Foi o grande escândalo dos anos 80. O Observador faz a pré-publicação da nova biografia escrita pelo jornalista Pedro Prostes da Fonseca: "Dona Branca - a Verdadeira História da Banqueira do Povo".
Não era banqueira, mas emprestava dinheiro ao povo. Não tinha um banco, mas deixou um rasto de lesados. Maria Branca dos Santos, conhecida por D. Branca, era uma usurária que montou um esquema em pirâmide que colapsou com estrondo e escândalo nos anos 80. O Governo do Bloco Central (PS e PSD) teve de fazer face ao problema a meio de um programa de resgate do FMI, com uma estranha limitação. Nessa época, não era assim tão evidente a ilegalidade desta atividade. O jornalista Pedro Prostes da Fonseca, autor de livros como “Porta para a Liberdade” — uma biografia do guarda que permitiu a Álvaro Cunhal fugir do Forte de Peniche –, ou de “O Assassino de Catarina Eufémia”, escreveu agora a biografia da mulher que ficou conhecida como “a banqueira do povo”.
O Observador faz aqui a pré-publicação do livro “Dona Branca — a Verdadeira História da Banqueira do Povo” que chega às livrarias esta quinta-feira, dia 1 de junho. Esta é uma parte do capítulo quatro, onde o autor conta como o Governo tentou resolver o problema. Ernâni Lopes, ministro das Finanças, defendia uma abordagem legal ao problema, mas o ministro da Justiça, Rui Machete, convenceu-o apenas a gerar insegurança nos depositantes, para fugirem daquele esquema informal de empréstimos.
Notícia de uma burla: o que ouviu a polícia
“Se 1961 ficou na história como o annus horribilis de Salazar, para Maria Branca dos Santos foi 1984 o ano de todas as tormentas. O episódio relatado na Judiciária por Maria do Rosário Nobre, que veio propositadamente da Figueira da Foz a Lisboa, acompanhada da irmã, em março, para juntas depositarem na D. Branca a pequena fortuna de dez mil contos [este valor atualizado corresponderia a cerca de 230 mil euros hoje, segundo os cálculos no site Pordata; os restantes valores que constam neste texto foram calculados da mesma forma] (seis mil, ela, e quatro mil, a irmã), é o retrato de um negócio já em perda.
Coube ao agente Vicente Henriques ouvir Maria do Rosário no primeiro dia de agosto de 1984 – uma quarta-feira em que a imprensa centrava atenções na fuga de Futre de Alvalade para o Porto. Por tão bem ilustrar o caos daquela atividade, transpõe-se, quase na íntegra, o conteúdo das suas declarações:
«Para esse efeito [depósito dos dez mil contos] deslocaram-se ambas [Maria do Rosário e a irmã], no dia 9 de março passado, logo pela manhã, ao local indicado no jornal [na Av. Almirante Reis], onde foram encontrar uma grande bicha de pessoas, umas para depositarem dinheiro, outras para receberem os juros dos depósitos. Quando chegou a vez delas, eram já 11 horas, talvez 11h30».
«Entraram para uma sala de espera, onde se formava nova bicha. Alguns momentos depois, foram chamadas para uma sala anexa onde foram atendidas por um indivíduo ainda novo, alto, magro, aparentando uns 30 anos, a quem, depois de uma breve entrevista, entregaram o dinheiro constituído por notas do Banco de Portugal. Contra essa entrega de dinheiro, o mesmo indivíduo preencheu, assinou e entregou à declarante o recibo que se encontra fotocopiado junto à participação, tendo feito o mesmo à sua irmã».
«Enquanto isso, reparou a declarante, existia nesse escritório mais três empregados e umas três ou quatro empregadas […]. Recorda-se que viu a D. Branca ali sentada, pessoa que já conhecia por fotografias nos jornais e revistas. Porém, nesse dia não chegou a falar com ela».
Causou certa estranheza quando esse funcionário que a atendeu, após ter manuscrito o recibo, ter mostrado interesse em ficar na posse do original, facto que a declarante e a sua irmã contestaram imediatamente, chegando mesmo a dizer-lhe que isso levaria a que ficassem sem qualquer prova do depósito
«Esclarece a declarante que lhe causou certa estranheza quando esse funcionário que a atendeu, após ter manuscrito o recibo, ter mostrado interesse em ficar na posse do original, facto que a declarante e a sua irmã contestaram imediatamente, chegando mesmo a dizer-lhe que isso levaria a que ficassem sem qualquer prova do depósito».
