AS FRONTEIRAS INVISÍVEIS DA COMPORTA
É a maior propriedade privada do país, do tamanho de Lisboa. Agricultores não se cruzam com turistas ou famílias de linhagem
No pátio da casa, primeira fila para o pôr-do-sol da Praia do Pego, há uma mesa posta para oito. Camilla vem à porta. Espera convidados para jantar. "Amigos espanhóis que alugaram casa aqui perto". Não quer dizer como e por quanto arrendou a vivenda. Muda de assunto e fala do trabalho, na área do marketing, em Madrid. Este ano, os 12 quilómetros das praias da Comporta estão cheias de espanhóis, sobretudo madrilenos. Mas a herdade é ainda um segredo bem guardado. "Poucas pessoas conhecem e fazemos questão que continue a ser assim." Os turistas chegam atraídos pelas praias de areia branca, pela tranquilidade e pelo estado quase virgem das paisagens. Javier é o primeiro convidado. Cumprimenta Camilla com um abraço e entrega-lhe uma garrafa da champanhe. "É para o jantar". Jacinto passa por ali, de balde na mão, mas nenhum dos dois dá por ele. Ao pôr-do-sol, o arrozeiro é um homem invisível.
AS FAMÍLIAS QUE FICARAM Leonilde vive a dez minutos da praia, mas não vê o mar há dez anos: "Coisa de gente rica, eu cá nunca tive férias ". A vida nos arrozais foi sempre difícil. Trabalhava-se do nascer ao pôr do sol - fosse em Março, altura da sementeira, ou em Outubro, a época da ceifa. Aos 78 anos, os dias são vagarosos e passar a reforma num dos retiros de férias mais cobiçados da Europa - frequentado por Sarkozy e Carla Bruni, a rainha do Jordânia ou Christian Louboutin - poderia ser sinónimo de felicidade garantida. Ou, pelo menos, passaporte para longos banhos de sol nos areais da Comporta. Leonilde termina com a conversa. "As minhas pernas já não me deixam chegar ao mar". "Então e você já viu o que éramos nós agora na praia ao pé daquela gente?", continua o marido, José Maria.
Há dois anos, o acesso às praias a partir dos Brejos da Carregueira foi vedado. A administração da herdade mandou instalar um portão de madeira, controlado 24h sobre 24h por uma câmara de videovigilância. "Os senhores engenheiros" vieram ter com José Maria a casa e entregaram-lhe um cartão para abrir o portão. O reformado anda com ele na mota, mas raramente lhe dá uso. Pouco sai, aliás, do terreno que o sogro desbravou sozinho há décadas para construir uma barraca de telhado de colmo para abrigar a família. Na altura, viviam centenas de famílias nos Brejos da Carregueira. "A terra era fértil e todos tinham o que comer", recorda José Maria.
Uns morreram, outros desapareceram sem avisar, outros ainda venderam os terrenos à família Espírito Santo. Sobraram quatro famílias, mas multiplicaram-se entretanto as casas de férias de luxo. Leonilde e José Maria foram-se habituando à vizinhança sazonal, embora o contacto seja raro. Poucas vezes falaram, por exemplo, com vizinha do lado. "É uma francesa e diz-se que é a dona da Sapec, mas eu nunca lhe perguntei se é", conta o reformado, que anda desconfiado de que os donos da herdade o querem expulsar dali. "Nós, por sermos pobres e termos aqui as barracas, damos má impressão. Volta e meia vêm cá engenheiros a falar com a gente. Eles não dizem, mas querem-nos tirar de cá", diz José Maria, antes de começar a contar que já andou em tribunal com os Espírito Santo. "Não tinha casa-de-banho e eles não me deixavam construir uma. Construí à mesma e puseram-me no tribunal de Alcácer. Tive de me montar na mota e ir lá uma série de vezes".
A um passo da casa de José Maria está um dos restaurantes preferidos da família de Ricardo Salgado, o "Gervásio". Cristina Espírito Santo - que no Verão do ano passado incendiou a opinião pública com a ironia de que brincava aos "pobrezinhos" na Comporta - aparece, a seguir ao almoço, com um grupo de amigos. Vê o carro do iestacionado à porta do restaurante e já não entra. Desaparece no meio de uma nuvem de pó causada pelas obras que até há bem pouco tempo rodeavam a casa de Gervásio António e que, entretanto, pararam de um dia para o outro.
