Um país à beira de um ataque de nervos
O mito dos brandos costumes passou à história: Na rua e dentro casa, multiplicam-se os atos do quotidiano em que as pessoas perdem a cabeça
Francisco Galope, Clara Soares, Luís Ribeiro, Mário David Campos, Sónia Calheiros e Teresa Campos (artigo publicado na VISÃO 1159 de 21 de maio)
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Ilustração: Paulo Reis
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CONHEÇA OS CASOS:
Pedimos desculpa pela linguagem. A próxima frase pode ferir suscetibilidades, mas foi assim que tudo se passou:
"Eu mato-te, cabrão! Seus cabrões!" Já agarrado por algumas pessoas, o agressor berrava. José António Guerra, funcionário das Finanças da Guarda, estava estatelado no chão. Fora atingido, não sabe como nem com quê, e desmaiara. Agora voltava a si. Sangrava e sentia dores. À sua volta havia vidros partidos.
Como faz regularmente, também naquela segunda-feira, 23 de março, José António fora almoçar a um restaurante da aldeia de Barracão, ao lado da capital de distrito. Aí foi procurado pelo proprietário de um café a quem, dias antes, informara que devia corrigir a situação fiscal. Bruno T. chegara com papéis na mão e bombardeara-o com questões. E, por fim, perguntara: "Se tratasse daquele assunto [abrir atividade como 'café'] já não pagaria nenhuma coima?"
O funcionário respondeu não saber, por isso já não depender dele nem do outro colega com quem estivera no estabelecimento de Bruno. "Nós não passamos coimas", disse. "Se existir alguma, será depois enviada."
O outro não gostou do que ouviu, elevou o tom de voz, assumiu uma postura corporal agressiva e, quando o funcionário do fisco o exortou a acalmar-se, agrediu-o.
O caso de José António Guerra é sintomático de um mal que se instalou na sociedade portuguesa. A agressividade paira no ar e explode à mínima faísca. Entra-nos à hora de jantar pela casa dentro. O jovem de Salvaterra de Magos que mata um miúdo de 14 anos com um ferro e contornos de sadismo; as raparigas da Figueira da Foz que batem à vez num rapaz; as agressões de um polícia em Guimarães a um benfiquista, que saía do estádio com os filhos e o sogro; os números tenebrosos de mulheres espancadas até à morte (ao ritmo de uma por semana); as centenas de crianças abusadas sexualmente. São tudo sintomas de uma doença social que deita por terra o mito dos brandos costumes.
"Há uma hostilidade que se sente na rua, no trânsito, na comunidade, um sentimento de zanga com o corte de salários e pensões, as carências dos serviços médicos, o desemprego, a pressão das famílias com os idosos e por aí fora", destaca a psicanalista Clara Pracana, membro da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica. A crise instalada no País tornou-se o rastilho para um quotidiano muito mais violento.
Menos crime, mais violência
O Governo bem pode orgulhar-se de estatísticas que apontam para uma diminuição da criminalidade geral - e até da dita violenta. O último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), com dados de 2014, aponta decréscimos de, respetivamente, 6,7 e de 5,4 por cento. "Os valores mais baixos desde que há registos", segundo a ministra da Administração Interna, Anabela Rodrigues.
Mas os dados gerais revelam apenas uma parcela da realidade. Um olhar atento ao fenómeno criminal e a auscultação de quem no terreno acompanha as vítimas revelam um curioso paradoxo: o crime diminuiu perto de 16% nos últimos dez anos, segundo os dados do Ministério da Justiça, mas a violência empregue nos delitos tem vindo a aumentar.
"Temos hoje uma sociedade que é muito mais violenta do que era e precisamos refletir sobre isso para podermos agir", alertava, há dias em Braga, o antigo ministro da Justiça Laborinho Lúcio.
"A facilidade em premir o gatilho, mesmo em situações de trânsito ou brigas ocasionais, é maior. Há um menor compromisso para com a vida", concorda Pedro Cunha Lopes, juiz da Instância Central Criminal de Lisboa.
Por outras palavras: "Se estivermos no sítio errado à hora errada, a possibilidade de sermos gravemente feridos ou mortos é substancialmente maior do que há uns anos, quando havia mais crimes." Quem o diz é Carlos Anjos, ex-inspetor da Polícia Judiciária, presidente da Comissão de Proteção de Vítimas de Crimes.