«Um mês depois, mais ou menos no dia 9 de abril, a declarante e a sua irmã deslocaram-se de novo ao mesmo escritório, munidas dos recibos, e, chegada a vez delas, o mesmo funcionário que as havia atendido anteriormente pagou-lhes, em notas, 600 mil escudos à declarante e 400 mil escudos à sua irmã. No verso dos recibos, foi feita menção dessas quantias entregues como juros».
«No outro mês a seguir, ou seja em início de maio, voltaram de novo ao mesmo escritório com o propósito de receberem mais juros, mas já ali não encontraram o empregado que as havia atendido. Foram, sim, atendidas por um outro homem, também novo, alto, bastante moreno, de bigode, e que dizia chamar-se Matos. A declarante e a irmã exibiram, tal como da primeira vez, os originais dos recibos e solicitaram os juros. Aquele mesmo indivíduo, não dando alguma explicação, levou-as para uma outra sala até junto de um indivíduo que estava ao telefone, baixo, magro, aparentando cerca de 30 anos, e que se dizia ser [Mário] Rui e sobrinho de D. Branca. Tal indivíduo, ao olhar para os recibos, disse espontaneamente que os mesmos eram falsos e que não pagaria os juros que reclamavam».
A sua irmã começou a exaltar-se, o que levou a que a própria D. Branca fosse junto dela e da declarante e, colocando o braço sobre a declarante, disse: “Não tenham problemas porque não ficam sem o vosso dinheiro”.
«A declarante e a irmã explicaram que tinham sido atendidas por determinada pessoa, ali mesmo naquele escritório, e que, no mês anterior, já tinham recebido os seus juros, como constava no verso dos seus recibos. Porém, isso não foi justificação que o tal [Mário] Rui aceitasse, reafirmando que não pagaria coisa alguma».
«Posto isto, a sua irmã começou a exaltar-se, o que levou a que a própria D. Branca fosse junto dela e da declarante e, colocando o braço sobre a declarante, disse: “Não tenham problemas porque não ficam sem o vosso dinheiro”. Foi a sua irmã que nessa altura afirmou: “Vamos mas é chamar a Polícia Judiciária”, ao que a D. Branca sugeriu logo que tivessem calma, não chamassem a polícia, e que fossem a determinado dia e hora a uma morada que lhes forneceu». (…)
A rede e um segurança professor de artes marciais
A 17 de julho, justamente no dia em que começaram a voltar para trás os primeiros cheques sem provisão assinados por Maria Branca dos Santos, esta ia à PJ apresentar queixa contra «um tal Leão e um Santos», acusando-os de falsearem os seus recibos.
Na semana anterior, Amândio Filomeno de Matos, natural de Angola, interrogado na Judiciária, explicou o seu papel na organização: que começou por ser depositante e ia receber os juros a casa de D. Branca até ser convidado a ajudá-la nos escritórios, para detetar a existência de recibos falsos.
Rui Mendonça, um professor de artes marciais, seria recrutado para segurança: «Ela tinha uma grande preocupação que fizessem mal aos netos. Dava-me ao fim de cada semana um maço de notas que tirava de um saco, sempre entre 250 e 300 mil escudos».
Além de Matos e Mendonça, Rosa Maria David, Gizela Abreu e Linda ajudavam nos escritórios. Também Maria Eugénia, sobrinha de D. Branca – filha do irmão João – fazia parte da equipa, assim como o filho Mário Araújo.
Rui Mendonça, um professor de artes marciais, seria recrutado para segurança: "Ela tinha uma grande preocupação que fizessem mal aos netos".
Maria Luzia Calado e Mário Rui Marques Ferreira chegaram à organização não pela via de depositantes, mas desviados ao enteado. Trabalhavam na imobiliária de Ernesto Cordeiro quando D. Branca os convenceu a transferirem-se para o seu muitíssimo mais frutuoso negócio.
Com 28 anos e natural de Santa Iria de Azóia, Mário Rui tinha como missão levantar os cheques de D. Branca, abrindo, por ordem desta, contas em seu nome, para que o dinheiro da banqueira estivesse disperso caso houvesse uma investigação.
