O tempo é uma forja muito mais caprichosa do que muitos julgam. A história é uma máquina do tempo em que se cruzam os monstros do passado e todos aqueles que lutaram pela sua emancipação, num combate em que o futuro e o passado estão igualmente presentes
"Uma vez conheci um homem que viajou no tempo. Mergulhou na vertigem espaciotemporal que o catapultou dos anos 80 para o presente e encontrei-o numa das margens da ria de Bilbau. Entrou na máquina que o trouxe ao futuro ainda jovem e saiu com o rosto enrugado pelo tempo. Respondeu-me que era mentira. Que tinha vindo do futuro e aterrara no passado. De uma cidade cinzenta e industrial onde a luta de classes era o motor da história, observava agora como se afogava a rebeldia nas mornas águas da cidadania responsável. Curioso, perguntei-lhe como havia viajado no tempo. Um dia, a polícia emboscou-o e metralhou-o. Moribundo, conseguiu sobreviver e viveu sequestrado durante três décadas nos cárceres espanhóis”, assim começava um curioso texto, do jornalista Bruno Carvalho, sobre um homem que viajou 30 anos numa cápsula fechada.
O tempo anda mais misturado do que pensamos. Há momentos em que o presente, o futuro e o passado se parecem jogar num único instante. Como se daquele momento dependesse a redenção de um rio da história invisível, composto por todas as gerações que se bateram por um mundo melhor ou a manutenção, por mais mil anos, das correntes que nos prendem. E por vezes, como nos dias de hoje, temos o regresso dos monstros do passado, vendidos como as últimas novidades. Quem assiste à recuperação de um discurso racista com o pretexto de combater o “politicamente correto” consegue descobrir guiões antigos que pretendem fazer de determinados grupos da população o bode expiatório das misérias criadas por outros. Quem mandou neste país, nos últimos 40 anos e nos 48 anos anteriores da ditadura, não foram os pobres, os negros e os ciganos. A situação que temos num dos países mais desiguais da Europa foi construída por gente para quem os banqueiros, dos bancos que roubaram e afundaram, eram amigos do peito. Somos o país das portas giratórias, em que ser ministro é a antecâmara de ser administrador de um banco.
Coloquemos, pois, as coisas no seu devido lugar e com o seu respetivo peso: o rendimento social de inserção (RSI) significou menos 1,5% da despesa da Segurança Social em 2016. Os seus beneficiários receberam em média 113 euros – uma fortuna, como se vê, que dá para dar uma volta ao mundo e ir beber champanhe nas ilhas Seychelles. Segundo alguns estudos feitos – não há, obviamente, discriminação por raças no preenchimento de pedidos de apoio –, apenas 7% dos beneficiários do RSI são ciganos. O que significa que o peso do apoio a famílias ciganas andará à volta de 0,2% das despesas anuais da Segurança Social. Essas pessoas não recebem apoios sociais porque são ciganos, recebem-nos porque são pobres. Cerca de 90% dos ciganos encontram-se no limiar da pobreza. Situação que é perpetuada pelo racismo, pela discriminação e pela falta de escolaridade. Menos de 2,5% dos ciganos terminam o ensino secundário. Os estudos demonstram que o RSI, embora diminuto e reduzido, tem tido um efeito positivo em conseguir que os mais pobres e os ciganos consigam sonhar em frequentar o ensino obrigatório. Agora comparemos esses gastos sociais, que permitem a famílias de baixos rendimentos sobreviver e colocar as crianças nas escolas, com outros gastos habituais do Estado nos últimos anos. A intervenção da troika foi feita cortando os salários, as reformas e o apoio social aos mais pobres, e apoiando os bancos dos mais ricos. De tal maneira que a crise conseguiu o milagre da multiplicação dos pobres, mas também dos ricos: no final do governo da direita, os pobres estavam muito mais pobres e os ricos estavam mais ricos. Só o BPN custou aos contribuintes mais de 8 mil milhões de euros; o BES, não se sabe quantos milhares de milhões de euros vai custar. Mas uma coisa é certa: um dia de imparidades na meia dúzia de bancos que foram ao fundo custou muitas vezes mais do que o que pesa, aos contribuintes, o rendimento social de inserção para os mais pobres dos pobres.