Esmiuçando os números oficiais, reparamos em categorias de crimes que continuam a aumentar de forma preocupante. Em particular os que ocorrem no seio da família. Os dados do Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça apontam para um aumento de 23,3%, entre 2013 e 2014, dos casos de maus tratos de menores e dependentes. No mesmo período, os de abuso sexual de crianças e menores cresceram 18% e os de lenocínio (proxenetismo) e pornografia de menores 41,2 por cento.
Ainda no final de abril, veio a público o caso da detenção, em Celorico da Beira, de uma mulher que obrigava a filha de 13 anos a prostituir-se a um homem de 58 anos em troca de bens alimentares e de algum dinheiro. Na altura da detenção da mãe, a criança estaria grávida de 32 semanas.
A violência no meio familiar atinge níveis inimagináveis. A começar pela violência doméstica. A variação de casos registados pelas polícias pode ser baixo (+ 3%), mas o certo é que o número de vítimas mortais não para de aumentar. No ano passado, morreram 48 pessoas. De acordo com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), é neste contexto que ocorre a maioria dos homicídios. Junte-se-lhe outros oito, que também aconteceram por disputas familiares, e constatamos que 43,2% dos homicídios ocorridos tiveram lugar no seio da família.
Crise como alavanca
Os especialistas descrevem a violência como um "fenómeno multifatorial". A sua intensidade e o clima social mais agressivo têm muitas explicações. A mediatização dos casos pode ser uma de muitas. A variável socioeconómica outra. Segundo a psicanalista Clara Pracana, a crise tem ajudado a agravar o contágio da ansiedade e da desesperança. "O facto de as pessoas terem perdido poder real de compra e não disporem de apoios ao nível da saúde mental (consultas hospitalares por exemplo), além de serem confrontadas com o aumento da impunidade, pode levá-las a passar mais facilmente ao ato."
"A crise pode ter influência em termos de saúde mental", reconhece o juiz criminal Pedro Cunha Lopes. "Há uma maior agressividade no dia a dia e também nos crimes que se cometem", diz. Filipa Vaz Serra, investigadora do Centro de Estudos e Investigação em Saúde, da Universidade de Coimbra, elaborou uma tese de mestrado curiosa. No trabalho Efeitos da crise económica na saúde mental: Portugal na União Europeia (2004-2012), constata que constrangimentos como a perda de emprego, incapacidade para atingir objetivos profissionais, endividamento, a contenção de despesas e privações económicas estão associados à violência familiar ou social.
Quanto maior o nível de endividamento de uma família, maior a probabilidade de surgir uma doença mental que, no limite, pode gerar violência, sendo o suicídio e o homicídio as mais graves. "Em situações de pressão extrema (aumento do desemprego e endividamento), as perturbações mentais podem promover comportamentos violentos e é precisamente na própria família que estes comportamentos se manifestam primeiro."
O psicólogo forense Mauro Paulino, que colabora regularmente com o Ministério da Justiça, refere que as pessoas andam mais irritadas. "E perante um agente stressante é mais fácil fazer a passagem ao ato."
A família não se escolhe
Violência não é só matar ou bater. Mesmo sem agressão, há histórias de dar a volta ao estômago.
A negligência, como a falta de higiene, a sonegação de alimentação ou o aumento da dosagem de medicamentos, fazem parte do quotidiano de muitos idosos portugueses. A idosa presa no quarto a cuja porta a nora deixava o tabuleiro com os alimentos - a que chegavam antes dela os animais domésticos. Filhos capazes de violar a mãe ou de obrigar um pai acamado a assistir a atos sexuais entre outras pessoas. Ameaças, chantagens, humilhações, controlo e privação financeira. Entre 2004 e 2012, a APAV registou 3 988 pais agredidos pelos seus filhos em ambiente doméstico. Em cerca de 40% das situações, as vítimas tinham mais de 65 anos. O ano passado, houve 852 casos (mais 10,1% do que em 2013). Ou seja, 16 queixas por semana.
