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domingo, 24 de agosto de 2014

Almoços grátis e facturas - Além de insultuosa da cidadania, a Factura do Sorte é muito provavelmente contraproducente. E diz muito sobre o sentido cívico e o entendimento da acção humana por parte de quem nos governa.

Almoços grátis e facturas

Além de insultuosa da cidadania, a Factura do Sorte é muito provavelmente contraproducente. E diz muito sobre o sentido cívico e o entendimento da acção humana por parte de quem nos governa.
Da Factura da Sorte, o sorteio de automóveis topo de gama pela Autoridade Tributária para incentivar o pedido de facturas pelos consumidores, já se disse quase tudo: que é ofensivarascainsultuosa da cidadaniarepugnantepimba, que transforma os cidadãos em inspectores fiscais ou que é disparatada na medida em que muitos dos potenciais vencedores dos sorteios têm necessidades muito mais prementes e não terão sequer meios para manter os carros em questão. Concordo com quase tudo isto, mas além do mais acho que esta medida é, no longo prazo, contraproducente. E é contraproducente porque presume - erradamente - que a motivação adicional extrínseca que introduz é neutra em relação à motivação intrínseca.
Explico-me melhor. Motivação intrínseca é a que decorre de acharmos ou sentirmos que uma determinada acção é correcta ou desejável em si mesma. Motivação extrínseca é a que resulta de considerarmos que temos algo a ganhar, de forma certa ou potencial, como resultado "exterior" à realização da acção. Neste caso, a motivação intrínseca potencial consiste na disponibilidade de cada um para viabilizar o funcionamento de um sistema em que todos contribuam na medida do seu nível de rendimento ou consumo para financiar a provisão de bens públicos, bem como medidas de redistribuição determinadas por critérios de justiça social. A motivação extrínseca consiste na probabilidade (ínfima, naturalmente) de ganhar um dos automóveis sorteados. A Autoridade Tributária considera que ao introduzir esta medida está a reforçar a estrutura global de incentivos que leva os consumidores a pedir facturas, pois presume que aumenta a motivação extrínseca sem afectar a motivação intrínseca.
Porém, não é a verdade que a motivação intrínseca não seja afectada: ao dar um sinal directíssimo de que encara a disponibilidade cívica para viabilizar o contrato social como algo que é essencialmente determinado por uma análise tacanha dos custos e benefícios individuais por parte de cada um, a Autoridade Tributária está a fazer uma verdadeira campanha de sensibilização nacional em torno deste tema - mas no sentido contrário ao que seria desejável. De forma directa, televisionada e particularmente eficaz, está a desvalorizar a motivação intrínseca e a minar adicionalmente e de forma duradoura as bases do contrato social. Muitos, e neles me incluo, sentir-se-ão tentados a responder ao incentivo de forma contrária ao esperado, simplesmente como forma de manifestarem o seu repúdio face a esta extraordinária demonstração de venalidade. Muitos mais interiorizarão adicionalmente a ideia que contribuir para a viabilização financeira do contrato social é algo que só se faz a contra-gosto e mediante uma punição ou recompensa potenciais que o justifiquem.
Que há coisas - muitas coisas - que são feitas principalmente por motivação intrínseca é um facto bem conhecido de todos nós. E é também sabido que a introdução de motivações extrínsecas afecta a motivação intrínseca, podendo reduzi-la significativamente. O estudo clássico nesta matéria é o de Lepper, Greene e Nisbett, que numa experiência dividiram as crianças de um jardim infantil em três grupos a quem distribuíram papel e marcadores. A todas as crianças foi assim dada a oportunidade de realizarem uma actividade - desenhar - por elas considerada lúdica e agradável, isto é, carregada de motivação intrínseca. Mas a um dos grupos de crianças foi adicionalmente dada uma recompensa previamente anunciada (um certificado), enquanto o segundo grupo não recebeu qualquer motivação extrínseca e o terceiro grupo (de controlo) recebeu a recompensa sem anúncio prévio. Como previa a hipótese, as crianças do grupo a quem fora previamente anunciada a recompensa demonstraram menos interesse na actividade do que as restantes - ou seja, a motivação extrínseca reduziu a motivação intrínseca.
Este efeito de corrupção da motivação tem até um nome: chama-se efeito de superjustificação. Outro exemplo bem conhecido é o da doação de sangue, acto de civismo e generosidade por excelência: a oferta de um pagamento monetário como contrapartida pela doação de sangue pode motivar alguns doadores adicionais, mas corrompe a motivação intrínseca dos doadores altruístas e, em termos agregados, tende a reduzir a oferta de sangue. A obra seminal nesta matéria é The Gift Relationship, de Richard Titmuss, mas este efeito foi subsequentemente comprovado empiricamente numa variedade de contextos. É o principal motivo pelo qual a Organização Mundial de Saúde recomenda que a doação de sangue não seja remunerada.
Curiosamente, o livro de Titmuss deu origem a um aceso debate teórico no início da década de 1970 em torno do efeito de corrupção da motivação, em que Robert Solow e Kenneth Arrow (ambos vencedores do "prémio Nobel" da Economia) assumiram um lugar de destaque. Tanto um como o outro procuraram argumentar, contra Titmuss, que a motivação extrínseca, seja ela qualquer for, deveria simplesmente adicionar-se à motivação intrínseca pré-existente. No caso do sangue, o aumento do preço deveria conduzir sempre a um aumento da oferta, em consequência de uma lei universal do comportamento humano. Só que o comportamento humano, felizmente, é mais complexo e diverso do que presume o modelo do homo oeconomicus. Não só existem almoços grátis, como existem almoços que só são servidos de graça.
Aliás, é significativo que aqueles que menos disponibilidade têm para o entender sejam precisamente os economistas formatados na ideologia da prossecução estreita e tacanha do interesse próprio. Em numerosos estudos de economia experimental em que economistas ou estudantes de economia foram comparados enquanto sujeitos com grupos de controlo (não economistas), os primeiros mostraram-se consistentemente mais propensos a porem em prática o tipo de comportamento auto-interessado, não-cooperativo e egoísta previsto e afirmado pela teoria - revelando que esta, apesar de errada, é performativa, pois transforma a realidade no sentido postulado.
Regressando à Factura da Sorte, o que isto tudo nos diz é que é muito provável que a introdução deste esquema de incentivos por parte da Autoridade Tributária, além de politica e eticamente repugnante, seja também contraproducente devido ao efeito de corrupção da motivação. Para aferi-lo, não basta dizer, por exemplo, que o número de facturas emitidas com NIF aumentou 45% em Janeiro de 2014 face ao mês anterior, pois o efeito da motivação extrínseca perdura apenas enquanto dura o esquema de incentivos, enquanto que o efeito de corrupção da motivação é potencialmente muito mais duradouro.
Para promover eficazmente a cidadania fiscal, o que é necessário é introduzir verdadeira justiça fiscal, de modo a que todos sintam que todos contribuem na medida do que podem, bem como maior rigor e utilidade social na afectação da despesa pública, de modo a que todos sintam que o que pagam é justificado. O que a Factura da Sorte vem confirmar mais uma vez, a despeito dos indícios de que se trata de uma má ideia mesmo em termos de eficácia, é que vivemos no tempo da corrupção geral e da venalidade universal, em que tudo se tornou objecto de troca e do comércio mais rasteiros. Entre estes decisores políticos, os banqueiros caídos em desgraça das primeiras páginas dos jornais e outros corruptores activos e passivos, há diferenças de grau, mas não de qualidade.

(publicado originalmente no Expresso online)

ladroesdebicicletas.blogspot.pt

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