mandume
MANDUME NDEMUFAYO - SÉCULO XX
Reinou de 1911 a 1917. Assume o trono aos 20 anos. Num ponto o Povo Cuanhama é unânime em relação ao porte de Mandume como homem. Extremamente cruel. Como chefe supremo da Nação Ovambo, muito inteligente, hábil político, déspota e corajoso. Mas antes de iniciarmos os relatos pessoais de meus informadores sobre esta impressionante figura de guerreiro, convém trocar algumas ideias obre as atitudes de Mandume e chegarmos ao ponto final da sua carreira, como rei e homem, que cumulou com a morte.
Assinatura do soba Mandume
Abstraindo das atitudes bárbaras que o caracterizavam, tolerava as Missões protestantes alemãs que o instruíram na língua, na escrita e na religião. Dizia ele «que todos os brancos que não fossem padres e estivessem dentro do seu território deviam ser mortos». E a comprová-lo mandou matar um português, a mulher e amigos que o acompanhavam. Em comparações que fazia entre as Missões católícas e protestantes, nas quais fora educado, apontava como justificação que aquelas «só se dedicavam à catequese e se «metiam em negócios de gado», enquanto que os luteranos primavam por elevar o nível social e intelectual das massas».
O fim trágico que o envolveu corresponde exactamente ao tipo de homem que encarnava. Valente, ousado, arrogante e aventureiro. Abandonando N'Giva, sede do Reino, depois da última batalha da Môngua, em Agosto de 1915, instado pelos Ingleses, foge para o lhole na fronteira com o Sudoeste. Mandume presta vassalagem a Sua Majestade Britânica. Constrói a nova 'Embala' em lhole, ainda pertencente ao domínio inglês, já que só posteriormente Namakunde passava a integrar o território português. Impaciente, de espírito ardente e guerreiro, desenvolve surpreendente actividade nos domínios já abrangidos pelos Portugueses, incitando seus súbditos à revolta contra os Brancos, intimando-os a passarem ao Sudoeste com suas manadas. Eufórico, vai além dos limites da prudência e exerce uma acção de combate em território inglês. No ano seguinte, dirige investidas ao Cuanhama, tentando reconquistar o reino perdido. E as autoridades portuguesas de Namakunde pedem aos Ingleses que terminem com as actividades de Mandume. A 30 de Outubro de 1916, aniquila uma força portuguesa comandada pelo tenente Raul de Andrade, habilmente atraída a uma cilada. Recusa-se a ir a Windhoeck conferenciar com os Ingleses a quem teria dito «que viessem ao lhole se quisessem», e preparando-se para recebê-los sabendo de antemão que apressava o seu fim: «se os Ingleses me querem, podem vir apanhar-me. Não dispararei o primeiro tiro, mas não sou um touro do mato. Sou um homem, não uma mulher, combaterei até ao último cartucho».
Trava-se violenta batalha entre Namakunde e lhole, mas os Ingleses contornam a operação. Karora, o súbdito fiel, vigiava o Norte.
Uma força portuguesa entrou em acção. Já em Ondongua os Ingleses lutaram com pequenas forças de Mandume. E o último Soba Cuanhama, rodeado de aproximadamente seiscentos homens da sua guarda pessoal, enfrenta também o último combate.
Afirmam os ingleses que o «Rei» foi identificado com quatro balas de metralhadora. Os Cuanhamas têm outra versão mais digna e real, e dela não se afastam. Acuado, já ferido, Mandume é retirado pelos seus fiéis súbditos, os Lengas, bem assim como pelos filhos do seu primo Weyulu, para debaixo da árvore imensa, o imbondeiro, onde finalmente praticou o suicídio com a sua bela arma Mauser, depois de liquidar três companheiros de luta. Assim contam o episódio: Mandume reuniu-se com os filhos de Weyulu, a quem perguntou «se preferiam ser lacaios dos Portugueses ou morrer com ele», ao que optaram pela morte. O padre Keiling tem uma narração mais precisa do grande acontecimento:
E virando-se para os sobrinhos (primos) os filhos do falecido Soba Weyulu, lhes perguntou se queriam ser muleques de brancos. Como eles dissessem que antes queriam morrer, o Soba, levando a espingarda à cara, prostrou-os com dois tiros, e virando em seguida a arma contra si mesmo, fez saltar os miolos.