Na Herdade da Comporta, poucos querem falar ou ser vistos por jornalistas. Até o dono do restaurante pede desculpa, mas não pode conversar. Muito menos sobre os Espírito Santo. Gervásio, ar preocupado, queixa-se vagamente da vida e limita-se a comentar que a Comporta já não é o que era. "Antigamente as férias duravam três meses, agora duram um".
O PADRE, UM CASAMENTO E O CASEIRO Teodemiro e Armando são vizinhos de horta no Carvalhal há pouco mais de dois anos, altura em que dizem ter recebido ordens da administração da herdade para mudarem de lugar de cultivo. Teodemiro é popular na zona pelas abóboras gigantes. "No ano passado chegou a ter aí umas com mais de 40 quilos", conta Armando, que trabalha há 50 anos para os Espírito Santo. Começou por ser resineiro, ainda garoto, mas nos últimos 13 anos tem ajudado a produzir as 263 mil garrafas anuais do famoso vinho Herdade da Comporta. Conta como acompanha todo o processo, desde a poda dos 40 hectares de vinha, passando pela vindima e a entrega da uva na adega, que fica mesmo na aldeia da Comporta.
Ao lado da adega há uma antiga igreja com uma torre sineira. O espaço serviu, durante anos, para receber arrozeiros e agricultores quando chegava a altura de pagar as rendas dos campos. Agora é o balcão do BES, o único da aldeia. As missas de domingo fazem-se nas traseiras, numa igreja que não é propriedade da diocese, mas da família Espírito Santo. A fachada, de frente para a casa principal da herdade, tem inscritas duas palavras: "penitência" e "oração". No largo está estacionado o carro da sobrinha do padre Adalberto, que não reza missa há já algumas semanas porque partiu uma anca. Está a fazer fisioterapia.
O sacerdote vive ao lado da igreja, numa casa também cedida pelos Espírito Santo e tem um único vizinho: Alberto, caseiro, homem de confiança dos donos da herdade e que às vezes até é convidado para os casamentos dos patrões. Esteve até numa das festas mais comentadas na terra. Há mais de dez anos, uma sobrinha de Ricardo Salgado casou na Comporta e o copo de água fez-se ao ar livre, ao lado da igreja. O que as más-línguas da aldeia não esquecem é que dias antes tinha morrido o "Dr. Bernardo", Espírito Santo querido pelas gentes simples da Comporta. A boda de casamento foi de arromba e muitos continuam ainda hoje a fincar pé e a defender que a cerimónia deveria ter sido cancelada por causa da proximidade com o funeral.
"Isso é as pessoas a falarem, eu cá acho que quem cá fica tem é de gozar a vida", contrapõe o caseiro. Alberto começou por ser revolucionário e empunhou bandeiras do partido comunista na juventude. A seguir ao 25 de Abril, os Espírito Santo perderam a herdade, que foi nacionalizada, e alguns chegaram mesmo a estar presos. Tornaram-se figuras impopulares na aldeia. "Dizia-se que eram fascistas e ninguém queria trabalhar para eles", recorda o caseiro. De tal forma que quando um vidro da casa da herdade apareceu partido ninguém se ofereceu para o consertar. "Qual era o mal de lá ir pôr um vidro novo?", pergunta o caseiro. Alberto nunca tinha consertado uma janela, mas ofereceu-se para ajudar e, quando entrou na casa, deu-se conta de que eram precisos mais arranjos. Perguntou se podia deitar mãos à obra. Os Espírito Santo admiraram-se: "A sério que não se importa de nos fazer o trabalho?"
Foi assim que, há 30 anos, Alberto se tornou num dos homens de confiança de umas das famílias mais poderosas do país. Deram-lhe uma casa e um salário. Primeiro junto à adega e, mais tarde, ao lado da casa da herdade, com direito a usar a piscina. Há uns meses, anunciaram-lhe que teria de se mudar porque a mansão ia ser ampliada. Com a queda de Salgado, os planos mudaram e nunca mais se voltou a falar das obras.
Quando os primeiros indícios do declínio do império Espírito Santo abriram os telejornais, as gentes da Comporta ficaram surpreendidas e multiplicaram-se versões sobre o que iria acontecer à terra. Para uns é certo que a herdade vai ser vendida ou mesmo doada para saldar as dívidas. Outros ficaram de queixo caído por saber que "os doutores" tinham casas em tantas partes do mundo. Outros ainda espalharam rumores de que a administração da herdade dera ordens aos agricultores para colherem, mas não voltarem a plantar até ver.