O homem que as duas irmãs apontaram como um dos principais responsáveis na organização, que lhes negou os juros, gostava de carros. Tinha um Jaguar 2.8, um BMW 3.15, um Triumph TR7 e um jeep Willis. Na Judiciária informaria que o BMW pertencia à mulher e que o Triumph e o jeep foram comprados na sucata por 150 contos [cerca de 3.500 euros], tendo gasto 250 contos [cerca de 5.800 euros] para os recuperar. Esta última verba fora-lhe dada por Luís Pereira, sócio do Hotel Mundial, em Lisboa – que, segundo o Tal & Qual, negociava com diamantes. Luís era marido de Maria Eulália Gomes Pereira, a Lola, retornada de Angola, arguida no processo e uma das primeiras a fugir para o estrangeiro – quando o casal entretanto já se separara.
Mário Rui contou que D. Branca lhe emprestara 1.200 contos [mais de 27.500 euros] para pagamento de uma casa que comprou em Vialonga para a sua filha, Rita Isabel, de três anos, e que acabou por lhe dizer que não queria o dinheiro de volta, pois era uma prenda que dava à criança. Disse também na PJ que chegara a guardar, durante uns meses, em sua casa e na dos seus pais, por soli- citação de D. Branca, «uma importância que chegou a atingir 240 mil contos [cerca de 5,5 milhões de euros]». «À medida que ela ia necessitando, ia-me pedindo, até que em finais de março ou princípios de abril chegou a zeros».
Como Rui Machete convenceu Ernâni Lopes a gerar “insegurança”
Enquanto o Banco de Portugal e a Judiciária investigavam o negócio, o governo tentava encontrar a melhor forma de o empurrar para o fundo. Não haver uma legislação adequada ao caso complicava; as opiniões dividiam-se sobre se a atividade da banqueira era ou não legal.
O Tal & Qual, que começou por fazer de D. Branca sua bandeira, multiplicando várias vezes as vendas de jornais à sua custa, com o tempo começava a manchar-lhe a imagem. No dia 5 de junho de 1984 publicava um parecer jurídico, não assinado, que apontava para a ilegalidade do negócio: «O exercício das funções de crédito e a prática dos demais atos inerentes à atividade económica estão regulados pelo decreto-lei nº 41.403 de 27 de novembro de 1957. Apesar da nacionalização da Banca, esta regulamentação, com as devidas adaptações, não está conceptualmente ou sistematicamente prejudicada. Assim, continua a ser exato que, à face da lei portuguesa, só o Estado e as instituições de crédito podem exercer aquelas funções (artigo 2.º do citado decreto-lei). E, conforme ainda o artigo 3.º, só são instituições de crédito os institutos para tal efeito criados pelo Estado e os bancos. É evidente que D. Branca não figura neste enquadramento legal».
Para o governo, a situação não era tão simples. A edição de 5 de julho de 1984 do Diário de Lisboa citava uma fonte do Ministério das Finanças, segundo a qual «a dificuldade da investigação é a de provar que “a banqueira do povo” empresta apenas dinheiro a terceiros ou se dedica a atividades ilegais». Na véspera, já Ernâni Lopes, numa conferência de imprensa para apresentar o Programa de Recuperação Financeira e Económica, referia-se ao caso D. Branca, afirmando que o executivo tomaria «as medidas indicadas na altura própria», mas que o assunto pertencia principalmente ao pelouro do Minis- tério da Justiça.
"Devíamos criar nos portugueses um sentimento de insegurança em relação àqueles investimentos. Ernâni Lopes, que no princípio estava mais inclinado para um caminho mais formal, acabou por ceder às minhas insistências e fez uma declaração chamando a atenção que se tratava de uma atividade ilegal e sobretudo que tinha um risco."
Dois dias antes da declaração de Ernâni Lopes, o diretor do Departamento dos Serviços Distritais de Fiscalização Tributária de Lisboa ordenava uma fiscalização às atividades da banqueira. A tarefa foi entregue ao perito de fiscalização tributária de 1.ª classe, Manuel Martins da Fonseca, que viria a concluir que D. Branca exercia uma «atividade bancária». Nesta conformidade, era convidada a pagar 91.500 contos [erca de 21 mil euros] por falta de pagamento de contribuição industrial entre os anos de 1979 e 1983. O fisco não só não tinha ido mais atrás no calendário, como fizera uma dedução dos lucros sem qualquer base precisa.
A 2 de agosto de 1984, já mais respaldado pela devolução de cheques sem provisão, que já configurava crime, o governo referia-se pela segunda vez à banqueira. No final de um conselho de ministros, Ernâni Lopes advertia para os sérios riscos de colocar dinheiro na D. Branca e avisava que o executivo nada poderia fazer para quem ficasse «sem as suas poupanças neste negócio especulativo».
