(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 28/0572017)
O Miguel foi o meu primeiro diretor, em “o diário”, iniciava eu a minha caminhada no jornalismo. Assustava-me, às vezes, aquela voz, frágil no tom, mas poderosa no modo como expressava uma mundividência (foi na boca do Miguel que pela primeira vez ouvi esta palavra carregada de significados) geradora de espantos vários no jovem jornalista em formação que eu era nos meus 19/20 anos.
Como qualquer pessoa de convicções fortes, alicerçadas, neste caso, numa invulgar cultura, o Miguel suscitava ódios vários, que se mantiveram para a vida, mas também admirações continuadas. Há um número significativo de ex-jornalistas de “o diário”, por exemplo, que com ele trabalharam diretamente durante anos, para quem a simples evocação do nome do Miguel Urbano desencadeia um profundo sentimento de aversão. E, no entanto, há uma imensidão de gente para quem o Miguel era pouco menos que um herói. Ouviam-no em conferências e debates e sentiam estar ali a voz que lhes confortava as suas certezas, tão afastadas do espaço mediático. Mesmo na sua relação com o PCP, de que era militante desde a clandestinidade, não raras vezes o Miguel se mostrava irascível. Era um agastamento com justificações ideológicas, ancoradas na ortodoxia a que o associavam, e o levava não raras vezes a considerar que a orientação seguida pelo seu partido estava a ser feita de cedências para ele inaceitáveis. E dizia-o frontalmente. E debatia com quem fosse necessário.
Foi da sua boca e da leitura de alguns dos seus livros que melhor e mais intensamente percebi como o mundo está sempre muito para lá das fronteiras da nossa conveniência. O Miguel era um nómada. Todos os lugares eram a sua terra. O mundo era a sua aldeia. Mas o Miguel era um nómada, até das ideias, dos sentimentos, dos afetos.
Viajante obsessivo, conheceu, conviveu e participou nas lutas em que se envolveram inúmeros revolucionários do século XX. Em particular na América Latina.
Foi por decisão sua que pela primeira vez fiz um serviço no estrangeiro. Eu, que nunca viajara de avião, lá fui, jovem imberbe, para a então Checoslováquia. Saí de Lisboa com 19 graus positivos e chego a Praga com 20 graus negativos. Jamais esqueci as palavras do Miguel antes da minha partida para o aeroporto: “Vais encontrar uma cidade única. Viena é bonita, mas Praga é bela”. Depois disso já estive mais de uma vez em qualquer uma das cidades. Tendo a concordar com o Miguel. Há uma indizível beleza a pontuar as ruas de Praga.
Ao longo dos anos tivemos distanciamentos e aproximações. Com frequência discordávamos na análise de diferentes acontecimentos nacionais ou internacionais. Ainda assim, nunca deixava de me fascinar com o conhecimento que tinha de tudo, e dos protagonistas da História. Nunca, nem mesmo com o avançar da idade, abandonou, entre outras, duas características: o fascínio pelo belo consubstanciado no corpo de uma mulher, e uma infinita sede de conhecimento.
Ultimamente comunicávamo-nos muito por mail. Sempre que me acontecia ter de escrever o Expresso Curto, era seguro que a primeira reação a chegar à minha caixa de correio eletrónico seria a do Miguel Urbano Rodrigues. Poucos minutos após as 9 horas da manhã lá estava a cair uma mensagem do Miguel. Ele, que tanto gostava de falar, era ali muito sintético. “Hoje não gostei”. “Hoje foi muito bom”. Uma vez ou outra decidia-se por notas mais longas de apreciação.
De há uns tempos para cá deixei de receber os comentários do Miguel. Deixei de receber os artigos que escrevia e me enviava antes de os publicar. Comigo foi sempre de uma generosidade sem limites. Mesmo quando era duro, ou até injusto, no modo como comentava o meu trabalho ou as minhas opções. Essa maneira de ser era algo que lhe estava colada à pele. Comprazia-se com o modo como poderia ser absolutamente demolidor. Por isso suscitava ódios. Por isso cultivou inimizades.
Vou ter saudades. Vou sentir a falta do inesperado. Como aconteceu há uns anos numa rua de Havana, onde nos encontrámos por absoluto acaso. Esse acaso, porém, acabou por ser decisivo para o desfecho da reportagem do Expresso em que estava então envolvido, graças aos para mim inimagináveis contactos proporcionados pelo Miguel.
Nessa mesma viagem acabou por me intermediar uma entrevista, na mais absoluta clandestinidade, com um grupo de guerrilheiros latino-americanos de passagem por Havana. Por questões de segurança, o resultado dessa conversa só pôde ser publicado longas semanas depois e sem qualquer referência ao local onde decorrera a entrevista.
Nem ele, nem eu, acreditamos no além. Porém, depois deste desconcerto que constitui o despropósito de falar de mim para tentar, assim, de alguma forma explicar parte do que foi o Miguel, com as suas grandezas e fragilidades, quem sabe se não estará ele a sorrir com este desvio, e, mais surpreendente ainda, se os acasos da vida não farão com que um dia nos cruzemos por aí. Até logo, Miguel.
estatuadesal.com
Há mortes que só quando acontecem nos apercebemos como acabam por levar um pedaço indelével do que somos. Para o bem ou para o mal, muito do que sou como jornalista devo-o a Miguel Urbano Rodrigues.Uma outra parte não desprezível fica a cargo de outro grande jornalista também já desaparecido, Araújo Moreira.
