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domingo, 21 de maio de 2017

Os insubmissos

LUTAS ESTUDANTIS. A Universidade do Porto mostra documentos das lutas dos estudantes entre 1968 e 1974. Na imagem, manifestação estudantil atual.


Passam em bandos, e não parecem pardais. Andam à solta, e não respiram liberdade. Gritam a plenos pulmões, e as vozes parecem agrilhoadas. Passeiam-se vestidos de negro, e a negritude dos olhares e das atitudes deixam manchas pela cidade. Por estes dias, o mais difícil é não tropeçar naquelas ruidosas hordas de jovens arregimentados para a chamada praxe universitária, esse exercício público de humilhação, de culto da hierarquia, de negação de qualquer noção de liberdade e igualdade, de ausência de fraternidade, de glorificação dos mais reacionários dos valores de uma sociedade, materializados na ideia da moca em madeira a encabeçar muitas destas peregrinações.
Os jovens caloiros, conscientes ou não desse facto, protagonizam a submissão consentida. Na adaptação de uma pergunta colocada em tempos pelo sociólogo e filósofo francês Pierre Bourdieu – “O que faz os dominados obedecerem?” - seria interessante perceber as razões mais profundas desta sujeição cega, mas simbolicamente representativa do estado de desistência e acomodação a que chegaram importantes setores da sociedade portuguesa.
A circunstância de as praxes, tal como são praticadas, terem encontrado terreno fértil à propagação, é um sintoma. Tal como o era, em sentido contrário, a absoluta rejeição por parte do movimento estudantil nos anos de 1960 e 1970, de um conjunto de práticas que em si mesmas constituem a negação da democracia.
É paradoxal constatar como entre importantes núcleos de estudantes universitários criados e a viverem numa sociedade democrática, vigora uma inquietante ausência de cultura e valores democráticos, por outro lado muito presentes nos gestos, nas atitudes, no posicionamento dos estudantes que, não obstante – ou por isso mesmo – viverem em ditadura, reclamavam para o seu dia a dia e para as relações interpessoais, todo um conjunto de pressupostos assentes no respeito pela democracia e pela dignidade humana.
Nas praxes, os caloiros protagonizam a submissão consentida
Nas praxes, os caloiros protagonizam a submissão consentida

Basta passar pelo Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto – Polo das Indústrias Criativas, à Praça Coronel Pacheco, para perceber esta abissal diferença de mundos. A exposição documental “Movimento Estudantil na Universidade do Porto 1968-1974” constitui um retrato das preocupações, dos anseios, das lutas, da coragem, da entrega dos estudantes a causas. Poderiam ser radicadas em questões estudantis, poderiam ter inspiração política num sentido mais lato, poderiam decorrer de preocupações sociais. Mas eram causas. Eram dinâmicas de grupo assentes da consciência do papel e da importância dos estudantes na sociedade. Mesmo se, naquele tempo, a Universidade era frequentada por uma elite que estava longe de representar as camadas mais desfavorecidas da população.
A mostra, no essencial construída a partir do arquivo pessoal “Ephemera”, de José Pacheco Pereira, ao mostrar os panfletos, os cartazes, os comunicados, os jornais então distribuídos clandestinamente, revela como, num primeiro momento, a luta estudantil se centrava na legalização das Associações de Estudantes, no reconhecimento do Dia do Estudante e contra a repressão.
Quem tenha vivido aqueles tempos não pode deixar de recordar os memoráveis plenários e assembleias realizados nas escadarias do antigo edifício da Faculdade de Ciências, atual Reitoria da Universidade, quase sempre abruptamente concluídos com a chegada da polícia e as perseguições e cargas policiais na zona da Praça dos Leões. Era uma repressão continuada, que se agravou à medida que se aproximava o fim do regime.
Embora à entrada da exposição ganhe protagonismo um cartaz não assinado, mas com impressão digital deixada pela frase que o preenche – “Por um ensino ao serviço do Povo” – o acompanhamento cronológico das movimentações estudantis permite perceber que, no plano político, e numa primeira fase, só o PCP conseguia ter estruturas a trabalhar nas universidades o enquadramento dos estudantes. Pode mesmo ver-se o primeiro comunicado da União dos Estudantes Comunistas, através do qual a UEC, surgida de uma reorganização dos movimentos juvenis ligados ao PCP, faz a sua apresentação.
O célebre “peço a palavra” de Alberto Martins em Coimbra, frente a Américo Tomás, desencadeou a crise de 1969, com reflexos em toda a academia protuguesa
O célebre “peço a palavra” de Alberto Martins em Coimbra, frente a Américo Tomás, desencadeou a crise de 1969, com reflexos em toda a academia portuguesa

“Por um ensino ao serviço do Povo” é a expressão mais tardia de algo que entretanto acontecera nas universidades portuguesas, e em particular no Porto, em resultado do terramoto político e social desencadeado pelo maio de 1968 em França. Os temas centrais da luta são já a guerra colonial, a democracia, o projeto de sociedade (socialista, comunista), a qualidade e a forma do ensino, e o combate contra a ditadura.
O lema daquele cartaz reflete a intensa divisão em grupos e tendências ocorrida no movimento estudantil. A UEC e a sua proposta de unidade passa a ter a concorrência da UEC (ML), organização estudantil do PCP (ML), que centra a sua atividade à volta daquela sigla, mas também “O Grito do Povo”, mais tarde OCMLP, onde pontificavam Pacheco Pereira e Pedro Baptista, ou ainda pequenos núcleos de anarquistas e trotsquistas sem grande expressão, tal como o MRPP, uma quase inexistência no Porto, ao contrário do que sucedia na academia de Lisboa.
Dividiam-se, discutiam entre eles, às vezes por meios pouco pacíficos, acusavam-se mutuamente das maiores enormidades, mas como pano de fundo estava sempre algo inquestionável: resistiam, combatiam todas as atividades inspiradas pela ditadura, incluindo a praxe, sem qualquer tradição no Porto, não desistiam, questionavam a ordem estabelecida. Não vergavam. Não caminhavam de cabeça baixa. Não se deixavam arrebanhar de forma acrítica. Não se deixavam domar por supostas autoridades hierárquicas. Estudantis ou não. Eram os insubmissos.

expresso.sapo.pt

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