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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011



Entrevista de D. Januário Ferreira


D. Januário Torgal Ferreira, bispo das Forças Armadas, dá um entrevista à Revista Alumni UPorto.
Vale a pena perder algum tempo para ler.


"Em entrevista, D. Januário disse que “ser patriótico não é estar de joelhos e aceitar tudo o que nos dizem”. 
À luz destas declarações, que avaliação faz da recente greve geral? 
Foi um exercício democrático. Mas ao mesmo tempo notava-se, quer por parte do Governo, quer por parte de outros setores da sociedade portuguesa, [a tentativa de passar a ideia de] que era uma atitude irresponsável. No sentido em que, se se perde mais um conjunto de horas, a economia do país fica mais debilitada. 
Não concorda com esta visão?
Não concordo, não. Nota-se que essas pessoas não têm o realismo de escutar os outros e as no- tas que algumas instituições, que foram as organizadoras da greve, publicaram. A saber, foi dito que a greve, entendida como último recurso da comunidade trabalhadora, deverá significar que a situação do país é perfeitamente intranquiliza- dora. Além de intranquila, é intranquilizadora. 
Acha que o povo português deve vir para a rua manifestar a sua discordância em relação às políticas de austeridade?Com certeza. Fico sempre admirado com o espírito de disciplina e de civismo [do povo português]. Com certeza que há veemência, com certeza que há vozes demasiadamente inflamadas, com certeza que há ditos que ferem qualquer dicionário... Mas o que nós não assistimos foi à arruaça, à violência e à injustiça. Apesar dos comentários infelizes do perigo de tumultos e de anarquias... 
Não teme um agravamento da conflitualidade social, porventura com os níveis de violência e de desobediência civil que se verificam na Grécia?Poderá haver, de facto, esse problema. Se este clima continuar, não excluo uma situação semelhante à da Grécia. Há aqui dois problemas: distribuir – usando o adjetivo que Cavaco Silva usou – com equidade e justiça social os frutos do trabalho; e tratar as pessoas e as instituições como sujeitos, e não como objetos. Começo a ficar um bocado inquieto quando se diz: “fulano foi patriota”. Porquê? Porque defendeu os cortes no Orçamento. Esse é que é o patriota? Aquele que fabrica pobres, miseráveis e oprimidos é que tem amor à pátria? Eu acho que o patriota é o solidário. E a solidariedade começa pelos mais aflitos e pelos mais doentes.
Considera, portanto, que não está a haver equidade na distribuição dos sacrifícios?
Eu acho que não! As zonas mais vulneráveis, mais abandonadas e mais debilitadas económica e socialmente não têm sido zeladas com uma proporcionalidade monetária justa e compensa- dora. Uma malga de sopa mata a fome. Mas uma malga de sopa significa, tantas vezes, o mais profundo desrespeito pelo ser humano: “Toma lá!”. É o olhar de cima. E, como diz o García Márquez, “só se pode olhar de cima como se olha para uma criança: para a ajudar a crescer”. Aí é que o olhar de cima não é uma afronta! Nós ficamos muito satisfeitos, e isso são restos do salazarismo, com a solidariedade que engana a fome. O que eu queria era justiça que matasse a fome! As pessoas têm direito, como homens, a ter um trabalho com um salário justo. Não um salário precário, um salário por favor ou um salário que equivalha à malga de sopa.
Isto significa que a coesão social e o crescimento económico estão a ser esquecidos pelo Governo?
A parte produtiva e social está a ser esqueci- da. Tudo isto vem, a meu ver, da inclemência, do medo e do pânico. Já com o último Governo chegou-se à conclusão de que não havia dinheiro. E, então, sob a pressão do medo, do perigo e da desonra nacional foi possível assinar um acordo [com a troika]. Mas a inclemência e o medo não lhes deu tempo, nem lucidez, para pensar que o que foi prometido ser pago em três anos devia ser pago em seis ou sete anos. Que a dívida deve ser paga, com certeza! Devemos dar o testemunho cívico de que somos honestos, retos e patriotas. Agora, fazer pedidos de dinheiro para ficarmos de joelhos diante da Europa... Neste momento, por muito que isto pareça radical, não sei se será possível mantermo-nos na Europa. Aí é que eu tenho medo que haja tumultos e levantamentos. Porque isto da Alemanha e da França estarem a comandar os destinos do dinheiro, com buscas lucrativas que para mim têm sabor autêntico a agiotas, pode criar uma crise terrível.