Há menos de um mês, entre duas cervejas numa das esplanadas da terra, um amigo garantia a Alberto que a desgraça estava eminente. "Nem ordenado havemos de ter este mês". O caseiro, homem terra a terra, enervou-se: "As pessoas só falam do que não sabem e o que é certo é que no dia 25 de Julho tinha o dinheirinho na conta." Há dias, cruzou-se com o administrador da herdade, Carloto Beirão da Veiga. Garantiu-lhe que nada vai mudar. "E ele é que sabe das coisas, não é a gente da terra."
AS OBRAS PARADAS Os sobressaltos financeiros da família Espírito Santo já fizeram o primeiro grande estrago na Comporta: as obras que decorriam em vários pontos da herdade pararam em simultâneo e de um dia para o outro. Nos pinhais, à beira das estradas e até no meio das casas de luxo encontram-se retroescavadoras estacionadas, estaleiros abandonados e montes de terra revolvida. Os donos do comércio local, sobretudo da restauração, foram apanhados de surpresa. "A aldeia estava cheia de engenheiros e de operários, eram às centenas", conta a dona de um restaurante, que facturou como nunca em almoços. Por pouco tempo: "Andavam aí uns empregados de uma empresa americana, mas assim que a primeira notícia deu na televisão foram-se logo embora. No mesmo dia".
As obras avançavam a bom ritmo quando o Grupo Espírito Santo (GES) colapsou. Em Abril do ano passado foi lançada a primeira pedra do empreendimento Comporta Dunes Hotéis e Golfe. O projecto, que iria mexer com 551 hectares de terreno, associava o GES à cadeia Aman e prometia transformar a Comporta num destino turístico de referência através de um investimento global de 92 milhões de euros, dos quais 16,4 milhões financiados pelo QREN. O então ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, chamou-lhe "o primeiro grande investimento do pós-crise em Portugal". Seriam construídos quatro hotéis, um hotel apartamento, lotes para moradias e um campo de golfe de 100 hectares desenhado pelo arquitecto David McLay Kidd.
A ambição dos Espírito Santo em tornar a Comporta numa referência do golfe é antiga. Em 2010, a herdade candidatou-se à organização da Ryder Cup 2018, a terceira maior prova do mundo, aproveitando o campo de golfe construído às portas da aldeia e ao longo de 145 hectares. Apesar de a candidatura ter sido anunciada com pompa pelo então administrador Carlos Cortês, a Comporta perdeu a corrida e o torneio vai afinal realizar-se em França. Num ponto o administrador da herdade tinha razão: espaço não faltaria para acolher os 300 mil turistas esperados para assistir à competição. São 12500 hectares, 7100 com floresta (mais de 3,5 milhões de árvores plantadas), 1100 hectares de arrozal (que produzem 6500 toneladas de grão por época), 40 hectares de vinha, 100 de rega e, claro, os 12 quilómetros de praias - algumas quase em estado virgem. Os terrenos são férteis para a agricultura, há água em abundância, nas valadas pescam-se lagostins e o mar é rico em peixe.
A coroa portuguesa apercebeu-se do potencial quando, em 1836, incorporou a Herdade na Comporta na Companhia das Lezírias. Mais tarde, em 1925, os extensos arrozais foram vendidos à inglesa Atlantic Company. A família Espírito Santo só chegou em 1955. A seguir ao 25 de Abril, já em 1975, a herdade foi nacionalizada e devolvida aos ingleses. A família Espírito Santo teria de esperar até 1991 para reaver a maior propriedade privada do país.
A RECONQUISTA Alguns, como Josélia Duarte, garantem que a família recuperou e ampliou os terrenos da herdade à custa dos trabalhadores - a maioria nem saberia ler ou escrever. Josélia é filha de pescadores do Cambado e foi dona de um restaurante na Praia da Comporta. Durante mais de 20 anos serviu, no "Golfinho", as famílias mais abastadas do país - que à época já frequentavam as praias da herdade. Em 2001, assinou um acordo para abandonar a casa de madeira, onde trabalhava e dormia. Disseram-lhe que a licença de exploração tinha caducado e que o novo plano de pormenor da zona não permitia que estivesse na praia. Entregou a chave do restaurante em troca de uma casa a estrear no Carvalhal. A câmara de Grândola dava o terreno e a sociedade Santa Mónica, uma das empresas que geriam a herdade, tratava da construção.