Este acto vem confirmar a atitude assumida antes por Mandume junto à Missão católica no Cuanhama, e aos compromissos que o seu antecessor. Nande, havia mantido com o governo português. Às insinuações da Missão, teria respondido: «se o governo português quiser vir ocupar a minha terra, resistirei enquanto tiver um cartucho e um soldado capaz de atirar, e se for vencido suicidar-me-ei (...). Não há razão para pô-lo em dúvida. Os Portugueses, entretanto, descrêem do facto, numa atitude injustificada, já que o corpo foi encontrado decapitado. A relutância pelo episódio histórico que comporta, deve ter sua origem num sentimento de culpa muito comum a portugueses; o despojo do seu inimigo que na época lhes era odioso tornou-se peça de valor quando deveria ter ficado dentro de suas fronteiras. Nesse mesmo espírito, muitos crêem não serem os restos de Mandume que repousam no túmulo. Tal crença surpreende os Cuanhamas, ligados implicitamente por questão de honra ao último Soba. Queixam-se alguns da indiferença das autoridades em não transformar aquele reduto fúnebre e histórico num lugar condigno ao homem que foi senhor de um grande reino e que ombreou em valentia com um grande general português. O túmulo está esquecido e mal tratado. Relembramos, mais uma vez, o padre Keiling, que contactou assiduamente com Mandume em nome do Governo. Em entrevista com o Rei, na 'Ombala', transmite-lhe o pedido das autoridades:
a) A instalação da Missão católica que tinha sido destruída em 1912;
b) Conversações com as autoridades;
c) Entrega dos prisioneiros europeus.
b) Conversações com as autoridades;
c) Entrega dos prisioneiros europeus.
Pela libertação dos soldados portugueses o padre Keiling oferece duas caixas de champanhe para cada homem. Esta era a bebida mais apreciada pelo Soba, que responde: «para resgate de prisioneiros negros, pode oferecer champanhe ou conhaque que não direi que não, mas para resgatar soldados portugueses só com espingardas finas e cartuchame». À primeira proposta teria respondido: «a tua Missão trazia-me a ocupação portuguesa e essa não quero. Tens uma Missão no Evale. Não precisas mais».
Apesar de o Povo Cuanhama aceitar, conformado, a soberania portuguesa, com um passado de incessantes crises, lutas, mortes e arbitrariedades, desde os Sobas anteriores, para cumular com o despótico Mandume, sentem que ele foi temido por estrangeiros e que merecia, depois de morto, outro tratamento para que ficasse gravado o seu nome nas futuras gerações, como Rei e guerreiro. Isto faz lembrar as palavras do General Pereira D'Eça ao julgá-lo como militar e homem, no Relatório de Campanha sobre a batalha de Môngua:
«Atacar três dias consecutivos um destacamento constituído por duas baterias de artilharia de campanha, quatro baterias de metralhadoras, estando estas formadas em Quadrado, e aproximando-se delas com muita insistência, que no último combate que durou dez horas, a uma distância que chegou a ser de cinquenta metros, revela uma moral e uma instrução de tiro e aproveitamento de abrigos que faria honra às melhores tropas brancas.»
Mas vejamos a opinião dos informadores sobre Mandume. Muakina, o velho «Lenga» de Nande, Chico Ipúlua e Tamira, este ainda criança em 1917, ouviam de seus pais e de toda a comunidade esta afirmação: «Mandume suicidara-se com a sua bela arma «Mauser», e Muakina explica: «Quando passamos pelo túmulo somos obrigados a descobrir-nos. Mandume foi o nosso Rei e o último que servimos.»
Mutamu, como sempre o mais objectivo, esclarece: «Todos os Sobas eram maus e cometiam barbaridades, mas Mandume era um monstro. Ficámos satisfeitos em passar às mãos dos Portugueses.» Em outra ocasião, confidenciava-me:
«Eu e um companheiro de nome Kisi andávamos namorando uma moça que parecia ter agradado a Mandume sem que o soubéssemos. Ele mandou chamar Kisi, fê-lo ajoelhar à sua frente e bateu-lhe com uma moca nos órgãos sexuais até morrer. Eu fui amarrado e torturado. Entortaram-me os pés com ferros e partiram-me os pulsos.»
Tive ocasião de constatar a veracidade desta afirmação. Mutamu possuía pés e mãos completamente deformados, virados para um lado, com os ossos salientes próprios de fractura antiga, consolidada. «A mando de Mandume, foram também mortos dois de seus tios, Hinadelua ya Mulundu, Vajeka ya Mulundu, além de uma irmã muito querida, que morreu às mãos do próprio Marodume.»
Tive ocasião de constatar a veracidade desta afirmação. Mutamu possuía pés e mãos completamente deformados, virados para um lado, com os ossos salientes próprios de fractura antiga, consolidada. «A mando de Mandume, foram também mortos dois de seus tios, Hinadelua ya Mulundu, Vajeka ya Mulundu, além de uma irmã muito querida, que morreu às mãos do próprio Marodume.»
