísseis. E também que foi abatido um avião a hélice num dia e um helicóptero no dia seguinte. Nós estávamos aí perto.
A Norte, o PAIGC atacou Guidage e pela primeira vez se sussurrou entre as tropas que usaram mísseis. E também que foi abatido um avião a hélice num dia e um helicóptero no dia seguinte. Nós estávamos aí perto.
A tensão foi enorme. Batíamos o rio a toda a hora, noite e dia. À noite em ocultação de luzes.
Chegaram, depois, notícias do sul também muito más. Guidage, Guilege e Gadamael começaram a ser os nomes da morte entre a tropa.
O que mais depressa chega aos ouvidos dos soldados é a dificuldade de evacuação de feridos.
Recebemos então a missão de embarcar uma companhia de paraquedistas na zona de Bolama e deslocá-los para Gadamael com o objectivo de prestar auxílio às unidades que flageladas pelo inimigo.
Percebemos logo que aquela não iria ser mais uma missão de rotina quando soubemos da possibilidade de o massacre ser de tal ordem que havia militares a fugir para as bolanhas em redor de Gadamael. Após o embarque, as forças especiais foram-se acomodando no convés. Apagámos as luzes e fizemos rumo para Cacine.
Ao longo das primeiras horas da manhã foram recebidas a bordo dezenas de homens feridos. Nestes dias, o Orion funcionou não como lancha de fiscalização mas como um navio hospital, de primeira linha, mas sem médico e apenas com um enfermeiro e um "curioso" que era eu."
Trinta e um anos depois sobram as memórias de uns tempos de chumbo mas também de uma experiência decisiva na vida de Ulisses, natural de Alboritel, concelho de Ourém, há muito instalado em Almada onde é funcionário da inspecção tributária.
Percebemos logo que aquela não iria ser mais uma missão de rotina quando soubemos da possibilidade de o massacre ser de tal ordem que havia militares a fugir para as bolanhas em redor de Gadamael. Após o embarque, as forças especiais foram-se acomodando no convés. Apagámos as luzes e fizemos rumo para Cacine.
Ao longo das primeiras horas da manhã foram recebidas a bordo dezenas de homens feridos. Nestes dias, o Orion funcionou não como lancha de fiscalização mas como um navio hospital, de primeira linha, mas sem médico e apenas com um enfermeiro e um "curioso" que era eu."
Trinta e um anos depois sobram as memórias de uns tempos de chumbo mas também de uma experiência decisiva na vida de Ulisses, natural de Alboritel, concelho de Ourém, há muito instalado em Almada onde é funcionário da inspecção tributária.
Hoje até é capaz de se rir quando se lembra dos truques que a sua imaginação criou para não ser incorporado para a Guiné – como responder tudo mal nos testes do curso da Marinha – e de como o tiro lhe saiu pela culatra.
Logo a ele que ficou com a especialidade de electricista sem que tivesse qualquer vocação para tratar de fusíveis e tomadas.
Foi excluído do curso mas acabou incorporado no navio S. Roque, embarcação dos mergulhadores da Marinha. Daí até à Guiné foi o tempo de um fósforo a arder. Quando pôs o pé em Bissau era um recruta em prontidão para combater sem que alguma vez tivesse tido contacto sério com armas de fogo...
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Histórias reais recordadas 32 anos depois
O soldado da Madeira que só morreu em Bissau "Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só conseguia ir tirando um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro.
O soldado da Madeira que só morreu em Bissau "Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só conseguia ir tirando um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro.
Quando lhe tirava as calças, porém, é que verificou que lhe faltava parte da perna e da anca devido à deflagração de uma granada.
O pobre soldado estava completamente sem sentidos, talvez, quem sabe, em estado de pré-coma.
O éter utilizado na sua lavagem criou uma atmosfera tão inflamável que um dos camaradas nossos ao entrar na coberta a fumar deixou cair um pouco de cinza no balde onde depositávamos as compressas e o algodão, provocando uma explosão na coberta.
O gerador foi abaixo criando uma situação de pânico.
Nesse momento o soldado da Madeira levantou-se e tentou procurar um abrigo. Mais tarde, saiu do navio vivo, foi transportado para Cacine, acabando por morrer em Bissau... por falta de assistência, dizia-se por lá." Uma bala por cima do coração
"Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha uma bala alojada acima do coração. Este homem pesaria entre 110 a 120 quilos.
"Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha uma bala alojada acima do coração. Este homem pesaria entre 110 a 120 quilos.
Foi-lhe administrado o último balão de soro e o seu estado de saúde era muito preocupante.