Quando um candidato de um dos partidos que mais tempo esteve no governo depois do 25 de Abril escolhe os ciganos como culpados de todos os problemas de um dos principais concelhos do país, ele pretende duas coisas: mobilizar uma base eleitoral com o discurso simplista do ódio e deixar de fora, para continuarem a atuar, os verdadeiros responsáveis pela situação de pobreza e desigualdade que se vive em Portugal. O racismo sempre foi a forma escolhida pelas elites para dividir os mais pobres, de forma que ninguém reparasse nos desmandos dos mais ricos. Foi assim durante séculos com os judeus até ao nazismo, em que as crises e as fomes eram tapadas, pelos poderes da época, com o sangue e os massacres de judeus. Assim o fizeram reis e czares até Hitler. É assim na tentativa, em toda a Europa, de perseguir e criminalizar as populações de religião muçulmana. É assim o comportamento das forças da ordem nos bairros dos subúrbios das grandes cidades, como cantava Caetano Veloso no seu “Haiti”: “Só pra mostrar aos outros quase pretos/ (E são quase todos pretos)/ Como é que pretos, pobres e mulatos/ E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”.
Não é surpreendente, portanto, o apoio da extrema-direita nacional ao candidato do PSD em Loures. São farinha do mesmo saco. O perigoso, aqui, é que quando um dos partidos que têm governado o país endossa o racismo, isso tem o efeito de o naturalizar perante grande parte da população. A tentativa do PSD para colmatar o enfado generalizado que os eleitores têm com Passos Coelho, importando um discurso racista e trumpista, é uma manobra que, independentemente dos ganhos eleitorais a curto prazo, provocará catástrofes sociais duradouras. Os discursos das pitonisas da situação contra o chamado “politicamente correto” são parte desta manobra ideológica. Os poderosos do burgo não se contentam em mandar, explorar as pessoas e terem esmifrado os contribuintes nos seus negócios de honestidade duvidosa. Sempre que alguém os critica por fazerem um discurso discriminatório com aqueles que têm menos poder nesta sociedade, tentando reforçar ideologicamente a homofobia, o machismo e o racismo, começam a berrar como se fossem os perseguidos e ofendidos do burgo. Não faltam cronistas, de lágrima fácil, a dizer aqui-d’el-rei que está a liberdade em causa, quando há gente que confessa que não promoveu nos hospitais médicos por serem homossexuais ou quando há candidatos a autarquias que pretendem criminalizar a pobreza.
Em 1974, ano da revolução portuguesa, a escritora Ursula K. Le Guin publicou o romance “Os Despojados”. Como a maior parte das obras de ficção científica, fazia-se num futuro mítico a análise do que somos hoje. Nestas páginas digladiavam-se vários modelos de sociedade, com as suas qualidades e defeitos. Numa lua viviam as populações num regime igualitário sem Estado e autogovernado pelas pessoas, e no principal país do planeta existia um capitalismo selvagem que proporcionava uma vida de luxo a alguns e uma miséria sem escapatória para muitos.
O romance é fruto de um sentimento de época, um tempo em que havia a capacidade de sonhar mundos diferentes. O racismo, a xenofobia e o ódio alimentam-se de uma realidade frustrante em que campeiam as injustiças e as desigualdades, mas sobretudo são garantidos por uma imposição prévia: querem-nos, e têm-nos, impedido de sonhar com mundos diferentes e melhores, em que aqueles que têm mandado até aqui sejam varridos para o caixote de lixo da História. De alguma forma, precisamos de regressar a um passado em que as utopias são pensáveis, para que possamos construir um outro futuro.
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