Josélia mudou-se, mas 13 anos depois a casa continua por legalizar: "Não tinha um único documento. Achei estranho e em 2010 fui ver o que se passava. Percebi que não não tinha licença de habitação e pedi uma." Pouco tempo depois, conta Josélia, chegou uma carta com uma multa - aplicada por não ter licença. Pelo meio ficou um processo em tribunal porque quando recebeu o T3, a habitação não tinha condições. "Chovia em todo o lado, não havia luz, só ligações directas, o tecto não tinha placa", conta. A Atlantic Company foi condenada a pagar-lhe cinco euros por cada dia até que a casa estivesse finalmente em condições de habitabilidade. "Mas nunca recebi um centavo", garante Josélia, estranhando ainda que na Praia da Comporta tenham sido construídos entretanto dois restaurantes.
Na porta ao lado, vive uma viúva de 84 anos, Silvina Rosária, também realojada. Não sabe ler bem escrever, só desenhar o nome. Bastou para poder assinar, em 2004, um contrato "vitalício" com a Herdade da Comporta, conta. Trocou o terreno onde vivia, nos Brejos da Carregueira de Cima, por 27 mil euros e uma casa nova no Carvalhal. Silvina mudou-se e diz que só depois percebeu que a actual casa não vai ficar para os herdeiros: no contrato, que o i consultou, lê-se que a habitação é emprestada e só enquanto a viúva for viva.
TRUFAS NA MERCEARIA Na Comporta há quem não possa com os Espírito Santo, quem os respeite e quem lhes deva a vida. Uns e outros não dão a cara e preferem manter-se longe das polémicas. No minimercado Gomes, até há poucos meses o único da aldeia e que vende foie-gras, trufas e garrafas de Moët & Chandon, os clientes acotovelam-se. O dono, Carlos Gomes, prefere chamar-lhe "mercearia" e conta que, ainda antes do 25 de Abril, os Espírito Santo mandaram fechar as três cantinas que havia na herdade. Permitiram, no entanto, que o pai ficasse com aquele espaço, transformado em minimercado. A conversa flui, até empancar quando perguntamos se se comenta na aldeia a queda dos Espírito Santo: "Não sei nada sobre isso, não quero mesmo falar sobre o assunto e por favor não me pergunte porque eu não sei nada".
AREIA BRANCA O que é certo é que todos querem saber o que se passa. Não só os que vivem na herdade, mas também os que fazem praia nos areais dos Espírito Santo. O dono do quiosque da Praia da Comporta conta que nunca vendeu tantos jornais económicos como este ano. Com ou sem escândalo, nas três estâncias mais frequentadas - a da Comporta, a do Carvalhal e a do Pego - continua a ir-se a banhos, num mar que é conhecido por variar repentinamente de temperatura. A mais selectiva é a do Pego, onde Ricardo Salgado tem uma vivenda. Ao final do dia, Duarte Salgado e os sobrinhos do banqueiro deixam o areal e regressam a casa.
É quando o calor abranda e os veraneantes deixam a praia incomodados pelos mosquitos que Jacinto, 78 anos, se faz à horta. Os seis hectares de arrozal - que lhe custam uma renda de 12 mil euros/ano - não precisam de cuidados hoje. Já a batata branca, que ainda não despontou da terra, tem de ser regada. Um destes dias, Jacinto, filho de arrozeiros e arrozeiro desde os nove anos, desiste da lavoura. Há três anos, a herdade comprava o quilo do arroz a 90 cêntimos. No ano passado, o preço baixou para 30.
Ao fim do ano, acertam-se as contas com os Espírito Santo e o dinheiro da renda é subtraído ao lucro do arroz. Antes de Março, quando arranca a sementeira, Jacinto vai ao banco pedir dinheiro. "Vou ali à Caixa Agrícola do Carvalhal para poder comprar os adubos e os pesticidas", conta. A dívida ao banco é saldada no final da época, com juros que têm variado entre os 10 e os 12%. Mesmo assim, o arrozeiro não desanima e vai-se entretendo com as memórias da mulher, morta há 28 anos. Há tardes em que lhe dá para fazer quadras. "O pobre é como a formiga/ trabalha e nunca descansa/o rico é como o sapo/ só tem barriga, cu e pança", murmura entre dentes, antes de começar a subir o monte. Invisível e com o balde de pimentos na mão esquerda.
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