Militarizar África não vai acabar com terrorismo na região, diz Reginaldo Nasser
Em debate sobre continente, professor de relações internacionais ressaltou: apenas 7% das organizações terroristas foram destruídas por meio da força
O Boko Haram, aliado do Estado Islâmico, e o Al Shabaab, filiado à Al Qaeda, são os dois principais grupos jihadistas que atuam na África. O primeiro, na Nigéria, e o segundo, na Somália, tornaram-se conhecidos por atos extremamente violentos. Além de suas ações, episódios recentes de ataques a países como Tunísia e Egito trouxeram o continente para o centro do debate sobre terrorismo. Para tratar essa questão, o Instituto Lula realizou, nesta quarta-feira (29/07), o debate “Os avanços da democracia na África e a ameaça de terrorismo”.
As chamadas ações terroristas, no entanto, não atingem o continente como um todo, e sim uma minoria de países, observa o professor de relações internacionais Reginaldo Nasser, um dos debatedores. Mesmo assim, na visita que fez a países do continente, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, pressionou os governos da região a “aumentarem recursos e investimentos militares para combater o terrorismo”. É nesse sentido que entra em cena a ação midiática: para levar a crer que essa é uma ameaça a todo o continente. Para Nasser, veicular esse tipo de ato violento sob a forma de "uma epidemia" é o que dá sentido para o aumento do orçamento bélico.
Na contramão dessa percepção, está o fato de que "a ideia de combater terrorismo com ação militar como é proposto na África e no Oriente Médio não funciona. Apenas 7% das organizações terroristas foram destruidas por ação militar", pontua Nasser.
Vanessa Martina Silva/ Opera Mundi
Reginaldo Nasser observou que principais vítimas de atentados terroristas são muçulmanos
Reginaldo Nasser observou que principais vítimas de atentados terroristas são muçulmanos
Além de Nasser, que é chefe do departamento de Relações Internacionais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), participaram como debatedores os professores Paulo Hilu, coordenador de pesquisa em pós-graduação do núcleo de estudos em Oriente Médio da UFF (Universidade Federal Fluminense), Salem Nasser, coordenador de direito global da FGV (Faculdade Getúlio Vargas) e integrante do Conselho África do Instituto Lula, além de Celso Marcondes, diretor do Instituto Lula e responsável pela Iniciativa África.
“Ao contrário do que muitos dizem, pobreza não gera terrorismo, e sim condições estruturais que favorecem vulnerabilidades, a ausência de justiça, o sentimento de humilhação ou exploração. Assim, a explosão do ódio pode ser canalizada para uma ação terrorista”, explica Reginaldo Nasser. Na Nigéria, exemplifica o professor, os atos do Boko Haram ocorrem onde há recursos naturais.
Já Paulo Hilu, da UFF, ressalta que os grupos que promovem atentados o fazem para chamar a atenção da mídia, com atos espetaculares e provocativos. É nesse sentido que precisa ser entendido, observa ele. A filiação do Boko Haram ao grupo Estado Islâmico, cuja atuação se concentra principalmente no Iraque e na Síria, “é uma relação mais simbólica do que efetiva, mas permite que as ações do Boko Haram passem a estar na primeira página do [jornal norte-americano] The New York Times e não na terceira como seria”.
Agência Efe
Sequestro de mulheres e meninas é uma das práticas do Boko Haram que mais gera revolta na Nigéria
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O professor também destaca ainda o fato de, na Tunísia, ter ocorrido um atentado terrorista com uma pessoa treinada fora do país e este ter sido condenado pelo partido islâmico tunisiano, o que também desmistifica a ideia de que muçulmanos são terroristas ou apoiam esse tipo de ato.
Democracia
“Para falar da África é preciso primeiramente se livrar de estereótipos. O continente africano vive um processo de desenvolvimento econômico e de consolidação da democracia. Dos 55 países, cerca de 40 mantêm eleições regulares com partidos, campanha eleitoral com horário na TV e respeito ao resultado”. Assim, Marcondes chamou a atenção para os processos que estão sendo consolidados na região.
A ideia de que o continente é dominado por ditaduras não procede, argumenta. “Somente este ano, ocorreram 23 eleições na África. Mas, quando o processo ocorre normalmente, sem incidentes, isso não vira notícia na imprensa”, avalia o também jornalista Marcondes. Ele observa ainda que “não podemos usar, na África, a noção de democracia da Europa ou América Latina. (…) Além das diferenças de costumes e tradições, temos uma diferença brutal histórica. Basta ver que alguns países africanos têm apenas 40 anos de independência”, observa.
Após séculos de exploração e espoliação, foi apenas no século 21 que o processo no continente começou a mudar, com o crescimento de outros países que passaram a atuar na região e “aproveitam as riquezas estabelecendo novas relações”.
Agência Efe
Civis fogem da cidade de Buulumareer sob ocupação do Al Shabaab: crise social e alimentar devasta Somália
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Particularidades democráticas
Quando as fronteiras dos países africanos foram traçadas, as potências coloniais não levaram em conta especificidades como características culturais, religião e organizações sócio-políticas, criando limites completamente artificiais. Assim, um dos grandes desafios dos líderes africanos é conciliar os diferentes grupos que foram colocados, à revelia, sob um mesmo guarda-chuva chamado país.
É por essa razão que não é possível comparar esses processos com outros, porque cada país lida com um contexto e realidade diferente e deve buscar uma forma de democracia própria, aponta Marcondes.
Vanessa Martina Silva/ Opera Mundi
Maioria dos países africanos têm governo estável e sistema democrático, observa Marcondes
Maioria dos países africanos têm governo estável e sistema democrático, observa Marcondes
Nesse sentido, na Nigéria, por exemplo, os partidos representam regiões onde predominam grupos específicos e os ministérios são divididos entre partidos diferentes para que haja consenso na hora de aprovar determinadas medidas, observa Marcondes.
Já em Ruanda, a maior parte dos cargos políticos é ocupada por mulheres. Apesar de ser um ponto fora da curva, Marcondes explica que isso se deve ao fato de a maior parte da população masculina ter sido massacrada pelo genocídio ocorrido em 1994.
“Na África há monarquias, na Europa também; na África há ditaduras, a nossa acabou há pouco. Ditaduras tomaram quase a América Latina como um todo [entre os anos 1960 e 1980]”, conclui Marcondes ao apontar a complexidade do debate e a necessidade de se respeitar a soberania dos países.
operamundi.uol.com.br
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