 “Doença ética” na Europa
A atual crise económica e financeira da Europa de- corre de uma falta de solidariedade entre Estados- membros?Eu acho. Não vejo nenhuma solidariedade. Os grandes criadores da Europa não quiseram criar a solidariedade do aço, do petróleo ou do carvão. O que queriam era a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a entreajuda. Hoje, um tipo ajuda para dominar o outro. “Eu empresto-te dinheiro mas tu ficas a meus pés”. Tenho um certo re- ceio de que a democracia, não que acabe, mas que seja fraturada. Tenho escutado um certo vocabulário de antagonismo repulsivo [na Europa]. Estamos a criar rivalidades e desconfianças entre países e a alienar as suas soberanias. A solidariedade é um mito. Amanhã, ainda vão chamar Pinóquio à Merkel e ao Sarkozy. Eles mentiram. Eles só estendem a mão se ela vier mais cheia. 
Mas é um problema de lideranças ou tem que ver com o próprio sentimento dos países?
Não direi que são defeitos rácicos ou idolátricos de cada país. Nem de lideranças. Nós estamos a assistir a uma doença ética na alma europeia. Andou-se para aí a pregar a cidadania, mas a lição foi muito mal aprendida. Há uma rivalidade sur- da, um orgulho, um imperialismo. Os psicólogos, os sociólogos, os cientistas políticos têm que estu- dar tudo isto melhor. Mas que estamos diante de moléstias de valores éticos, eu não tenho qualquer receio de o dizer. E a Europa não nasceu para ser isto: nasceu para ser uma família.
Há uma crise de valores na Europa? 
Eu acho que há uma crise de valores. O mundo ocidental é profundamente egoísta. Vive para si; o outro não conta na balança. Só conta quando pode ser fonte de riqueza e de exploração. Nós estamos, de facto, na exploração do homem pelo homem. 
Está pessimista em relação ao futuro da Europa?
Estou um bocado pessimista, querendo ser otimista. Sempre sonhei com esta troca de valores. Nós [europeus] temos muito a dar uns aos ou- tros. O meu grande sonho, como cidadão português, era que se construísse uma Europa para todos. Não uma Europa para alguns. E quando esses alguns querem ser os donos e os senhores, então temos o imperialismo. Não estaremos à porta de uma sublevação?
Voltando a Portugal, havia capacidade para nego- ciar o acordo com a troikade outra forma?Eu acho que havia, ainda que o Governo anterior estivesse na opinião pública extremamente debilitado. E estes que estão neste momento no Governo tiveram muito tempo para estudar a lição, mas pelos vistos foram maus alunos. Porque o que temos vindo a assistir são medidas avulsas. Não há um estudo abrangente da situação. Compreendo que tem havido pouco tempo para esse exercício, mas escandaliza-me alunos que tiveram dois anos para se debruçarem sobre as soluções. Eu tenho a impressão de que a conclu- são a que chegaram é: “Vamos agora encontrar soluções para o fartar vilanagem”. Mas não encontram soluções nenhumas para o crescimento económico. 
Há neste momento margem para introduzir políticas de crescimento económico?
Acho que haveria margem relativamente ao pagamento da dívida. Porque o pagamento da dívida está assente nos nossos bolsos. Por isso mes- mo eles dizem: “Não há dinheiro”. Portanto, eles fizeram as contas e começaram a cortar. E agora o senhor primeiro-ministro já diz ser possível re- negociar algumas coisas. O bem nacional devia ser o bem daqueles que não têm acesso ao que é fundamental na vida de um cidadão. Repare, só se tem falado nos mais vulneráveis para dizer: “Nós não estamos contra os pobres”. Nunca é dito: “Os pobres estão em primeiro lugar”.
Não é dada prioridade aos mais desfavorecidos, é isso?Não, não há equidade naquilo que se pede aos vá- rios níveis sociais que estruturam o país. Quando dizem que estamos a viver acima das nossas possibilidades, eu fico escandalizado. Mas quem é que tem vivido [acima das possibilidades]? Há muita gente em Portugal que nunca teve possibilidades, como é que agora vivem acima daquilo que nunca tiveram? Isso é que é preciso dizer a muitos senhores. 
As pessoas vão aguentar mais ou já chegámos ao li- mite dos sacrifícios?
Miguel Torga disse nos seus diários que nós so- mos “um povo meigamente revoltado”. Dizemos que vamos para a rua, que vamos protestar, que vamos mudar o regime... mas ao fim ficamos comodamente em casa a ver o Benfica-Sporting, a fumar um cigarro e a beber um copo de vinho. O português, infelizmente, é “meigamente revolta- do”. E pode ser embalado por certas formas de esperança. Há uma réstia de autocomplacência e de otimismo.