Estava em marcha o plano gizado pelo ministro da Justiça, como hoje recorda o próprio Rui Machete: «Eu tinha relações de especial amizade com o professor Ernâni Lopes, éramos como irmãos. Discutimos este problema e entendi duas coisas: em primeiro lugar, que dadas as caraterísticas da senhora [D. Branca], da maneira como agia, do duvidoso enquadramento penal, achava que não devíamos agir de maneira coerciva […]. Defendi, e depois o Ernâni Lopes acabou por concordar comigo, que devíamos criar nos portugueses um sentimento de insegurança em relação àqueles investimentos […]. Ernâni Lopes, que no princípio estava mais inclinado para um caminho mais formal, através dos trâmites da Justiça, acabou por ceder às minhas insistências e fez uma declaração pública, chamando a atenção que se tratava de uma atividade ilegal e sobretudo que tinha um risco. Passado pouco tempo, começou efetiva- mente a haver um sentimento de insegurança, com pessoas a deixarem de fazer depósitos e outras a correrem para recuperar o dinheiro que lá tinham posto. E rapidamente D. Branca deixou de ter dinheiro para pagar. O que provou ter sido uma estratégia que resultou em pleno».
Sob pretexto de férias, a 23 de julho de 1984 foram fechados todos os escritórios da organização, com promessa de reabertura para 3 de setembro. No dia 5 de outubro, a PJ descobria que estavam reservados três bilhetes para o voo da TAP de dia 12 desse mês com destino ao Rio de Janeiro. Só um desses bilhetes estava identificado em nome de Maria Branca dos Santos.
Elvira, a ex-companheira de Ernesto, coloca dúvidas sobre a existência desses bilhetes, por meses antes ter sido desafiada pela banqueira para ir passar uma temporada a Cádis com a família, porque alguém pagaria um milhão de contos para se afastarem. Perante a recusa de Elvira, D. Branca decidiu ficar em Portugal, por não querer afastar-se dos netos. Esta versão seria corroborada em tribunal por João Manuel Rodrigues da Silva, cunhado de Elvira e que aos domingos fazia serviço de motorista à banqueira: «Eles disseram-me que tinha que levar a D. Branca a passear para fora», afirmou, esclarecendo que esses «eles» eram elementos que a rodeavam, entre os quais contavam-se o advo- gado Francisco Garcia, Marta da Costa, Amândio de Matos e «um tal Vadinho».
Fabricado ou não, o episódio dos bilhetes era o argumento perfeito para a detenção de D. Branca e a estocada final na sua atividade. Rui Machete ganhara. Hoje, o ex-governante admite que a solução que defendeu comportou riscos, por poder ter criado um ambiente de pânico e insegurança, mas que os custos com a continuação da atividade da banqueira seriam maiores. «O mais preocupante para mim foi constatar que muitas das pessoas que tinham lá dinheiro eram pessoas com cultura, algumas até licenciadas em Direito, pessoas decentes que não tinham consciência de que poderiam estar a prejudicar outras mais inocentes. Lembro-me de ter ficado muito admirado quando, a falar com amigos sobre o assunto, me confessarem que também lá tinham ou tiveram dinheiro depositado».
Por pudor ou para não manchar a imagem, a maior parte dos depositantes na D. Branca nunca apresentou queixa, o que explica em grande parte que a Judiciária tenha apreendido recibos que, apenas relativos a 1984, totalizavam cerca de 17 milhões de contos, quando a soma dos valores declarados pelos lesados, respeitantes a depósitos entre 1983 e 1984, foi de apenas 1,14 milhões de contos [cerca de 26,5 milhões de euros]. A outra parte da explicação estará ligada aos recibos falsos, que foram impossíveis de quantificar.
Também justifica a razão de não surgir um magistrado, um agente da Judiciária, um médico, um arquiteto, um advogado ou um jornalista na lista de ofendidos, distribuídos, para fins de futura indemnização, em cinco escalões: «boa condição económica» (18,2%), «média» (33,2%), «remediada» (24,8%), «modesta» (28,6%) e «pobre» (0,3%). As indemnizações foram mandadas pagar solidariamente pelos arguidos que foram condenados, mas, como os que tinham a carteira mais recheada haviam escapado, a verba reunida chegou apenas a alguns dos lesados com menos recursos. Depois houve quem interpusesse ações civis contra D. Branca ou contra os angariadores a quem confiaram o seu dinheiro, como terá feito a freira Ludovina.”
observador.pt
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