O Miguel foi o meu primeiro diretor, em “o diário”, iniciava eu a minha caminhada no jornalismo. Assustava-me, às vezes, aquela voz, frágil no tom, mas poderosa no modo como expressava uma mundividência (foi na boca do Miguel que pela primeira vez ouvi esta palavra carregada de significados) geradora de espantos vários no jovem jornalista em formação que eu era nos meus 19/20 anos.
Como qualquer pessoa de convicções fortes, alicerçadas, neste caso, numa invulgar cultura, o Miguel suscitava ódios vários, que se mantiveram para a vida, mas também admirações continuadas. Há um número significativo de ex-jornalistas de “o diário”, por exemplo, que com ele trabalharam diretamente durante anos, para quem a simples evocação do nome do Miguel Urbano desencadeia um profundo sentimento de aversão. E, no entanto, há uma imensidão de gente para quem o Miguel era pouco menos que um herói. Ouviam-no em conferências e debates e sentiam estar ali a voz que lhes confortava as suas certezas, tão afastadas do espaço mediático. Mesmo na sua relação com o PCP, de que era militante desde a clandestinidade, não raras vezes o Miguel se mostrava irascível. Era um agastamento com justificações ideológicas, ancoradas na ortodoxia a que o associavam, e o levava não raras vezes a considerar que a orientação seguida pelo seu partido estava a ser feita de cedências para ele inaceitáveis. E dizia-o frontalmente. E debatia com quem fosse necessário.
Foi da sua boca e da leitura de alguns dos seus livros que melhor e mais intensamente percebi como o mundo está sempre muito para lá das fronteiras da nossa conveniência. O Miguel era um nómada. Todos os lugares eram a sua terra. O mundo era a sua aldeia. Mas o Miguel era um nómada, até das ideias, dos sentimentos, dos afetos.
Viajante obsessivo, conheceu, conviveu e participou nas lutas em que se envolveram inúmeros revolucionários do século XX. Em particular na América Latina.
Foi por decisão sua que pela primeira vez fiz um serviço no estrangeiro. Eu, que nunca viajara de avião, lá fui, jovem imberbe, para a então Checoslováquia. Saí de Lisboa com 19 graus positivos e chego a Praga com 20 graus negativos. Jamais esqueci as palavras do Miguel antes da minha partida para o aeroporto: “Vais encontrar uma cidade única. Viena é bonita, mas Praga é bela”. Depois disso já estive mais de uma vez em qualquer uma das cidades. Tendo a concordar com o Miguel. Há uma indizível beleza a pontuar as ruas de Praga.
Ao longo dos anos tivemos distanciamentos e aproximações. Com frequência discordávamos na análise de diferentes acontecimentos nacionais ou internacionais. Ainda assim, nunca deixava de me fascinar com o conhecimento que tinha de tudo, e dos protagonistas da História. Nunca, nem mesmo com o avançar da idade, abandonou, entre outras, duas características: o fascínio pelo belo consubstanciado no corpo de uma mulher, e uma infinita sede de conhecimento.
Ultimamente comunicávamo-nos muito por mail. Sempre que me acontecia ter de escrever o Expresso Curto, era seguro que a primeira reação a chegar à minha caixa de correio eletrónico seria a do Miguel Urbano Rodrigues. Poucos minutos após as 9 horas da manhã lá estava a cair uma mensagem do Miguel. Ele, que tanto gostava de falar, era ali muito sintético. “Hoje não gostei”. “Hoje foi muito bom”. Uma vez ou outra decidia-se por notas mais longas de apreciação.
De há uns tempos para cá deixei de receber os comentários do Miguel. Deixei de receber os artigos que escrevia e me enviava antes de os publicar. Comigo foi sempre de uma generosidade sem limites. Mesmo quando era duro, ou até injusto, no modo como comentava o meu trabalho ou as minhas opções. Essa maneira de ser era algo que lhe estava colada à pele. Comprazia-se com o modo como poderia ser absolutamente demolidor. Por isso suscitava ódios. Por isso cultivou inimizades.
Vou ter saudades. Vou sentir a falta do inesperado. Como aconteceu há uns anos numa rua de Havana, onde nos encontrámos por absoluto acaso. Esse acaso, porém, acabou por ser decisivo para o desfecho da reportagem do Expresso em que estava então envolvido, graças aos para mim inimagináveis contactos proporcionados pelo Miguel.
Nessa mesma viagem acabou por me intermediar uma entrevista, na mais absoluta clandestinidade, com um grupo de guerrilheiros latino-americanos de passagem por Havana. Por questões de segurança, o resultado dessa conversa só pôde ser publicado longas semanas depois e sem qualquer referência ao local onde decorrera a entrevista.
Nem ele, nem eu, acreditamos no além. Porém, depois deste desconcerto que constitui o despropósito de falar de mim para tentar, assim, de alguma forma explicar parte do que foi o Miguel, com as suas grandezas e fragilidades, quem sabe se não estará ele a sorrir com este desvio, e, mais surpreendente ainda, se os acasos da vida não farão com que um dia nos cruzemos por aí. Até logo, Miguel.
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