Igreja “não deve impor: deve propor” 
Que papel é que tem a Igreja Católica num contexto de emergência social?A Igreja deve colocar os pobres em primeiro lugar. 
E tem-lo feito? 
Nas suas várias instâncias, a Igreja está a fazer o máximo. Só que esse trabalho não é apenas dar euros. O importante, neste momento, é que a Igreja clame por justiça social. Nós estamos numa altura em que é preciso fazer reformas. Em que é preciso muita gente despir-se proporcionalmente, contribuir com generosidade, que é uma forma de pagar direitos à sociedade que nos construiu. E nisso a Igreja devia ir o mais longe possível. Até na sua própria pobreza. Se um dia houver um cataclismo, em que as pessoas não tenham onde dormir, uma igreja deve ser um porto de abrigo.
A Igreja está a ser esse porto de abrigo?
Nunca devemos ficar satisfeitos com o que faze-mos. E a Igreja devia ser modelo na forma hu- mana de estar próxima das pessoas. No explicar, no traduzir da mensagem, no bom-humor – à Igreja falta-lhe, por vezes, o bom-humor, no à-vontade.... Não é natural construírem-se palácios, quando Nosso Senhor nasceu num presépio.

Há sinais de sumptuosidade na Igreja que contrastam com as dificuldades atuais?Eu nunca concordaria com a grandeza e monumentalidade de uma casa de um bispo. Tenho grande respeito pelo atual bispo [do Porto] e por bispos anteriores, mas eu não me via a habitar uma casa daquelas [Paço Episcopal]. A minha consciência diz-me que é muito melhor viver num simples andar. É muito mais natural. São esses aspetos exteriores que herdámos da História que não nos dão a naturalidade, como as vesti- mentas, esses uniformes palacianos... Parecemos mais homens da super grandeza do que cidadãos normais; e é isso que se espera da Igreja! Mas há também uma mentalidade portuguesa, de um conservadorismo atroz, que acha que é preciso manter um determinado tipo de elevação. 
Essa mentalidade não decorre da própria postura do Vaticano?Sim. O Vaticano é a expressão de uma história. Mas de uma história que devia ser relida e con- temporizada. No período renascentista fez-se isto, mas isto pode dar a impressão de que nós [Igreja] somos fidalgos. Só que nós somos filhos de um carpinteiro... “Se queres ver o vilão, mete- lhe a vara na mão”, diz o povo português. Isto é, às vezes os maiores ditadores e os maiores capita- listas, no pior sentido do termo, são aqueles que um dia nada tiveram mas que passaram a ter um espaço de poder. 
Mas a Igreja também funciona como um espaço de exercício do poder...Aquilo a que chama poder devia, na Igreja, ser serviço. A minha responsabilidade é servir. E aquele que serve considera os outros, antes de mais, como irmãos no diálogo. Não deve impor nada: deve propor. A quem é crente e a quem é descrente eu faço uma proposta! E devo ser isento nessa proposta. É esta mudança que a Igreja ainda não fez. Vão ao Evangelho, está lá: a pobre- za, a simplicidade, a coragem, a liberdade...


