Canção do Ceguinho: a lengalenga lusitana
Picasso - O velho guitarrista cego, 1903 |
Só
No meu quarto
Janelas semicerradas
Ouço um longínquo canto popular
Escutai agora senhores
Histórias de pasmar
No meu país há tal desalento!
Tanta dor! Tanto tormento!
Tanta falta de talento!
Tanta história sem tento!
O pai viola a nina
Doze meses menina
O galho está no acto
A viola no saco
A morrinha no sapato
Eis casos de espantar
Aqui vos estou a narrar
A filha mata o pai
Ossos de carne parca
Pra quê ambrósia
Com lixo de mal andar
Só feito pra estorvar
E a herança cansada
De tanto esperar
Uma esposa mata o esposo
Outro esposo a esposa
Tanto tédio no lar
Esgazeados de tanto estar
Anda bolor no ar
E o dinheiro a azedar
Gira a roda! Gira! Gira!
Gira a roda a arfar
Gira o caos
Gira o mundo
Modos de mal-estar
Tal inferno em vida
E o vento a rufar
Tudo a molestar
O futebol está a dar
Vacinas pró mal-estar
Mas já nem os três efes nos salvam
Deste lusitano prantear
É o fado! É o fado!
Deste povo mal-amado
O pedófilo fila o pénis
No dar a dar
De cu no ar
Dos anjinhos azuis
De mau fadar
Barrocos
Secos e molhados
A coxear
Sodoma
De pé no ar
Sodomizados de todo o mundo uni-vos
A vitória será vossa
Nesta casa pia da vida
A justiça há-de triunfar
Diz um optimista a alar
Questão a ponderar
Murmura o juiz de pau no ar
Tal o poder de mandar
Ou dos que em mim mandam mandar
Gira a roda! Gira o caos!
Gira o mundo! Tudo gira!
Giração de nervuras
E nervosos
E nevroses
E neuroses
E artroses
Não pode mais meu coração!
O aluno bate na professora
Não o ensina a voar
Nem telemóvel tocar
Um bulício no ar
Três dias de castigo
Um tempo pra vadiar
O rapaz de mau-humor
Nunca conheceu o amor
Mas na vingança do olhar
Capta maligno
A violação da vizinha do andar
Num vídeo de alarmar
As pombas do lar
No meu país há tal desalento!
Tanta dor! Tanto tormento!
Tanta falta de talento!
Nas procissões a Maria
É vê-los anjinhos a voar
Chagas mil a florir
Parecem ossadas a chorar
O Ministro palra palra
Charla charla a oposição
Todos querem domesticar o ar
Pac pec pic poc puc
Da sagrada economia
Mas a Troika veio finalmente atinar
Os novelos no ar
Dos luxos desmedidos
Das indolências do Sul
Vizinhas das Áfricas do inato preguiçar
Vem dar o que tira
Mais tira do que dá
É a crise dos mercados
É a bolha imobiliária a arrasar
Os mais pobres dos pobres
Os pobres e os menos pobres
E veio pra ficar
Até o sangue se sugar
Ou a bolha rebentar
Ou o povo se acabar
Henri Cartier-Bresson, Madrid, 1933 |
E as finanças dos pobres
Que têm de ser infinitamente
pobres
Como ditam as escrituras dos
camelos e das agulhas
Meus filhos!
A fome dos tubarões é infinda
Sede pacientes
Deixai cair os dentes
O céu com juros pagará tão penosa travessia
Que a morte vos seja bem-vinda
Já que à vida vos troikaram as voltas
Tanta dor! Tanto tormento!
Tanto plano de fomento!
A fomentar o engodo
Em Domingo Gordo
Rostos lívidos a mascarar
No logro deste Carnaval
Caretas das flores do mal
Tanta dor! Tanto desalento!
E a TV a dar a dar
Nem sim nem não antes pelo contrário
Os prós e os contras
E os politólogos
E os economistas
E os fiscalistas
E os comentadores
Todos ecos dos ecos dos ecos
Em uníssona voz coral
A encenarem com as virtudes do mercado
A expiação colectiva nas vozes e no olhar
É a vida! É a vida!
E a internet a fornicar
Transparências no teclar
É a aldeia global
E o grande olho dum novo deus
Guardião desta ordem universal
Há palavras heréticas a punir
Imagens de revolta a reprimir
Mas ninguém leva a mal
Até ao dia do Juízo Final
É entrar! É entrar!