Mas quantos casos ficarão silenciados? "É muito difícil a um pai ou um avô denunciar o próprio filho ou neto. Muitos ligam-nos com tristeza, vergonha e sentimentos ambíguos, porque acham que falharam enquanto pais", descreve Maria de Oliveira, coordenadora executiva do centro de formação da APAV. "Estes dados não são a realidade. São apenas uma amostra", diz. Cerca de 12% da população com mais de 60 anos foi vítima de pelo menos uma conduta de violência por parte de uma familiar.
"Começa a ser complicado viver dentro da família", diz Carlos Anjos. "O sítio onde devíamos estar mais protegidos está a revelar-se um dos mais violentos."
Aos tribunais chegam também cada vez mais casos graves de violência doméstica e de abuso sexual de menores. Oiça-se Leonor Valente Monteiro, advogada e juíza social na comarca do Porto, que já trabalhou em 300 processos. Nesses, nenhum dos agressores foi condenado a uma pena de prisão efetiva e apenas dois estiveram detidos preventivamente, por terem sido apanhados em flagrante e de arma na mão. No caso de crianças abusadas sexualmente, o panorama é idêntico. "Nada vai mudar enquanto não considerarmos as crianças como pessoas", salienta. Uma menina de 6 anos, por exemplo, que diga ter sido abusada pelo pai, vê muitas vezes o processo arquivado, apesar de os relatórios do Instituto de Medicina Legal atestarem a credibilidade do testemunho da criança. "Em tribunal, isso não é suficiente face ao relato de um adulto", sublinha a jurista. "A impunidade é enormemente assustadora nestes casos." Ao ser arquivado um processo-crime, presume-se que o facto não aconteceu e essa criança é obrigada a continuar em contacto com o agressor.
Crimes sem castigo
Essa mesma sensação de impunidade é, na opinião de mais especialistas, dos fatores que mais têm contribuído para o aumento da violência na nossa sociedade. Bruno Brito, psicólogo especializado em trauma, explica: "A surpresa das vítimas, o encobrimento das famílias ou a inatividade dos sistemas de segurança e judicial permitem a desculpabilização das primeiras agressões. A partir daí, é uma escalada para situações muito graves."
É um relato partilhado pelo presidente da secção regional do Centro da Ordem dos Médicos. Aos 45 anos, o médico Carlos Cortes leva 15 de trabalho hospitalar e muita hora passada de banco nas urgências. Já viu um pouco de tudo: "As pessoas tendem a descarregar onde podem, seja por motivos indiretos, como a perda de rendimentos, ou por razões que afetam diretamente as suas vidas, como serviços de saúde degradados."
As longas horas de espera nas urgências são o rastilho. Só em janeiro deste ano, durante o pico da gripe, o Observatório Nacional da Violência Contra os Profissionais de Saúde registou 33 notificações de violência contra profissionais do Serviço Nacional de Saúde - quase tantas como as 35 registadas em todo o ano de 2007. Desde então o número nunca mais parou de crescer: foram 202 em 2013, e 531 em 2014.
Diálogo: problema e solução
Médicos e enfermeiros não estão sozinhos. As escolas revelam-se outros focos de tensão, com registo de agressões a professores por pais e alunos.
No rol extenso entra o caso de Ana Silva, 37 anos de ensino como professora de Educação Visual e há um ano e meio de baixa psiquiátrica, depois de ter sido agredida ao soco por um aluno do 5.º ano na Escola Maria Veleda, em Loures. O rapaz com graves problemas de concentração, hiperatividade e agressividade, deu-lhe um murro e insultou-a quando ela interveio para o separar de um colega a quem ele apertava o pescoço.
Apesar de não haver um ambiente de violência generalizado na escola, assegura António Avelãs presidente do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, as agressões de professores por parte dos pais também aumentou. Atestam-no os dados do RASI: no ano letivo 2013/14 registaram-se 6 693 ilícitos em ambiente escolar (dos quais 72,5% de natureza criminal), mais 5,4% do que no ano anterior. Do total de casos, 1 665 (um em cada quatro) foram ofensas corporais.
Na escola, são as coisas simples que geram mais tensão e os problemas mais graves entre alunos. Invejas, namoros, amizades desfeitas por um trabalho em grupo que correu mal, liderança de um grupo. "A sanção pode prevenir no momento mas não resolve a motivação do conflito", salienta Isabel Oliveira, mediadora de conflitos em contexto escolar. É preciso recorrer aos mediadores, que "entregam" aos jovens as ferramentas para se tornarem independentes, aprenderem a ouvir e a gerirem as suas frustrações.