O comando entendeu evacuar o homem para que este não morresse a bordo. Para o retirar da coberta – o acesso era feito através de uma escotilha – foram necessários oito homens que o colocaram numa das lanchas.
Esta embarcação navegou o que pôde no sentido das luzes do quartel mas depois foi necessário voltar a colocá-lo num zebro por causa da maré baixa.
O zebro dirigiu-se a terra mas a partir de certa altura já não era possível navegar. O homem foi então transportado em maca por quatro elementos da tripulação, o cozinheiro, um artilheiro, o escriturário e o electricista, ou seja eu. O enfermeiro segurava o balão de soro.
Quando saltámos do bote ficámos com água pela cintura mas o fundo parecia não ser muito mole. Todavia, quando retirámos a maca do bote, com o peso do ferido, pura e simplesmente não nos conseguimos mexer dali.
Por duas horas travámos uma luta com um campo de lodo, afundados quase até ao pescoço e com a maré a subir. Por fim, o enfermeiro, já exausto, larga o balão de soro em cima do ferido e nada para terra, junto ao quartel.
O escriturário quase já não se via na água. Só ao fim de três horas foi possível passar um cabo a partir de terra e puxar a maca e os homens que a tinham transportado. Quando chegámos já não havia lugar para depositar os mortos "Quando chegámos a terra exaustos o cenário era de dor. Chorava-se, gritava-se, havia ataques de histerismo entre os soldados que ali se encontravam refugiados, aguardando a chegada dos companheiros que estavam perdidos nas bolanhas e que tinham sido recolhidos por nós.
Chegados a terra o cheiro era nauseabundo uma vez que já não havia sítio para depositar os mortos. O destino era a capela e aí aguardavam urna.
Os primeiros tinham sido ali colocados já havia cinco dias.
Só regressámos ao Orion passadas umas horas. No convés do navio misturavam-se soldados e população também resgatada.
A guarnição não se conseguia movimentar. Um verdadeiro inferno.
Mais tarde, sei que quando embarquei no aeroporto de Bissalanca de regresso a Lisboa trazia na mala a convicção de que não mais iria regressar aquela terra. Que iria fazer como muitos outros e fugir para França. Passados trinta dias, não consegui." Ninguém entregou a condecoração ao coronel Uma investigação de Eduardo Dâmaso
O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições.
O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições.
Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.
Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto.
Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto.
Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.
Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade.
Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade.
Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.
A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido. Chuva de 18 granadas de três em três minutos Pelo amanhecer do dia 1de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael.
A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido. Chuva de 18 granadas de três em três minutos Pelo amanhecer do dia 1de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael.
As granadas dos morteiros 120 eram disparadas a um ritmo de 18 de três em três minutos.
Logo pelas dez da manhã uma granada acabou com o pelotão de artilharia. Três mortos e 11 feridos deixaram o pelotão inoperacional. Gadamael fica reduzido ao morteiro 81 que não tinha alcance suficiente.
Momentos antes tinha aterrado no quartel um helicóptero que transportava o general Spínola mas este teve de ser empurrado para dentro do aparelho, que levantou voo de imediato.
O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreram no ponto de aterragem do helicóptero.
Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados os mortos e feridos foram aumentando.
Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados os mortos e feridos foram aumentando.
Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção.
Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva.
Num cenário de desespero e com poucos abrigos os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada.
Num cenário de desespero e com poucos abrigos os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada.
Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações só quando o furriel Carvalho, do morteiro 81, lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava a reduzida a um punhado de homens. A bravura do cabo RaposoQuem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1ºcabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol.
Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso.
Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.
A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho, porém, foi um encorajamento para todos.
A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho, porém, foi um encorajamento para todos.
Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos.
Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine.
Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas que entretanto tinham chegado.
Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas que entretanto tinham chegado.
O comando foi assumido pelo oficial Manuel Monge, antigo chefe da Casa Militar de Mário Soares e hoje governador civil de Beja. Ferreira da Silva passou a adjunto de Monge, oficial mais graduado.
"A 31 anos de distância saliento a acção dos paraquedistas, do furriel Carvalho e do cabo Raposo, do major Monge com quem partilhei, durante meses, aqueles momentos difíceis, mas que conseguimos ultrapassar", recorda o coronel que nunca recebeu a Cruz de Guerra. "
Fonte deste extracto: artigo publicado na Pública, separata do Publico, de domingo, correspondente à edição n.º 5571, de 26 de Junho de 2005.
Fonte deste extracto: artigo publicado na Pública, separata do Publico, de domingo, correspondente à edição n.º 5571, de 26 de Junho de 2005.
Publicado no site em 21/05/2006, e revisto em 21/07/2006 por Carlos Fortunato
Web portal: http://portalguine.com.sapo.pt
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