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terça-feira, 19 de junho de 2012


Justiça à portuguesa (4)


O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu que as conversas entre polícias e arguidos são válidas como meio de prova desde que ocorridas antes de os suspeitos terem sido constituídos arguidos e mesmo que eles se remetam ao silêncio em audiência de julgamento. Em acórdão divulgado no início de maio passado, o TRC considerou que tendo os arguidos «relatado espontaneamente» a agentes de polícia, antes da existência de processo e, consequentemente, antes da sua constituição como arguidos, o crime versado nos autos, a valoração dos depoimentos dos referidos polícias, ao narrarem em julgamento o que ouviram dizer aos arguidos, não viola qualquer norma de índole processual penal. O tribunal especificou que tais depoimentos não violam, nomeadamente, as normas dos artigos 356, n.o 7 e 357, n.o 2 do Código de Processo Penal.
De sublinhar que tais normas dizem expressamente que «[o]s órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas». Ora, nos termos do artigo 357, n.oº 1, as declarações dos arguidos anteriormente prestadas só podem ser lidas em julgamento desde que a pedido dos próprios arguidos ou então quando, tendo sido feitas perante um juiz, houver contradições ou discrepâncias entre essas declarações e as prestadas na própria audiência de julgamento.
No caso em apreço, os arguidos remeteram-se ao silêncio mas isso não obstou a que os polícias testemunhassem em audiência de julgamento para dizer o que os arguidos, supostamente, lhes tinham dito, não em auto de declarações, mas, alegadamente, em «conversas informais». Curiosamente, os polícias testemunhas são os mesmos que detiveram os arguidos.
Esta decisão do TRC surge à revelia do que têm sido as posições recentes dos tribunais sobre a validade de depoimentos em julgamento de polícias que investigaram os crimes e recolheram as declarações dos suspeitos sobretudo quando os arguidos se remetem depois ao silêncio. Tempos houve (já na vigência do atual CPP) em que era frequente agentes policiais irem a tribunal afirmar que os arguidos lhes tinham dito, em «conversas informais», coisas diferentes das que ficavam consignadas nos autos. Muitas pessoas foram condenadas com base nessas «provas» expressamente proibidas por lei. Agora, possivelmente incentivados pelo fundamentalismo justiceiro do atual Governo, os tribunais estão já a tentar antecipar a aplicação de algumas das alterações ao CPP anunciadas pela ministra da Justiça. Mas nem por isso essas decisões deixam de ser ilegais pelo menos enquanto não forem alteradas as leis ainda em vigor.
Com efeito, pretender relevar a circunstância de as declarações terem sido prestadas em conversa informal antes de os suspeitos terem sido constituídos arguidos não passa de uma decisão em fraude à lei, ou seja, de uma decisão que visa atingir resultados proibidos por lei embora usando caminhos diferentes dos que a lei previu e proibiu. Em linguagem mais simples não passa de um expediente para contornar uma proibição legal. E os tribunais - sobretudo os tribunais superiores - não deveriam recorrer a esses métodos.
Esse tipo de decisões assenta numa cultura jurídica que valoriza excessivamente a confissão como meio de prova. Tal como em outras épocas de muito má memória, toda a prática processual penal em Portugal parece hoje voltar a girar em torno das incriminações obtidas, mais ou menos ilegalmente, junto dos próprios suspeitos. E isso leva aos mais variados atropelos à legalidade, quando não a atentados qualificados aos direitos fundamentais dos próprios arguidos, sempre com vista a que confessem os crimes ou forneçam indícios que levem à sua prova em julgamento. É quase sempre por bons motivos (às vezes, pelos melhores) que se cometem algumas das piores ilegalidades e das mais graves ofensas aos direitos fundamentais.
Uma decisão judicial não é justa por ser proferida por um órgão com competência para dizer o direito, mas sim apenas quando, em concreto, respeita o direito e os valores específicos que ele protege.

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