Estamos em plena escalada de guerra fria e talvez, esperemos que não, a caminhar para uma guerra bem quente. Uma escalada que no limite da guerra fria pode-se assemelhar ao jogo da galinha e ser o ponto de passagem para uma guerra bem quente. No fundo creio estarmos mesmo à beira de uma situação limite que pode ser caraterizada como uma espécie de jogo da galinha a relembrar o filme de James Dean em Fúria de Viver. Diz-nos a Wikipédia:
“O jogo da galinha é um jogo simétrico, baseado na história de dois rapazes que disputam o amor de uma garota.
O nome do jogo tem relação com o fato de que, nos Estados Unidos, as pessoas consideradas fracas ou perdedoras são chamadas de “galinha” (chicken).
Os participantes do jogo passam por uma competição. Cada um posiciona o seu automóvel, cada um em lados opostos, numa pista em linha reta com uma marcação na metade da pista. Ambos os carros se posicionam nas pontas da pista, numa mesma distância da linha de marcação, ou seja, frente a frente, e devem arrancar ao mesmo tempo. Os jogadores possuem duas opções: desistir ou não desistir. Aquele que desiste, desvia-se do caminho; o que não desiste, segue em frente. Caso os dois oponentes não desistam, perdem tudo, incluindo a vida. Se apenas um deles desiste, o que não desiste ganha, e o outro perde. E, se ambos desistem, ambos perdem o respeito dos amigos, mas ainda têm seus carros e as suas vidas.”
Simples, o jogo da galinha. Deixemos de falar em automóveis de recreio e falemos de máquinas de guerra, hoje também nuclear, dos seus condutores, Ocidente e Putin, da pista em que se pode efetuar a corrida, e esta pista é pois o caminho para a guerra, falemos dos povos em vez de namoradas e percebe-se que há, afinal, muita gente a querer que se jogue o jogo da galinha, o jogo da guerra. Para quê? Para que um jogador desista, Putin, e se vergue ao mundo unipolar dirigido por Donald Trump? Será assim?
Vale a pena aqui citar George Friedman:
“A Rússia é do ponto de vista geográfico fundamentalmente diferente do resto da Europa. O resto da Europa é uma região marítima, com extensos rios que levam aos portos e onde ninguém fica a mais de 650 quilómetros do mar. A Rússia é essencialmente um país sem litoral. Os portos do Oceano Ártico estão frequentemente congelados e os portos no Mar Negro e no Mar Báltico podem ter o seu acesso aos oceanos bloqueados por inimigos que controlam apertados estreitos marítimos. Todas essas portas estão distantes de grande parte da Rússia.
Tucídides distinguia entre Atenas, uma potência marítima cujos habitantes viviam em riqueza e tinham tempo para a arte e para a filosofia, e Esparta, um território sem litoral cujo povo vivia uma vida difícil com oportunidades limitadas de auto-indulgência, mas era capaz de sobreviver a condições que quebrariam os atenienses. Ambas eram gregas, mas eram diferentes.
O mesmo pode ser dito para a Rússia e a Europa. Como um poder sem litoral, as oportunidades da Rússia para o comércio internacional ou até mesmo para o desenvolvimento interno eficiente são limitadas. A vida dos seus habitantes são duras, e estes podem suportar a privação que (e quebrou) outros países europeus. Um vasto país com uma população dispersa, a Rússia só pode ser mantida unida por um poderoso governo central, controlando um aparato político e de segurança interno que administra as tendências centrífugas inerentes a qualquer país. Requer um regime que não apenas tenha autoridade suprema sobre todo o país, mas também se apresenta com autoridade – uma força irresistível que não pode ser contestada.
Houve ruturas massivas na Rússia, claro, incluindo a Revolução Russa e a queda da União Soviética. Mas o Ocidente continuamente confundiu o colapso das instituições com a liberalização, e não conseguiu reconhecer isso como sendo desastroso para a Rússia e alheio à cultura russa.
O Ocidente sempre se surpreendeu quando a Rússia retornou ao que era, culpando Stalin ou Putin por restabelecer as instituições que estabilizaram a Rússia, e considerando isso como um infortúnio devido à maldade de um homem. Perversos poderão ter sido, mas entendiam melhor o problema russo do que aqueles que pensavam que a Rússia se poderia tornar como a Itália ou a França.”.
Dito por outros palavras, este exemplo de Friedman, no caso do jogo da galinha, quer dizer que a Rússia se poderia tornar um vassalo dos Estados Unidos tal como como a França e a Itália. E Friedman avisa-nos da loucura dessa intenção.