Os bilhetes estão a acabar!
Anda euro no ar
Prós doutos no tragar
No meu país há tal desencanto
Cantos e descantes
Cantochão dos vermes da corrupção
Venham ver o sangue a escorrer
Seco do canto
Venham ver a liberdade de morrer
Por encanto
Assim de fome
Na escassez de ser ou ter
Venham turistas e diplomatas
Animais neanderthais e outros mais
Venham ver!
Esta outrora
Aldeia imperial
De papelão marcial
A arder
Antes que as cinzas
Vos ocultem o olhar
Venham ver
Com a urgência de não
Haver mais
Nas trevas deste fado
Mais-valias a haver
Ventres fartos de as lamber
Carne vermelha branca azul negra mestiça
Arco-íris deste pedestal
Vende-se a quem der mais
Desempregados aos ais
Abutres asados
Outros mesmo desasados
Esvoaçam todos na gula
Dos saldos da carne de trabucar
Praças de jorna na moda
São os mercados neoliberais
Picasso - Os pobres à beira do mar, 1903 |
A fome é tanta
É comer e chorar por mais
Caviar e peixe cru
Champanhe e pitéus de truz
Lagostas e avestruz
Sempre os mesmos a enfardar
Aos outros o fardo da morte em vida
Severa e Severina
Venham ver
A esfíngica face a olhar
As ocidentais borras de maresia
Cruzes doridas tal o vergar
Na névoa
A diluir
A rebeldia do olhar
Resignado rebanho à beira-mar
Ao ritmo dos queixumes
Quem manda em tal demanda?
Quem manda é o pastor das almas mortas!
Turner - Mar encrespado com naufrágio, 1840-1845 |
Venham ver!
Venham ver!
Melhor que pão e circo
Que odor a mirto
O escarro ocidental
Último poiso neanderthal
Na indecisão da merda e do mar
Tágides mungindo nosso destino
Todos filhos da mesma mátria
Da mesma pútria
Que tais filhos pariu
Madrasta madre de todos nós
Não há mama pra ninguém
Salvo seja!
Salvo seja!
Menos para alguns
O leite derrama-se todo prá bocarra
Dos infantes eleitos
Preclaros artífices do golpe de mão
Familiares antigos desta nova inquirição
Volta Nobre
Estás perdoado
Que desgraça nascer em Portugal!
O pior está ainda pra vir
No barranco pior que os cegos de além-mar
Bem agoiravas Camilo Pessanha
Eu vi a luz em um país perdido!
Perdidos para sempre
Pior que nas turbulências do mar
Pior que o escorbuto ou comer as solas do andar
Nas Naus Catrinetas do nosso marear
Victor Hugo - Ma Destiné, 1857 |
País à vela panda
Anda ver isto ó Miranda!
Que as nações tolas são mistérios
E nós rumamos para o infinito do nada
O mar morto de ver tal odor
Empesta o ar
Com tal fulgor
Casinos bordéis e greens à beira-mar
Até D. Sebastião estonteia
Com a heroína
À porta da nossa Hora
E as violas tangem Quibires a golfar
Foi-se a paz
Foi-se a guerra
Foi-se o sangue a terra e a guelra
Foi-se Santiago e São Jorge
Heróis do mar
Foi-se o Botas e o Demótico
Foram-se as jóias do mar
E as do futuro do nosso passado
Efémeras miragens do nosso navegar
Só os mortos e os loucos ficaram a boiar
Orientes nas órbitas vazias do olhar
Nem rei nem roca pra fiar
Tudo disperso nada inteiro
A não ser a bola de pilhar
Os destroços dos desejos
Destas almas a piar
Águas bentas
Na poluição do desalento
Courbet - A onda, 1869 |
Um profeta ainda clama
É a hora de segar e martelar
O salso fundo do luso ar!
Mas o nevoeiro é tão denso que cega até os olhos do mar!
E aqui se encerra esta história de pasmar!
Annie Leibovitz - The Wizard of Oz, 2005 |
PS - Este cantor popular, em andanças pelas ruas da cidade, apesar da
cegueira e da sua cultura rudimentar, manifesta nos seus versos alguns
ecos das vozes de António Nobre, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa.
Certamente escutou nas noites de vagabundagem alguém que solidariamente
lhe leu alguns versos destes poetas. Na sua genuína inocência
transfigurou-os de acordo com o seu jeito peculiar de cantar os males
deste mundo.
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