No entanto, Mutamu e Silasa declaram não ser verdade que o Soba mandasse abrir a barriga a mulheres grávidas. Não posso, entretanto, resistir à tentação de transcrever um pensamento, espontâneo, de Mutamu, em sua língua, vertendo-o depois, em tradução livre, para o português:
«Kenañalelo diua osese ohamba yeto ndele. Oh! mokutekula ovanu kemua nande. Okuananapo unene ovanu oinima io ngaho. Kesemuno otadengua. Nau inaningasa name oiodengange gaha kemadingaba. Atuse nase iokaana oko o Siueda. Oh! hanga otemo ndipá okuakufuapo ku Amukoto Uakapa inodenga okaana ehalelo dilua inafadikuau o Weyulu no Nande aié ovatalapa kavena mbudo ovo. Mandume okuetumanapo unene.»
Tradução livre
«As ordens não eram boas, mas recebiam-nas por virem do Soba. Oh! Não tratava bem as pessoas. Matou muita gente e sem culpa. Batia em toda a gente, mesmo os que não têm culpa, como eu. Mandou entortar-me os pés. Castigou a mim e ao Siueda. Oh! Queria matá-lo, mas foi salvo por Amukoto Uakapa, que disse: «Não mata esse homem que foi muito tempo criado de Weyulu e Nande.» Matou muita gente, não era bom, não dava ordens boas como as dos outros Sobas, Weyulu e Nande. Estes eram bons, não faziam mal a ninguém. Mandume acabou com a vida de muita gente.»
Passemos agora aos outros informadores: o velho Siueda foi pastor de cabras de Nande e Mandume. Conta que foi salvo por Amukoto e Uakapa, 'Lenga' de Mandume. Esta é a história que Mutamu contou e dada antes em tradução livre. Siueda explica assim o desenrolar da tragédia. Desejava ir trabalhar no Sudoeste, e Mandume, ao sabê-lo, mandara-o matar. Já vimos como foi salvo por Amukoto. E esclarece: «Mandume só era bom para os 'Lengas'. Mandava matar as pessoas na «chana» do Nakupira, que por isso se transformava em motivo de poemas tenebrosos de todos conhecidos. Matou por suas próprias mãos a irmã de Matamu e mandou abandoná-la às feras, na Nakupira.
Nandyala, minha velha informadora, tem uma interessante história vivida com Mandume. Mandume vira-a dançar ao som da 'Omakola' único instrumento usado pelo Cuanhama, e que é tocado pelo 'kimbanda' somente em cerimónias de práticas religiosas. Mostrando-se grato pela dança a ele dedicada, ordena que se mate imediatamente um boi e se prepare a pele para presentear naquele mesmo momento a Nandyala. Só a secagem e o amaciamento da pele levavam geralmente cinco dias a realizar. Após esta fase, é o couro cortado em tiras, que, costuradas, formam a típica vestimenta da mulher. Uma multidão de servos extenuados atirou-se à tarefa, sob pena de serem espancados até à morte. Nandyala afirma que o seriam.
Mas a roupa foi feita e vestiu-a na presença de Mandume.
Mas vejamos agora a opinião de Ondyebo, outro irmão de Mutamu, com 102 anos, ao ser inquirido pelo chefe de Mukunda, Tamira.
Tamira - É verdade que Mandume mandava matar as mulheres e as vacas?
Ondyebo - É verdade. Ele fez um reinado muito feio. Eu cultivava meu arimbo (quinta) com muito massango e massambala (sorgo). Mandume mandava tirar toda a sementeira que semeei com tanto esforço. Se estivesse bem disposto, mandava dar uma cria em troca do arimbo. Mas o meu 'arimbo' valia mais de três bois.
T. - Como é que você viveu com Mandume? Dizem que mandava matar os feiticeiros para o lado de Nakupira...
Ondyebo - É verdade. Ele fez um reinado muito feio. Eu cultivava meu arimbo (quinta) com muito massango e massambala (sorgo). Mandume mandava tirar toda a sementeira que semeei com tanto esforço. Se estivesse bem disposto, mandava dar uma cria em troca do arimbo. Mas o meu 'arimbo' valia mais de três bois.
T. - Como é que você viveu com Mandume? Dizem que mandava matar os feiticeiros para o lado de Nakupira...
O. - Na 'chana' de Nakupira matou mais de uma pessoa. A minha irmã Limbuese, filha de Inhepo, que era rapariga nova e ainda usava «ondyeva»...