Pois bem, neste contexto fico horrorizado com a série de textos publicados pelo jornal Público, quase como um apelo de peguem em armas, mesmo que diplomáticas por agora, e neste grupo de textos, sublinho o texto de Rui Tavares questionando-se se um progressista pode defender Putin. O que aqui me interessa é a pobreza de argumentos e isto num dos melhores jornalistas portugueses a fazerem parte do coro internacional contra a Rússia de Putin, Porque é afinal aí que está o Diabo que nos há de querer crucificar. Será que a certeza dele quanto ao gás neurotóxico é igual à certeza de Tony Blair quanto às armas de destruição em massa no Iraque? Pela virulência do texto é o que me parece. Mas sendo tão violentamente assertivo quanto a Putin e como num contexto destes ninguém pode ser indiferente seja ao que for, seria curioso saber ao lado de quem é que afinal se deve estar e com que motivos, exatamente? Ao lado de Theresa May e de Donald Trump? Até agora temos apenas afirmações, do género “ de que não há outra explicação possível”. Nenhuma prova até agora foi publicamente apresentada e na lógica do texto de Rui Tavares não há meio-termo, se não estamos ao lado das acusações destes dois dirigentes estamos então ao lado do Diabo em pessoa, estamos ao lado de Vladimir Putin e caímos então sob a alçada da sua crítica virulenta. Para evitarmos o desagrado da sua crítica resta-nos então acreditar na fé de Theresa May e de Donald Trump. É muita crença para um historiador, é pretender um mundo binário de verdadeiro ou falso, com exclusão de tudo o resto e mesmo até com exclusão de qualquer pensamento crítico. O mundo neoliberal por excelência, com dois pavões à sua frente, Donald Trump e Theresa May, é o que parece estar-se a defender ao nível da nossa imprensa, na qual destaco o jornal Público..
Mas ao mesmo tempo acho curioso que se tenha feito um silêncio absoluto quando se autoriza o envio de armas letais para a Ucrânia, e não é para andar a matar moscas, ou quando se renovam os poderes discricionários de Trump poder fazer a guerra onde quiser, quando quiser e com os meios que quiser. No caso em questão, falo de aprovações no Senado americano que ocorreram no último trimestre de 2017. Quem o diz é o Senador Republicano Rand Paul no plenário do Senado quando afirma. “Mesmo se meus colegas dizem: “guerra, guerra, essa é a resposta a dar em todo o lado e durante todo o tempo”, perdoem-me, venham, assinem, coloquem o vosso nome [no que aprovaram].”
Mas repito fico espantado com a virulência tão assertiva de Rui Tavares e de muitos outros jornalistas do mesmo jornal contra Putin. Será que esta posição está assente em posições oficiais britânicas como a que se segue?
Relatam-nos:
“Mrs May, speaking during a visit to Birmingham, said: ‘I’m clear that what we have seen shows that there is no other conclusion but that the Russian state is culpable for what happened on the streets of Salisbury.’
Meanwhile, the gathering of the EU Foreign Affairs Council declared its ‘unqualified solidarity’ for the UK over the incident.
In a joint statement, the council said the European Union ‘takes extremely seriously the UK Government’s assessment that it is highly likely that the Russian Federation is responsible’.”?
Será esta a base da acusação de tanta gente?
Quanto ao mundo unipolar que parecem estar a defender os jornalistas do Público e em particular Rui Tavares, até quase como uma espécie de imperativo, recomendo aos leitores de A Viagem dos Argonautas, três livros: um de John Gray intitulado Falso amanhecer, um outro de Huang Hui intitulado China – Século XX e quanto às questões geopolíticas da zona Leste recomendo um terceiro, o livro de George Friedman Focos de Tensão.
Não estando nada interessado em questionar o texto citado de Rui Tavares, porque não são as querelas que agora interessam, mas sim a riqueza, ou fraqueza, de pontos de vista, apresento ao leitor de A Viagem dos Argonautas dois outros pontos de vista sobre o momento que atravessamos. Um deles, de George Friedman[1], intitulado A Rússia de Putin, e o segundo, de um analista político de Washington, intitulado A campanha global contra a Rússia está a levar-nos perigosamente para perto do desastre, que são bem mais ricos que os textos do Público.
E no confronto dos três artigos o leitor que tire as suas conclusões.
Coimbra, 28 de Março de 2018
Júlio Marques Mota
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[1] George Friedman é autor do livro Focos de tensão, um livro que francamente recomendo a toda a gente.
aviagemdosargonautas.net
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