Beijinhos de amor
Quem não sabe não nota. Mas eu sei que aquela pequena cicatriz está ali e vejo-a sempre que me olho ao espelho. Está ali no lado direito do lábio inferior. Está ali onde noto uma pequena saliência que ficou desde que cortei o lábio no canto da mesa-de-cabeceira. A bem dizer, já só a consigo ver quando estico a boca. Então percebo o leve traço esbranquiçado a marcar a diferença no carmim do lábio. Já tem uns 45 anos ou mais, esta cicatriz. Não consigo já situar o ano exato em que caí da cama e cortei o lábio no canto da mesa de cabeceira. Mas vejo com perfeição o quarto em que dormia quando isso aconteceu. Recordo nitidamente a posição da cama, de frente para a janela, e o colorido dos ladrilhos hidráulicos que atapetavam o quarto. Na verdade não me lembro da queda, nem da dor. Só me lembro de acordar de manhã com o sabor enjoativo do sangue na boca e o lábio inchado que assustou a minha mãe. Por isso me levou à vila, à farmácia. Fomos de camioneta. Na verdade não me lembro da viagem de ida. Só da viagem de volta. E de como vinha enjoada na camioneta. E de como fiquei aliviada quando chegou a nossa paragem e desci pela mão da minha mãe e caminhámos até casa sob o sol alto do meio-dia. Lembro-me que vestia um casaquinho de malha amarelo claro. Era um casaquinho de malha tricotado pela minha mãe e tenho a certeza que ela chamava ao ponto daquela malha “beijinhos de amor”.
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