Quando alguém tem uma profunda consciência histórica – como é o caso de Miguel Urbano – mesmo as reflexões mais íntimas e pessoais têm o cunho não apenas de um ser humano individual, mas o de um tempo comum. A sua história pessoal nunca foi e nunca é apenas pessoal.
Mais de uma vez ao longo da minha extensa vida, na despedida de uma cidade pensei, por motivos diferentes, que não voltaria ali, que seria a ultima visita. Isso aconteceu-me em Kabul no Afeganistão, em Caracas na Venezuela, em Nicósia no Chipre, em Conakry na Guiné, em Deli na India, em Samarcanda no Uzbequistão, em Manágua na Nicarágua, em Trípoli na Líbia, e noutras cidades. Recordo que em São Paulo, ao tomar o avião para Lisboa em 2015, disse à minha companheira: esta será a minha última travessia do Atlântico, o oceano que cruzara dezenas de vezes. Era uma decisão e uma certeza.
Há dias, ao dizer adeus a Paris, estava consciente de que não voltaria ali.
Desta vez a certeza de que aquela fora a última viagem a França nascia da consciência de um envelhecimento galopante que inviabiliza deslocações ao estrangeiro.
Foram múltiplas, entrelaçadas e com frequência nebulosas as minhas meditações neste fim de ano em Paris.
Recordei a primeira visita há 66 anos, um reencontro com o imaginado através da história e da literatura. Ao descer do avião conheci uma jovem funcionária do turismo francês que me impressionou pela beleza: a minha futura mulher, mãe dos meus três filhos.
Viajamos juntos pelas praias da Normandia; ao largo avistavam-se ainda, encalhadas, as carcaças dos navios britânicos e americanos destruídos durante o desembarque de junho de 1944.
Foram semanas inesquecíveis de descobrimento da França real que curava as feridas abertas pela guerra e pela ocupação.
Voltei dezenas de vezes a França. Reencontrei sempre uma Paris que, transformando-se, permanecia fiel à sua grande história.
Agora, senti- me desambientado.
Fisicamente pouco mudou nos últimos anos. Mas a intimidade com a urbe rompeu-se. Dei-me conta de que não podia acompanhar o ritmo das mudanças resultantes da revolução tecnológica, sobretudo da revolução informática.
O pulsar da cidade é outro. Dizer que Paris se americanizou seria uma afirmação simplista. A questão é muito mais complexa.
NO LOUVRE.
Voltei obviamente ao Louvre.
Mas sofri. Naquela manhã filas intermináveis faziam do acesso à Pirâmide e depois às bilheteiras um suplicio.
Pela primeira vez não visitei a pinacoteca.
Dediquei as horas disponíveis às salas das civilizações do Eufrates e do Tigre, e ao Irão aqueménida e sassânida.
Meditei, como antes, frente ao bloco de mármore negro do prodigioso Código de Hamurabi, contemplei com vagar os touros alados de Korsabad, registei como em anteriores visitas a minha incapacidade para compreender o desaparecimento súbito da cultura de um império que no seu apogeu ia da Asia Menor ao Egito. Recordei que no final do seculo XX encontrei em Havana, surpreso, num seminário internacional, representantes da minúscula minoria assíria que me ofereceram jornais impressos em caracteres cuneiformes da Historia esquecida de civilizações mortas.
Estranhei a escassa atenção prestada a Persépolis. Não notara essa omissão em anteriores visitas porque na época ainda não conhecia as ruinas de Persépolis e Pasárgada. De interessante somente encontrei ali o fragmento de uma coluna truncada da Apadana. Cruzei-me permanentemente com densas hordas turísticas. Quase todos os estrangeiros, velhos e moços, mulheres e homens, empunhavam camaras de filmar e máquinas fotográficas que disparavam a cada momento.
Que conhecimento – interroguei-me - terá a esmagadora maioria daquela fauna turística da História das culturas da antiga Mesopotâmia e da Pérsia aqueménida? Creio que mínimo.
NOS INVÁLIDOS
Passei quase uma tarde nos Inválidos, um dos museus que mais aprecio em Paris, por transmitir lições fascinantes sobre a Historia da França e do Mundo.
Hoje é o Musée de l ‘Armée, mas, independentemente do nome, transmite uma mensagem transparente: as raízes do militarismo francês são profundas. O Museu é um hino à grandeza da França e do seu Exército. Uma ideia de Grandeur, que remonta a Carlos Magno e da qual o general de Gaulle terá sido talvez o ultimo porta-voz.