A criminalidade perpetrada por jovens, dos 12 aos 16 anos, sofreu um agravamento significativo: no último ano, registaram-se 2 293 casos, um aumento de 23,4% face a 2013.
"A violência juvenil resulta de falhas no processo de socialização de uma criança", explica o psicólogo forense Mauro Paulino, defendendo que a filosofia dos lares de acolhimento de jovens delinquentes tem de ser mudada. "Não são financiados pela construção de um projeto de vida para aqueles miúdos, mas em função das vagas de que dispõem."
É por isso que se encontram nas prisões muitos indivíduos que passaram por centros de acolhimento. É o que acontecerá com Daniel, o jovem de 17 anos que, alegadamente, matou, na semana passada, outro de 14 anos em Salvaterra de Magos, no Ribatejo. Detido preventivamente, arrisca uma pena de prisão de 25 anos por homicídio qualificado. Referenciado pela GNR por pequenos furtos e posse de drogas leves, terá um histórico de institucionalizações desde os 12 anos. De acordo com relatos da imprensa, viveu num lar de infância e num centro educativo.
Quem nos guarda dos guardas?
Esta semana, a bárbara agressão do subcomissário Filipe Macedo Silva, comandante da Esquadra de Investigação Criminal de Guimarães, a um adepto do Benfica, fez regressar uma dúvida recorrente - quem nos protege de quem nos protege? "A maior parte das denúncias que nos chega prende-se com abusos de poder e excessos de força policial", denuncia Teresa Pina, diretora executiva da secção portuguesa da Amnistia Internacional.
Penalização é aqui a palavra mais rara. "Não conheço outro caso de prisão efetiva na sequência de violência policial. Só algumas penas suspensas", comenta Carlos Paisana, advogado de um cidadão alemão, espancado numa esquadra de Lisboa por dois polícias, condenados a quatro anos de prisão. "Houve uma denúncia imediata, tanto na imprensa como da própria vítima, e a prova testemunhal foi rápida, apanhando os polícias de surpresa e não lhes dando tempo para arquitetar a sua história", explica o advogado.
Mas nem sempre as consequências são proporcionais às denúncias: "Em 2012, na sequência das cargas policiais contra manifestantes na Assembleia da República, a IGAI identificou inúmeros abusos mas não houve consequências para ninguém", assinala Teresa Pina. "E, muitas vezes, o problema está na conduta dos responsáveis, que deviam ser demitidos", defende Carlos Paisana.
Portugal tem muito mais polícias por cem mil habitantes do que a média europeia: 430 polícias (GNR, PSP, PJ e SEF), contra apenas 358 da UE. Mas quando a violência policial abre noticiários até no estrangeiro, este é um número que pouca segurança nos dá.
O etólogo Rodrigo Saraiva encontra uma explicação para o fenómeno que atravessa o País: "A tristeza portuguesa e o 'português suave' significam o mesmo: a impotência aprendida, por via da repressão, o dizer a tudo que sim. As pessoas não se zangam contra o poder, zangam-se entre si. Dirigem a frustração e a agressividade para a família e os funcionários que representam o Estado."
Foi o que fez Bruno T., o proprietário do café na Guarda, descarregando a fúria no funcionário do fisco. O incidente deu-se há dois meses, mas a vítima, José António Guerra, ainda não dorme descansado. Chegou a pensar que tudo estava ultrapassado duas semanas depois e foi trabalhar. Mas 15 dias mais tarde sentiu que algo não estava bem com o olho direito. "É operado ou fica cego", avisou-o o médico, ao constatar que dois rasgões internos estavam a provocar um descolamento da retina.
Enquanto a queixa corre agora os seus trâmites, José António está a recuperar. Mas ainda vê tudo turvo. Só pode sair de casa ao fim da tarde, quando o sol já não está tão forte, e sempre de óculos escuros. Foram ouvidas testemunhas e também o homem que o atacou. Agora é esperar. "A justiça é sempre relativa, mas não se pode beneficiar o agressor. Ele tem de perceber que não pode repetir." A crise parece ter exposto um país disfuncional, agarrado a um modelo do aluno bem comportado, à espera de uma recompensa que nunca vai ter. Se o sentimento de impunidade persistir, será sempre rastilho para mais violência.
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