“Explicar melhor os aspetos positivos da sexualidade” 
Há liberdade no seio da Igreja? Lembro que o Senhor Bispo disse, em entrevista, que os “homens da Igreja são educados no medo e nunca no à-vontade”. 
Isso acontece na Igreja como acontece na socie- dade. No nosso país há muito pouca descontração, muito pouco à-vontade. Há uma postura excessivamente respeitadora perante quem tem o poder, como um aluno diante do catedrático. Mas, quando vira as costas, [o aluno] chama ao catedrático os nomes mais incorretos e inimagináveis. Não seria muito melhor nós termos um colóquio aberto com a gente do poder, cuja importância não nos esmaga, do que vivermos ao gato e ao rato? 
Essa postura excessivamente respeitadora inibe a crítica dentro da Igreja?
Como noutras sociedades, é preciso [na Igreja] conquistar a liberdade. Eu sei que a Igreja tem avançado muito, mas há uma poeira de séculos que nos trava o passo. Não sei se é a batina, que eu raramente uso [risos]. Acho que a Igreja, no seu todo, não tem o à-vontade de reformar ou de alterar situações muito sérias. Há um receio muito grande, uma obediência, uma fidelidade a convicções... Mas algumas dessas convicções deviam ser precisadas ao longo das épocas e dos ambientes.
Ou seja, a Igreja devia acompanhar a evolução da sociedade?
A sociedade é muito sensível a determinados temas. Perante tudo o que cheira a sexo, a socie- dade tem uma atitude de flexibilidade exagerada, de extremismo até. Nestes temas, a Igreja tem de facto de saber explicar-se diante do mundo. Tem de ter um outro à-vontade e saber explicar muito melhor os aspetos positivos da sexualidade; e nunca aparecer como uma barreira ou como uma emissora de interditos: “Não faças isto e aquilo e aqueloutro”. Estou a pensar no planeamento conjugal, na utilização de métodos artificiais de conceção, na forma como a Igreja olha para certas ruturas da vida matrimonial, como a separação e o divórcio... Depois de ouvir tanta gente no plano nacional e internacional, eu tive alguma dúvida de que, em certas situações, era moralmente obrigatório usar o preservativo? Não tive dúvida nenhuma! E quantos vitupérios eu ouvi... Até que o Papa, depois de vários diálogos jornalísticos na ida à África, disse: “Num ou noutro caso” [é legítimo o uso do preservativo]. É uma questão de respeito pela inteligência e pelo bem.
A Igreja continua, contudo, bastante inflexível em várias matérias, como a ordenação de mulheres ou o celibato sarcedotal. Esta postura é necessária para manter um determinado padrão moral na Igreja? 
É também o respeito pela tradição. Mas estou convencido de que, nalguns desses temas, vai haver mudanças. No sacerdócio das mulheres, o Papa falou e a noção de magistério ordinário é de forma definitiva. Mas, por exemplo, no caso do celibato, não tenho quaisquer dúvidas de que um dia a Igreja, com o mesmo respeito pelas razões da fé e sem ceder a pressões, vai mudar. Não tenho dúvidas nenhumas. Agora, ao dizer que isto vai ser possível, eu não alieno a cabeça. Às vezes dizem-me: “Você devia ser mais ponderado, mais prudente”. E eu sou! O que eu quero dizer a católicos e a não católicos é que determinadas posições [da Igreja] não são o que parecem. 
Sente-se uma voz incómoda dentro da Igreja?
Não me sinto uma voz incómoda, [mas] sinto que algumas pessoas se incomodam. E uma das formas de se sentirem incomodadas é pensarem: “Eu já tentei humilhá-lo e não consegui. Eu já tentei retorquir e não consegui. O melhor é eu não publicitá-lo”. E então essas pessoas, quando nos encontramos, falam-me pouco. Não é não me falarem, é falarem-me pouco. A pessoa man- tém a sua convicção e a única forma de mostrar ressentimento é o silêncio. Isto acontece num ou noutro caso; não é generalizado."


in  Revista dos Antigos Estudantes da U.P., nº 15, Dezembro 2011

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