Hoje é o Musée de l ‘Armée, mas, independentemente do nome, transmite uma mensagem transparente: as raízes do militarismo francês são profundas. O Museu é um hino à grandeza da França e do seu Exército. Uma ideia de Grandeur, que remonta a Carlos Magno e da qual o general de Gaulle terá sido talvez o ultimo porta-voz.
Desfilei pelas salas repletas de armaduras medievais, de armas antigas, desde bestas a arcabuzes, espadas, lanças, bombardas, colubrinas e canhões de bronze.
Revivi as guerras de Itália de Francisco I e Henrique II, as campanhas da época de Luis XIII e Luis XIV, que guindaram a França a primeira potencia militar da Europa, pondo termo à hegemonia espanhola.
DA REVOLUÇAO A BONAPARTE E NAPOLEÃO
Caminhei pelas extensas galerias onde através de imagens, textos, e peças de vestuário o visitante pode acompanhar as guerras defensivas da Revolução e as campanhas de Bonaparte e Napoleão.
Imaginei o imperador no exilio amargo de Santa Helena para onde levou o seu cavalo preferido, exposto embalsamado no Museu.
Ao longo da vida escrevi muitas páginas sobre o general e o político. Ambos imprevisíveis e incompreensíveis.
A maioria dos historiadores ou o glorifica ou identifica nele um flagelo da humanidade. Discordo dos juízos maximalistas sobre o homem, o soldado e o estadista. No seu maravilhoso romance Guerra e Paz, Tolstoi, que o detestava, nega-lhe inclusive talento militar, comparando-o a um sargento bisonho.
Mas, transcorridos quase dois seculos da sua morte, os biógrafos mais isentos reconhecem hoje que Napoleão, além do estratego que revolucionou a «arte da guerra», foi como homem de estado o patrono do Código que conserva o seu nome e o reformador da Administração e da Economia que modernizou a França.
Encostado ao muro que domina o seu túmulo, tentei imaginar como a Europa e o Mundo seriam hoje diferentes se Napoleão, após a sua esmagadora vitória de Austerlitz sobre os exércitos da Áustria e da Rússia, tivesse assinado em Viena uma paz duradoura que pusesse termo às suas conquistas e guerras. A Inglaterra estava aberta a uma solução pacífica desse tipo.
Napoleão teria evitado a ocupação da Alemanha e as derrotas e humilhações infligidas à Prússia em conflitos que semearam ódios que desembocaram em guerras mundiais.
Mesmo apos a desastrosa invasão da Rússia onde a Grande Armée se dissolveu, o príncipe austríaco Metternich, o ideólogo da Santa Aliança, ainda ofereceu ao imperador francês uma paz que lhe garantia os territórios alemães da margem esquerda do Reno.
Ele recusou e avançou para a batalha de Leipzig, prólogo da abdicação que o atirou para a Ilha de Elba.
A maioria dos seus marechais já o tinha abandonado, aderindo aos Bourbons, no breve intermezzo dos Cem Dias que teve o epílogo na planície belga de Waterloo.
Durante quase duas décadas venceu sucessivas batalhas, destruiu estados, colocou familiares em tronos efémeros, mas foi incapaz de controlar uma ambição ilimitada.
Ao contrário do macedónio Alexandre, que morreu jovem sem conhecer uma só derrota, ele viveu a angústia do desmoronar do seu sonho de dominação ecuménica.
ENVELHECIMENTO GALOPANTE
Nesta despedida de Paris, na viragem de 2016, fui tocado por um sentimento de saudade de uma cidade que, permanecendo imutável e esplendida na sua fisionomia física, me surgiu como quase desconhecida pelo estilo e ritmo de vida das novas gerações.
Paris confrontou-me comigo nestes dias. Eu também não me reencontro no homem que visitou a cidade dezenas de vezes.
Paris confrontou-me comigo nestes dias. Eu também não me reencontro no homem que visitou a cidade dezenas de vezes.
Apoiado numa bengala, seria hoje incapaz, sem a minha companheira, de me movimentar na rede do metro que antes me era familiar, de caminhar sozinho pelos grandes boulevards, de me orientar num trânsito febricitante. A surdez agrava-se progressivamente; a visão enfraquece, a memória cai a cada dia.
Atravessei a ponte para o Novo Ano em reencontro com a minha filha e netos, mas marcado pela certeza da aceleração do envelhecimento,
Saí de Paris uma única vez para rever em Versailles Jean Salem e Marie Pierre, a companheira que o tornou feliz. O filho de Henri Alleg, eminente filósofo marxista, é hoje o mais íntimo dos amigos que me estimam no vasto mundo que percorri. Nevava nesse dia e, ao atravessar os subúrbios brancos no RER, senti com força a dor e a consciência do fim da vida útil.
Vila Nova de Gaia, Janeiro de 2017
www.odiario.info
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