T. - Sua irmã foi enterrada?
O. - Todos que ele matava foram deixados na chana para serem comidos pelos pássaros e outros bichos. Minha irmã não foi enterrada, pois todos aqueles que Mandume matava não podiam ser enterrados. Depois de morta, tive que levar um boi ao Soba. Se o não fizesse, seria morto. O boi é para pagamento por nos ter morto um parente. Eu fico a chorar a irmã e ainda fico sem boi...
T. - Ouvi falar que Mandume mandara uma vez um homem subir uma árvore, uma palmeira altíssima, e atirara nele como pontaria. É verdade?
T. - Ouvi falar que Mandume mandara uma vez um homem subir uma árvore, uma palmeira altíssima, e atirara nele como pontaria. É verdade?
O.- Sim. Atirava na pessoa e nas conchinhas de Ombaba que lá mandava pôr. Chamava-se Ankongo, filho do homem Siendya. Foi pendurado lá em cima e depois Mandume fez pontaria.
T. - Diziam que Mandume mandara escalpelar um branco...
O.- Ouvi dizer. Um operador chamado Hengualate que operou um branco. Besuntou-lhe a cabeça com «lukula» e amaciou o couro cabeludo. Pôs manteiga.
Na opinião de Tamira, o fim do reinado do Soba e a sua passagem para o domínio português representou um bem para o Povo Cuanhama. Era o termo de uma vida intensa de lutas e desespero. Da humilhação do homem e do sacrifício dos seus ideais. Nos Portugueses viam eles a salvação de suas próprias vidas e daqueles que amavam. Nem sequer lhes interessava saber se continuariam ou não detentores de seus territórios. O importante era mudar, e só os Brancos ofereciam essa alternativa.
E Tamira cita: «Um 'Lenga' de Mandume tinha dois cavalos, chamados Simeda e Amunio. Por ordem dele, sai com os animais e vai estragar (pisar) as lavras dos súbditos e matar aqueles que lhe desagradavam. Makiri, o 'Lenga', entrou nas terras da mãe de Tchietekela, Soba do Cuamato, e danificou-lhe toda a lavra. Os Cuamatos fugiam, espavoridos, sem reagir, por se tratar do poderoso Mandume, a quem ninguém se podia opor. Contudo, se se perguntar a um velho Cuanhama a opinião sobre a sua figura, reconhecem-no como um «grande soberano».
Como é lógico, a única opinião divergente deveria ser a de seu descendente Paulus Nande, filho do Soba anterior a Mandume. Dizia-me Nande que Mandume desejava continuar a lutar nas 'cacimbas' de Môngua. Os brancos do Evale juntaram-se aos de Roçadas e só assim puderam vencer. Só com a ajuda dos Ingleses derrotaram o indomável guerreiro. Suicidou-se com uma bala da sua bela «Mauser». Tinha quatro mulheres, mas não deixou filhos nem sobrinhos. Afirma Mande que ele não era tão mau quanto a história o retrata. Foi acusado de muitas mortes que não cometera. Os próprios 'Lengas', com o poder autoritário que disfrutavam, cometiam os crimes em nome de Mandume.
Nande afirma ainda que Mandume era um homem justo e só matava quando muito zangado. Isto não releva, é cairo, os crimes confessos, tanto mais que Mandume vivia eternamente zangado contra tudo e todos.
Termino esta parte da personalidade de Mandume com a opinião de Nande, o actual representante legítimo de um reinado extinto, num passado ainda recente, herdeiro desse sumptuoso Ovambo e de uma raça reconhecidamente superior em relação às outras tribos do mesmo bloco.
Hoje, os Cuanhamas «queremos» viver em paz, não desejamos a guerra. Como autoridade superior gentílica, como Regedor, abaixo da autoridade portuguesa, se encontrar algum Cuanhama nestas «guerras modernas», amarro-o e entrego-o às autoridades.» (1).
Hoje, os Cuanhamas «queremos» viver em paz, não desejamos a guerra. Como autoridade superior gentílica, como Regedor, abaixo da autoridade portuguesa, se encontrar algum Cuanhama nestas «guerras modernas», amarro-o e entrego-o às autoridades.» (1).
(1) Gravação em fita magnética da primeira entrevista com Paulus Nande, actuando como intérprete Tito Lívio da Costa Alemão. Nande também falava português.
Nação Ovambo, M. Helena Figueiredo Lima, Universidade Nova, Editora Aster.
Nota: as fotografias foram copiadas do livro acima referido.
rubelluspetrinus.com.sapo.pt
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